“O stalinismo ainda perdura”
Simon Sebag Montefiore, grande especialista em Rússia que publicou uma história da dinastia Romanov, participa da Flip deste ano
O historiador britânico Simon Sebag Montefiore é um dos grandes conhecedores da Rússia atual. Natural de Londres, onde nasceu em 1965, é autor de um livro imprescindível sobre o stalinismo, 'Stálin - A Corte do Czar Vermelho', e de uma sólida construção histórica da cidade de Jerusalém. Recentemente, também publicou 'Os Romanov 1613-1918' e 'Catarina, a Grande, & Potemkin', todos lançados no Brasil pela Companhia das Letras. "Queria explicar a raiz da Rússia de hoje, como a Rússia de converteu em Rússia, Putin em Putin e por que existe hoje uma autocracia por lá. Senti que a melhor forma de chegar a entender isso era compreendendo as tradições russas", explicou ao EL PAÍS durante um evento no ano passado. Agora, ele participa da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no dia 28, às 12h. Leia a entrevista abaixo.
Pergunta. O que descobriu nessa pesquisa que não se sabia até hoje?
Resposta. Existem muitos episódios surpreendentes. O mais interessante é ver o ciclo da história da Rússia: após grandes revoluções e períodos de instabilidade e após experimentar a democracia, retoma um velho hábito e volta à autocracia.
P. Por que a Rússia sente e transmite a ideia de que é uma exceção?
R. Acho que todos os países são excepcionais. A Rússia é uma civilização diferente, essa é a questão. Não faz parte da civilização latina, como nós. É uma cultura diferente com origens diversas, como uma vez Putin disse a um presidente norte-americano: “Nós nos vemos como vocês, mas não somos vocês”. Essa é uma das lições do livro.
P. Que Romanov o senhor acha que tem mais vigência atualmente?
R. Eu diria que Nicolau I, porque aplicava políticas semelhantes às que vemos, de alguma forma, em Putin. Ele dominou os países ocidentais e suas consignas eram as mesmas: “Autocracia, nacionalismo e ortodoxia”. Também embarcou em grandes aventuras no estrangeiro, aventuras titânicas, guerras. Era um personagem muito conservador. Acho que Nicolau I foi o líder mais parecido ao que têm hoje.
P. Os Romanov podem ser comparados a que família de políticos e personagem político hoje em dia?
R. Não vejo uma família per se, mas evidentemente Donald Trump quer ser o primeiro czar americano. E, de fato, possui alguns requisitos da figura do czar.
P. A Rússia parece ter conseguido colocar quem ela queria na Casa Branca. Como a chegada de Donald Trump afeta a Rússia?
R. Acho que os russos foram muito eficientes porque sua política se baseia em quebrar a cultura ocidental e gerar mais confiança neles mesmos. Hoje em dia essa estratégia é fácil de acontecer, porque no Ocidente algumas pessoas experimentam uma sensação de ódio contra si mesmas e um grande ódio ao sistema. Isso complicou tudo para nós, as decisões são mais difíceis de se tomar e a democracia não demonstrou ser o melhor caminho para facilitar esse processo. Uma das grandes lições do momento é que, apesar de pensarmos que a Internet era um motor para o progresso, na realidade é uma ferramenta de desinformação, mentiras e totalitarismos.
P. No ano passado, se comemorou o centenário da Revolução Russa. O que está vigente 100 anos depois?
R. Até certo ponto, o stalinismo ainda perdura. O Estado russo criado à época ainda existe. Em 1991, o Partido Comunista desapareceu, mas o serviço secreto continua sendo o mesmo. Toda essa cultura da guerra é um conceito bolchevique, por isso os russos são muito mais sofisticados nesse aspecto. Por exemplo, nos Estados Unidos temos o Vale do Silício e, entretanto, nunca nos ocorre fazer as coisas que os russos fazem.
P. Que personagem da Revolução Russa o senhor considera mais atrativo?
R. Nenhum dos bolcheviques. Talvez Nikolai Bukharin fosse um dos melhores, mas mesmo ele acreditava em coisas como expurgos maciços. É difícil sentir simpatia por qualquer um deles e a maneira como pensaram que a sociedade deveria ser reinventada, através da violência, o assassinato e a prisão. Talvez Alexander Kerensky fosse o mais moderado.
P. Quando a utopia soviética se perverteu?
R. Bem rápido. Sempre esteve viciada pelo leninismo, que por sua vez tergiversou os ideais do comunismo. Eu diria que foi perversa desde o começo.
P. Se Trotsky não fosse assassinado algo teria mudado?
R. Não, porque era mais um showman do que um político. Nunca se preocupou em construir alianças. Estava interessado em instaurar uma máquina política ao redor de si mesmo e esperava que as pessoas o aceitassem porque era brilhante.
P. O que resta de Stalin hoje em dia?
R. De alguma forma, o terror que gerou ao seu redor. Por outro lado, foi o mais bem-sucedido líder russo da história depois de Gengis Khan.
P. Como o senhor vê o futuro da Rússia?
R. A longo prazo, acho que continuará se desenvolvendo porque é um país sofisticado. A curto prazo, sou pessimista, porque há uma grande fuga de talentos, todas as pessoas inteligentes e liberais abandonam o país. O Governo está se transformando em um Estado centrado em um só homem. A possibilidade de colapso é real.
P. Como definiria Putin?
R. É um político muito talentoso e sabe ler as pessoas, mas em última instância isso já não basta. O sucesso que alcançou ao criar um Estado centrado em si mesmo lhe impede de correr qualquer risco. Está constantemente procurando a forma de se manter no poder.
P. Qual acha que é a intenção de Putin, criar uma Rússia ao estilo soviético, imperial, algo diferente, que ainda não foi visto até agora?
R. Acho que procura um híbrido entre os Romanov e o sistema soviético. Mas não é a repetição de nada, porque conta com a fachada das eleições e da democracia. Tem a popularidade e a organização que a figura do czar nunca teve, e seu regime é muito mais popular do que foi a União Soviética. A diferença é que ele não assassina as pessoas como o czar fazia, ainda que tenha conseguido se projetar como tal. A Rússia não é um Estado totalitário.
P. A Rússia hoje é mais poderosa do que nunca?
R. Sim, porque agora tem a capacidade de agir e influenciar. Antes da vitória de Trump, os Estados Unidos estavam de alguma forma paralisados pelo peso de seus extremismos. Agora a Rússia se aproveitará se Trump recorrer de novo à força dos Estados Unidos. Quem sabe.
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