Doodle homenageia geógrafo Milton Santos
EL PAÍS relembra uma entrevista realizada em 1990 com o brasileiro que ganhou o "Nobel" da Geografia
Milton Santos (1926-2001) converteu a Geografia em uma disciplina acadêmica das mais polêmicas. O estudioso brasileiro, que nasceu em Brotas de Macaúbas (Bahia) e viveu grande parte da vida em São Paulo, defendeu, durante seus mais de 50 anos de carreira, uma "Nova Geografia", que abrangia não só as características naturais de um território, mas também sua organização social, a distribuição do espaço e dos recursos. Essa nova escola de pensamento, dotada de valores críticos, rendeu-lhe, em 1994, o prêmio Vautrin Lud, instituído pelo Festival Internacional de Geografia e considerado o "Nobel" da área. Nesta segunda-feira, o Google presta homenagem com um doodle dedicado ao geógrafo brasileiro e o EL PAÍS relembra uma entrevista realizada com ele no dia 5 de julho de 1990, na Espanha.
"Há uma espécie de revanche do Terceiro Mundo na Europa, você nos colonizaram, agora nós lhes colonizamos". Milton Santos, 64, brinca quando fala assim, mas não quando diz que a presença do "homem do Terceiro Mundo na Europa está dando um conteúdo humano às suas cidades, está dando música, cor, diferença, beleza". Santos, professor de Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP), explicou em Valência a situação das cidades do Terceiro Mundo.
A ditadura brasileira lançou este professor ao exílio entre 1964 e 1977, mas esta situação permitiu-lhe ensinar na Sorbonne, em Paris, em Columbia (EUA), Toronto, Dar es Salaam (Tanzânia), Lima e Caracas. "São Paulo recebe 500.000 pessoas por ano. Em Lima, a avalanche é contínua, há violência urbana e crise, mas a explosão não chegará, pelo menos não em breve”, explica Santos. A razão é que todos que chegam à cidade encontram algo para fazer. "Não é um trabalho no sentido europeu, mas uma atividade", diz ele.
Religiões modernas
E isso porque as estruturas econômicas não conseguem criar monopólios perfeitos no Terceiro Mundo, o que permite diversas atividades não controladas. "Primeiro, porque existem pobres muito pobres e, segundo, porque para a difusão do oligopólio é necessário, além de um sistema produtivo, um sistema distributivo, impossibilitado pela existência de tantos pobres", reflete Santos. O professor brasileiro também adverte que o que ele chama de religiões modernas, "ajudam a retardar uma explosão". Essas são crenças que, "financiadas de dentro e de fora", vendem a ideia de total conformidade", porque o céu permite que não haja necessidade de buscar uma solução terrena". As religiões tradicionais levaram séculos para reagir e entrar em assuntos terrenos", diz Santos.
Para esse intelectual, as diferenças entre as cidades europeias e as do Terceiro Mundo não são apenas quantitativas. "Os ricos são mais ricos e os pobres são mais e mais pobres", mas outros aspectos qualitativos tornam a situação cruel. No Terceiro Mundo, explica Santos, os pobres se tornam consumidores "mais que perfeitos", enquanto na Europa os consumidores são imperfeitos, pois possuem capacidade crítica e mecanismos para se defenderem. O consumo satisfeito permite uma visão mais generosa do mundo. "O pobre é um consumidor mais que perfeito, sujeito a todas as seduções, e transforma o cidadão mais em usuário do que em cidadão", afirma Santos.
Cidadania
Outra diferença qualitativa é o conceito de cidadania, uma ideia que não é preocupante na Europa, porque foi conseguida ao longo de muitos séculos. No entanto, no Terceiro Mundo, apenas uma minoria tem a sensação de ser totalmente cidadã. "Nem as classes médias têm esse sentimento, elas têm privilégios (recursos, cultura, informação) mas não direitos, os pobres não têm direitos ou privilégios". A cidadania, segundo esse professor de São Paulo, é a ambição de todo homem ser um indivíduo forte, ser uma pessoa que exerce sua qualidade humana, mas, além disso, essa ambição deve ser reconhecida nas leis.
Milton Santos conclui apelando à tranquilidade de grupos de europeus que temem a chegada de pessoas do Terceiro Mundo em suas cidades. Além da contribuição econômica, "sem a presença dessas pessoas, as cidades europeias seriam chatas, porque os europeus olham para o passado o tempo todo", diz Milton Santos.
Essa matéria foi publicada originalmente na edição impressa do EL PAÍS, no dia 5 de julho de 1990.
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