Rir dos gracejos dos déspotas já produziu milhões de mortes no mundo
A História mostra que, com personagens como Stalin, Hitler, Mussolini ou o caudilho Franco, suas bravatas de personagens medíocres não podem ser levadas na brincadeira.
Nada foi mais nefasto na História do que minimizar as ameaças e os gracejos dos déspotas. O Brasil conteve o riso quando na quarta-feira chegou a ameaçar uma guerra contra os Estados Unidos na Amazônia. Disse ao chanceler Ernesto Araújo que “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”.
É verdade que dadas as proporções entre o aparato bélico dos Estados Unidos e o do Brasil, a frase soa como piada. E, no entanto, é verdade que o aspirante a ditador Jair Bolsonaro, que foi expulso do Exército quando era apenas capitão e sempre teve complexo dos generais, sonha em fazer uma guerra. Flertou com participar de um possível conflito armado contra a Venezuela e agora posa de valentão desafiando a maior potência bélica do planeta.
A História mostra que, com personagens como Stalin, Hitler, Mussolini ou o caudilho Franco, para ficarmos nos tempos modernos, suas bravatas de personagens medíocres não podem ser levadas na brincadeira.
E é curioso que todos eles apareçam em suas biografias com uma sanha especial contra homossexuais e mulheres.
Segundo seus biógrafos, existe uma curiosa coincidência entre estes perigosos complexados e sua capacidade de semear o mundo de cadáveres. E aparentemente em todos eles se revela no final um conflito não resolvido com sua sexualidade e sua paixão por armas, símbolo fálico do poder.
Em Stalin o mal-estar com a sexualidade era tal que chegou a proibir o Kama Sutra e anunciou que na Rússia “a sexualidade havia acabado”. Seus complexos o levaram a sacrificar milhões de pessoas.
Na Itália, o ditador Benito Mussolini, considerado no princípio um excêntrico e até mesmo palhaço, acabou levando o país a declarar guerra à Etiópia quando a Itália era assolada pela fome e pela pobreza.
Il Duce também tinha relações complexas com sua sexualidade. Ele se gabava, por exemplo, humilhando a dignidade das mulheres, que gostava de fazer amor apenas com “sujas e peludas”. Os italianos riram de seus gracejos e Mussolini acabou entregando o país nas mãos do nazismo.
Em relação a Hitler, ainda existem muitas lacunas em sua biografia, talvez porque muitos documentos acabaram desaparecendo para sempre quando a Áustria foi literalmente destruída. Do Adolf Hitler também foi estudada sua aversão aos homossexuais, os possíveis conflitos com sua própria sexualidade para explicar sua violência que culminou no maior holocausto da história com seis milhões de pessoas, principalmente judeus, sacrificadas em campos de concentração.
De Hitler se chegou a dizer que seus problemas nunca resolvidos com a sexualidade e sua fobia pelos homossexuais se deviam ao fato de que talvez ele próprio fosse um gay enrustido. E até pelo complexo por ter perdido um testículo, algo que nunca foi comprovado.
Do caudilho Franco, na Espanha, que levou o país a uma guerra civil que fez um milhão de mortos, à qual se seguiram 40 anos de ditadura em que continuaram as execuções e torturas, sabe-se que foi ridicularizado desde que era soldado por ter voz de mulher e baixa estatura, razão pela qual lhe deram um fuzil menor. O fuzil era pequeno, mas a vingança nascida de seus complexos não teve limites.
Franco também desprezava os homossexuais, que chamava de “mariquinhas”, e dizia-se que era um “sem jogo, sem religião e sem mulheres”. Acabou, no entanto, como Mussolini, entregando-se por cálculo político aos braços do Vaticano, que o encheu de privilégios e criou o “nacional catolicismo”.
Em vão, a psicologia e a psicanálise se empenharam em estudar os problemas internos não resolvidos dos ditadores. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos com o derrotado presidente Trump e está acontecendo com o Bolsonaro no Brasil.
Também foi escrito sobre o caudilho brasileiro que sua possível agressividade e fobia por homossexuais e mulheres viriam de uma homossexualidade mal resolvida.
Pensa-se até que o presidente permaneceu psicologicamente ligado à fase anal devido ao seu evidente gosto pela escatologia. Seu amor pelas armas é tanto que surpreendeu durante uma Marcha para Jesus em São Paulo, quando apareceu feliz e sorridente fazendo o gesto de disparar um revólver com as mãos imitando uma execução.
O desprezo pelos homossexuais ficou evidente quando ele confessou que teria preferido ver um filho morto, atropelado por um carro, a que fosse gay. E sua fobia pelas mulheres ficou plasmada quando revelou que seu quarto filho, Laura, de nove anos, nasceu mulher por uma “fraquejada sua”, pois seu desejo era que também fosse homem.
Às vezes penso o que o coração dessa menina sentirá quando crescer e lhe contarem que o pai não queria que fosse mulher, mas homem como seus outros quatro filhos. Ou quando lhe contarem que o pai chegou a dizer no Congresso a uma colega deputada que só não a estupraria “porque era feia”.
Dias atrás Bolsonaro surpreendeu o país ao qualificá-lo como um povo de “maricas e covardes cheios de ódio”.
Suas palavras, que tiveram repercussão mundial e revelam desprezo pelo país que preside, ainda precisam ser analisadas.
Poucas vezes se viu um chefe de Estado zombar dessa maneira de seu próprio país.
A psicologia ainda terá que estudar essa relação que Bolsonaro fez entre homossexuais e covardes. Seja Freud ou Lacan, que examinaram a força das palavras para tentar descobrir o inconsciente de uma pessoa. Esse simbolismo da homossexualidade ligada à covardia está cheio de significados ocultos e inconfessáveis. As palavras de Bolsonaro foram um dos piores insultos feitos a todo um povo. O que também chocou é o silêncio da Justiça diante de uma das mais graves acusações que podem ser feitas contra uma nação como a que Bolsonaro acaba de fazer.
Não basta rir de seu gracejo, principalmente quando foi pronunciado no contexto de zombar do drama da pandemia, chegando a afirmar que ter medo de se infectar é coisa de covardes, pois “todos nós vamos morrer”. Mais de 160.000 mortos na pandemia seriam para Bolsonaro outros tantos covardes, como também seriam as famílias das vítimas.
Justamente Brasil e Estados Unidos são os dois países do mundo com mais vítimas mortais onde os dois presidentes minimizaram a epidemia e a instrumentalizaram politicamente.
As afirmações de Bolsonaro há poucos dias são de tal gravidade e ofendem toda a nação que não poucos perguntam sobre o silêncio da Justiça, que não interveio para punir essa loucura verbalizada pelo presidente.
Caberia perguntar como Cícero em sua famosa frase das Catilinárias: “Até quanto, Catilina, vai abusar da nossa paciência?”. A paciência dos povos quando se sentem defraudados por aqueles que deveriam defendê-los também poderia ter um limite.
O grave silêncio das instituições diante das ofensas feitas a todo o país pelo chefe de Estado poderiam acabar tendo um grande peso de responsabilidade, porque o Brasil está com sua imagem cada dia mais desprestigiada no exterior, o que também poderia criar sérios prejuízos econômicos.
Os palhaços profissionais são capazes de fazer rir pequenos e grandes. São liberadores das tensões. Os palhaços políticos, ao contrário, são perigosos porque acabam corroendo a dignidade de um povo e arrastando-o para holocaustos e genocídios.
Melhor levá-los a sério.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
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