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Cem anos depois, o Kremlin teme a revolução

Turbulências continuam a se projetar na Rússia atual, e os dirigentes estão obcecados pelo controle

Pilar Bonet
Um opositor é preso durante uma marcha não autorizada para comemorar o centenário da revolução, na segunda-feira, em São Petersburgo.
Um opositor é preso durante uma marcha não autorizada para comemorar o centenário da revolução, na segunda-feira, em São Petersburgo.Dmitri Lovetsky (AP)
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Cem anos depois da revolução bolchevique, a Rússia é um país diferente daquele levado pela euforia de uma mudança que acabou sitiada e monopolizada pelo Partido Comunista da URSS. As turbulências de outubro, entretanto, continuam a se projetar sobre a Rússia atual e funcionam sobretudo como um alerta preventivo para os seus dirigentes atuais, obcecados em evitar eventuais “contágios” de outras “revoluções”, seja a Euromaidan (2103-2014) da Ucrânia ou as primaveras do norte da África.

O sistema criado por Vladimir Putin desde sua chegada ao poder, em 2000, reage antecipadamente a qualquer indicio (ilusório ou real) de perda de controle. Exemplo disso são os pretextos, não fundamentados na legislação, que as autoridades municipais de Moscou e outras cidades citam para proibir o direito à manifestação dos ativistas de oposição. No último domingo, várias centenas de pessoas foram presas em diversas regiões russas por saírem às ruas em resposta à convocação de Viacheslav Maltsev, fundador de um movimento chamado Artpodgotovka (declarado extremista no final de outubro), que havia previsto uma “revolução” para aquele dia. Entre os presos estão seguidores do político Alexei Navalny.

A Rússia ainda não desmontou toda a herança da URSS. Os cadáveres de Lênin e de outros pais fundadores continuam na Praça Vermelha (diante dos restaurantes e lojas de luxo), e os hábitos arraigados no período soviético são mais persistentes do que imaginavam os que queriam apagar e criar tudo novo em 1991.

O coronel Putin trabalhou no Comitê de Segurança do Estado da URSS (KGB) e na espionagem da Alemanha Oriental, onde estava quando caiu o Muro de Berlim. A maneira de pensar e agir de Putin está marcada por sua formação nos serviços secretos, e muitos dos políticos e funcionários que o cercam vêm da mesma área, o que faz com esses setores tenham um peso dominante na Administração do Estado. A grande diferença com a época soviética é que naquele período os serviços de segurança se submetiam à ideologia, linha e controle do Partido Comunista, e agora são os serviços que dão o tom e possuem uma situação privilegiada em relação a outras instituições.

Em março ocorrerão eleições presidenciais, e tudo parece indicar que Putin se prepara para revalidar seu posto por mais seis anos. Houve diferentes épocas ao longo dos seus mandatos como presidente e primeiro-ministro, e, segundo a narrativa oficial, a Rússia, aberta inteiramente ao mundo, teria se decepcionado com os hipócritas países ocidentais que tentavam tirar vantagem do fim da Guerra Fria. Desde 2014, por causa das questões políticas na Ucrânia, as relações com o Ocidente se deterioraram ainda mais. As sanções e contrassanções resultantes e o clima de desconfiança mútua produziram novas barreiras econômicas, políticas e psicológicas. Na narrativa oficial, as sanções estimulam e mobilizam a Rússia. Na realidade, o nível de vida dos russos piorou, e a integração da Crimeia ao tecido estatal e os gastos militares são realizados em detrimento dos investimentos em serviços sociais, saúde e educação. O orçamento russo continua dependendo dos hidrocarbonetos, e as reformas econômicas de fôlego não foram realizadas.

Com Putin, a gestão do Estado se transformou em um vetor vertical dirigido a partir do centro. Formalmente existem três ramos do poder, independentes e que interagem entre si; na prática, o sistema é piramidal e comandado a partir da Administração presidencial (como antigamente era comandado a partir da máquina do Comitê Central do Partido Comunista Soviético), onde se decide a política executada no Parlamento, nas regiões e também nos tribunais quando são assuntos importantes.

A Duma Estatal (câmara baixa do Parlamento, com 450 deputados) é dominada pelo partido Rússia Unida, e as outras forças políticas se adaptam à linha do Kremlin. O Partido Comunista da Federação Russa (PCFR) tem 42 parlamentares, a segunda maior bancada da Duma, e reunia 162.000 filiados no começo deste ano. “Lênin, Stálin, vitória”, “Nossa pátria é a revolução”, “A URSS é nosso orgulho e glória” e “1917-2017: continuará”, são algumas das palavras de ordem que o PCFR aprovou para o centenário, além de outras contra “a ditadura dos oligarcas e funcionários públicos”, o “aumento de tarifas públicas”, a “corrupção e arbitrariedade” e a favor de um sistema de impostos progressivos. Os líderes comunistas de hoje são críticos à política social e econômica do Kremlin, mas não são revolucionários, e sim funcionários de perfil bastante burocrático, nacionalista e tradicionalista. Além disso, apoiam a política externa de Putin e acolheram com entusiasmo a anexação da Crimeia. Num evento dedicado a 1917, celebrado recentemente na Duma, o líder comunista Guennadi Ziuganov considerou que são necessárias decisões que permitam evitar a revolução, afirmou que “o capitalismo não poderá resolver nenhum dos problemas sociais” e citou a China como exemplo de país que está reduzindo suas diferenças sociais.

O sistema consolidado por Putin tem um núcleo duro não institucional do qual participam algumas figuras próximas da época em que o atual presidente foi vice-prefeito de São Petersburgo, além de amigos da juventude. Putin atua como árbitro entre os diversos grupos representados no seu entorno e manobra entre eles. As sanções ocidentais afetam a muitos desses personagens, obrigando-os a cerrar fileiras em torno do líder e a aceitar certos sacrifícios (pelos quais esperam ser recompensados), tais como trazer seus filhos e suas famílias do exterior, renunciar a viver em suas mansões na Europa e abrir mão de seus negócios internacionais. Todos esses setores apoiarão Putin nas eleições, mas estão inquietos, porque olham para o futuro além de 2024.

O que une os diversos grupos representados no poder é que “são verdadeiros ladrões”, disse o economista Vladislav Inozemtsev numa entrevista ao serviço informativo Znak . “Toda a cúpula do poder é uma quadrilha delinquente que se dedica a saquear o país”, afirmou, citando como exemplos um coronel do FSB cujo apartamento estava lotado de dinheiro, o chefe do serviço de alfândegas, que guardava cédulas em caixas de sapatos, e um vice-presidente que comprou propriedades imobiliárias em Londres, além de um general, responsável pela luta contra o crime organizado dentro do Ministério do Interior, em cujo nome estava registrado um imóvel de 38 milhões de dólares na Flórida.

A propaganda foi uma atividade muito desenvolvida na URSS, e o sistema recorre às tradições soviéticas para manter a imagem de um Ocidente agressivo contra uma Rússia acossada, inocente e incompreendida. As insinuações ou hipóteses são cada vez mais rebuscadas. Na semana passada, sem responder a nenhuma das arbitrariedades denunciadas por seus interlocutores, defensores dos direitos humanos, Putin se referiu ao “recolhimento sistemático e profissional” de “materiais biológicos dos russos”. Em seguida, graças aos porta-vozes e cientistas políticos próximos ao Kremlin, as enigmáticas palavras do líder se transformaram numa acusação aos serviços secretos norte-americanos por estarem supostamente trabalhando na criação de uma arma bacteriológica seletiva contra a Rússia.

Enquanto Putin for vivo, “nada mudará” na Rússia, segundo Inozemtsev. “Putin será presidente até o último suspiro, e consequentemente as mudanças não terão início antes do começo da década de trinta, mas o período de ruptura começará em meados dos anos 2020 e será muito interessante”, prognosticou o economista. É viver para ver.

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