A esquerda radical brasileira desenterra o debate sobre o socialismo real e ganha adeptos nas redes
Historiador Jones Manoel, que defende revolução comunista com “todos os meios necessários”, incluindo a violência, relativiza os crimes do stalinismo, que considera uma “guerra justa”
A esquerda radical, minoritária dentro da esquerda e seus partidos tradicionais há pelo menos quatro décadas, aprendeu a linguagem das redes sociais e viu crescer seu espaço e influência no debate em meio ao enfraquecimento desse campo ideológico —sobretudo do Partido dos Trabalhadores (PT). Os adeptos que escolhem para si mesmos o adjetivo radical não estão preocupados com as linhas traçadas pela esquerda democrática pós-queda do Muro de Berlim no Brasil e no mundo. Defendem o uso da violência —dentro de um processo revolucionário— para atingir seus fins políticos e questionam diretamente a legitimidade da democracia liberal. A plataforma do neomarxismo radical também inclui resgatar a experiência do socialismo real na União Soviética sob Stálin e ver valorosas credenciais únicas anti-imperialistas no regime norte-coreano, por exemplo.
O maior expoente dessa corrente é o historiador, educador popular e youtuber Jones Manoel, cujo canal no YouTube tem 117.000 inscritos. Filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), Manoel, um pernambucano de 30 anos bem articulado e hábil nas redes sociais, não raro é acusado de ser defensor do ditador Josef Stálin. Muito por causa de Manoel, o termo stalinismo ou neostalinismo já movimentava os círculos acadêmicos e canais nas redes da esquerda há algum tempo, mas voltou às paginas de jornais nas últimas semanas após o cantor e compositor Caetano Veloso declarar no programa Conversa com Bial, da TV Globo, que através de Manoel havia mergulhado na obra de Domenico Losurdo, filósofo marxista italiano que analisa a violência colonialista a partir da qual o atual Ocidente liberal se expandiu pelo mundo. Losurdo também escreveu um livro sobre o ditador soviético, Stalin. História crítica de uma lenda negra.
Formado em História e com mestrado em Serviço Social, Jones Manoel, que mora em Recife e agora vive dos cursos de política que ministra pela Internet, não nega o regime de terror de Stálin nem os milhões de assassinatos que historiadores colocam sobre seus ombros. Argumenta que não se trata de reabilitá-lo, mas sim analisá-lo historicamente e fora dos domínios do que considera propaganda imperialista. Seus críticos na própria esquerda, no entanto, contestam essa análise, apontando momentos de negacionismo e relativização das atrocidades cometidas pelo ditador soviético, como ao citar os gulags, os campos de trabalho forçado soviéticos, ou exaltar as credenciais democráticas e participativas do socialismo real.
Em artigo para o EL PAÍS, escrito em conjunto com o jornalista Breno Altman, Manoel qualifica, por exemplo, de “guerra justa” a violência stalinista. “A violência colonizadora serviu para submeter povos inteiros à espoliação e à opressão que alimentariam o desenvolvimento capitalista, enquanto a violência soviética contribuiu decisivamente para liquidar a mais tenebrosa ameaça às conquistas civilizatórias. Todas as guerras são abomináveis, mas há guerras justas e guerras injustas”, escreveram.
Declarações semelhantes no Twitter, entrevistas ou outras participações públicas recolocaram de vez o debate sobre o stalinismo, sobre a defesa do uso da violência “em revolução" e sobre a própria figura de Jones. Vladimir Safatle, professor de Filosofia da USP, filiado ao PSOL e colunista do EL PAÍS, vê muito barulho por nada: “Esse rapaz já foi perguntado se é stalinista e ele disse que não. Esse debate foi criado para estigmatizar certas figuras. São posições clássicas de esquerda, aceitas no interior do debate político”, disse. “Acho que a experiência do socialismo real foi catastrófica, mas outra coisa é desqualificar por completo”, seguiu o professor, para quem “tão ruim quanto a defesa incondicional da violência é a recusa incondicional da violência” e que sempre é preciso contexto.
Pelo Twitter, o sociólogo de esquerda Celso Rocha de Barros e colunista da Folha travou um debate com o historiador pernambucano há algumas semanas. Propôs um “ponto de método”: “Concordamos que você não se considerar stalinista não tem importância absolutamente nenhuma para o debate, certo? Muitos fascistas não se consideram fascistas, etc”. A partir daí, Rocha de Barros criticou o que considera relativização de Jones a respeito de aspectos do stalinismo, como coletivização forçada no processo do socialismo real soviético ou os Gulags (o historiador pernambucano havia escrito, por exemplo, que “no geral, os gulags soviéticos parecem universidades perto dos presídios brasileiros”).
Para representes da esquerda tida como moderada, pouco importa se militantes como Manoel negam ser stalinistas. Atenuar a crítica ao ditador já se transforma em pesadelo, uma vez que para eles o stalinismo depõe contra a própria ideia do socialismo. Argumentam que o movimento faz o discurso público progressista retroceder ao atacar o socialismo democrático, uma corrente abraçada pelo PT ainda nos anos 1980, quando o partido se adiantou a outras formações progressistas no mundo e fez a crítica ao socialismo real.
Para a escritora e ativista transfeminista Helena Vieira, foi a crise do petismo enfraquecido com o impeachment de Dilma Rousseff que abriu de novo uma luta pela hegemonia de discurso dentro da esquerda e, nesta disputa, agora vale trazer de volta para o debate as experiências socialistas, sem os constrangimentos dos anos 1990, e vale também atacar frontalmente a social-democracia e as concessões “liberais” dos partidos mainstream.
Safatle diz que não “acompanha Jones Manoel”. Mas, sem relação com o historiador, avalia que “não aconteceria nada melhor que a esquerda se radicalizando, até para contrapor essa radicalização da direita”. “Mas esse é um movimento muito disperso. Radicalizar significa constituir uma pauta de ruptura econômica e social, uma reflexão de aprofundamento dos princípios democráticos, o que significa fazer uma crítica da institucionalidade da Nova República, que não funcionou e afastou a população.”
Em seu debate com Manoel, Celso Rocha de Barros também elogiou o impulso de retomar a discussão marxista feita pelo historiador, “até pelo uso de outros meios de divulgação e trabalho de base”. Mas ponderou: "Fico meio mal impressionado com o pouco que eles aproveitaram da discussão feita nos 80-90, pela turma que viu o socialismo real cair”, lamentou.
“Conservadorismo de esquerda” e Gulag tuiteiro
A força midiática de Jones Manoel e a virulência nos comentários contra o Rocha de Barros no Twitter após o embate com ele são também uma janela para outra faceta do fenômeno envolvendo o historiador pernambucano. Ele forma parte de um ecossistema mais amplo, espalhado por páginas e comunidades nas redes sociais. São pessoas que atuam em rede, de forma sistemática, seja para promover suas ideias, seja para combater quem consideram adversários. O uso de memes e de apelidos depreciativos também é recorrente —até acadêmicos da esquerda acabam sendo chamados de “indigentes intelectuais”. Quem é rejeitado, vai para o “Gulag twiteiro”, brincam na própria rede.
Para Helena Vieira há pontos de contato na narrativa entre Jones Manoel e a extrema direita representada pelo presidente Jair Bolsonaro e o ideólogo Olavo de Carvalho —apesar das óbvias diferenças ideológicas e de espaço que ocupam na opinião pública e no ecossistema digital, além do mundo real. Ela enxerga no historiador um “conservadorismo de esquerda” que reinterpreta a história sob a luz de suas crenças ideológicas, valendo-se de uma “utopia regressiva” para mobilizar seguidores e atacar nas redes seus adversários políticos, incluindo aqueles que fazem parte do mesmo campo ideológico.
Para a escritora, de um lado temos Bolsonaro apelando para a figura “do militar, do mito, do herói, da arma, tudo como tentativa de reconstruir uma masculinidade capaz de reordenar as coisas”. Do outro, essa esquerda mais radical “vai recolocar no centro o homem e as formas de autoritarismo, em busca de uma figura masculina para reordenar o espaço”. “São sujeitos que melancolicamente evocam o passado. Jogam o mesmo jogo segundo as mesmas regras, no tabuleiro dos mesmos afetos”, diz ela, que vê nos dois campos uma “profunda descrença institucional.”
Ao escrever sobre as ideologias políticas, o filósofo italiano Norberto Bobbio classificou os revolucionários de esquerda, que querem a derrubada do capitalismo através do uso da força como “extremistas”, em contraposição à ala moderada dessa corrente política que aposta num processo de reformas por dentro das instituições. “A díade extremismo-moderantismo não coincide com a díade direita-esquerda”, afirmou na obra ‘Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma Distinção Política’. Para ele, extremistas de esquerda e de direita “se tocam” não por causa das ideias professadas, mas pela defesa do método violento para colocá-las em prática. “Um extremismo de esquerda e um de direita têm em comum a antidemocracia (um ódio, senão um amor)”.
O historiador foi procurado pela reportagem, que enviou uma série de perguntas por e-mail para entender melhor seu pensamento e como se posiciona diante das comparações com a extrema direita. Questionado se suas palavras seriam publicadas na íntegra, o EL PAÍS explicou que seriam utilizados os trechos principais das respostas, como de praxe nessas situações. Manoel só aceitou colaborar com a condição de que a matéria só fosse publicada se ele aprovasse a versão final, já editada, do texto. Este jornal declinou, mas propôs enviar antes da publicação os trechos com suas respostas, para que o historiador se certificasse de que suas palavras não apareceriam descontextualizadas. Ele rejeitou a proposta, dizendo que as perguntas são “totalmente enviesadas” e buscam criar um rótulo de “bolsominion de sinal trocado”, e que precisaria declinar caso não houvesse possibilidade de mudanças. Ele também pediu que sua negativa em colaborar não fosse mencionada.