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Tribuna
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Caso Stálin: o papel da vilania na História

Despidas de suas vestes históricas, certas categorias como violência, ditadura ou democracia estão sempre sujeitas a todo tipo de fraude positiva ou negativa

'Girl and Stalin', de Vitalii Komar & Aleksandr Melamid.
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A entrevista de Caetano Veloso para Pedro Bial, de forte repercussão, acirrou os ânimos do liberalismo em várias frentes. Seus adeptos, incomodados com a crítica do músico baiano, forjaram um estigma para interditar a discussão sobre a natureza do pensamento liberal e seu lastro histórico: tudo não passaria de um movimento para reabilitar Iossif Vissarionovitch Djugashvili (1878-1953), mais conhecido como Stálin, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética desde 1922 até sua morte.

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Caetano não tocou no tema em suas respostas à TV Globo, mas citou como autor relevante para suas reflexões um renomado filósofo italiano, Domenico Losurdo (1941-2018), cujas obras teriam sido decisivas para que revisasse suas antigas opiniões sobre as ideias liberais. De fato, na bibliografia desse autor constam livros de referência sobre o tema, como a Contra-história do liberalismo, entre outros. Losurdo não deixa pedra sobre pedra do mito da associação entre essa ideologia e a defesa da democracia, desnudando suas conexões com o colonialismo, com a escravidão e o racismo, com as diversas ditaduras do capital.

Na trajetória do escritor italiano, para piorar a urticária entre liberais de todas as crenças, há um trabalho especialmente polêmico. Intitula-se Stalin – história crítica de uma lenda negra, publicado no Brasil pela Editora Revan. Losurdo reconhece muitos dos crimes atribuídos ao líder soviético, contesta outros, mas acima de tudo propõe que o balanço desse personagem supere uma suposta moral universal abstrata, sendo submetido ao crivo da análise histórica, dos tempos e suas circunstâncias.

Ao contrário de reabilitar Stálin, como têm sido acusados o filósofo e quem se alinha a suas teses, trata-se de enterrar a dicotomia entre heróis e vilões, substituindo-a por uma apreciação rigorosa do papel concreto dos indivíduos, das condições nas quais intervieram, dos resultados de suas ações, das classes beneficiadas ou prejudicadas por suas atitudes. Dos erros e dos crimes que cometeram, claro, mas inseridos no processo histórico de suas existências, ao lado dos acertos e dos feitos de suas vidas.

O confronto contra o subjetivismo moralista, aliás, é recorrente na historiografia. Fez-se clássica a brochura O papel do indivíduo na história, de Gueorgui Plekhanov, publicada em 1898. O célebre marxista russo desmonta tanto a versão determinista, que anula o livre-arbítrio e a atuação dos líderes, hipotéticas marionetes de acontecimentos forjados pela inevitabilidade da evolução econômica ou da luta entre as classes, quanto a lógica das grandes personalidades, supostos alfaiates supremos das glórias e tragédias do desenvolvimento social.

O que se constata, segundo Plekhanov, é que homens e mulheres fazem história, tomam decisões que impulsionam ou atrasam seu ritmo, mas em circunstâncias que independem de sua vontade ou moralidade, submetidos a cenários que lhes oferecem opções eventualmente muito limitadas, como é especialmente o caso nas guerras e revoluções. Não seria possível, portanto, analisar qualquer figura relevante do passado ou do presente sem o escrutínio profundo das condições materiais, políticas e culturais que fixaram a cena de sua intervenção.

A identificação dessas circunstâncias deve inexoravelmente contemplar a natureza das resoluções tomadas, para o bem ou para o mal: os interesses de classe que patrocinaram, os projetos defendidos, as transformações ou retrocessos promovidos. A violência, por exemplo, não pode ser discutida como um valor em si mesmo. Não há equivalência entre a brutalidade colonial da Europa mercantilista, assassinando dezenas de milhões na América Latina e impondo a escravidão como base da acumulação de riquezas, e a truculência da direção bolchevique, desde os anos 30, para conduzir a industrialização e modernização da economia, levando o povo soviético à vitória contra o nazismo.

Ambos episódios estão repletos de crimes e injustiças, facilmente condenáveis pela régua moral da atualidade. Ainda que esse aspecto não possa ser negligenciado como um dos fatores de balanço, a essência dos dois processos é antagônica. A violência colonizadora serviu para submeter povos inteiros à espoliação e à opressão que alimentariam o desenvolvimento capitalista, enquanto a violência soviética contribuiu decisivamente para liquidar a mais tenebrosa ameaça às conquistas civilizatórias. Todas as guerras são abomináveis, mas há guerras justas e guerras injustas.

Ao propugnar como primordial a identificação das circunstâncias históricas e do caráter de classe das decisões e ações dos indivíduos, incluindo Stálin, Domenico Losurdo apresentou-se à batalha pela reabilitação de um método de análise, não da memória do sucessor de Lenin. Para cumprir a tarefa que abraçou, dedicou-se também a demonstrar como o falso moralismo do pensamento liberal, ungido ao patamar de ciência política pela filósofa alemã Hannah Arendt, ao redor do conceito de totalitarismo, é território pantanoso e irregular, sobre o qual as forças políticas e culturais se movem conforme seus objetivos de época.

Despidas de suas vestes históricas, certas categorias como violência, ditadura ou democracia estão sempre sujeitas a todo tipo de fraude positiva ou negativa. Subordinadas ao domínio moral, de valor em si, ficam absurdamente vulneráveis a manipulações de ocasião, para endeusar ou criminalizar determinados personagens. Basta esconder ou mistificar acontecimentos sórdidos, como as execuções de inocentes nos processos de Moscou, e Stálin poderia ser tratado como um santo em vida, como o foi. Ou absolutizar e exagerar esses mesmos fatos, e o mais famoso dos georgianos não passaria de um psicopata sanguinário.

No citado livro de Losurdo sobre o chefe dos comunistas soviéticos, fica patente como sua imagem transita do endeusamento à vilanização, dentro e fora da URSS. Aliado dos Estados Unidos e do Reino Unido contra os nazistas, a indústria ocidental da comunicação e do entretenimento o tratava como um herói dos povos até os primeiros anos do pós-guerra. Na medida em que se consolida a divisão do mundo entre os campos capitalista e socialista, no final dos anos 40, opera-se formidável campanha para desgastá-lo, apresentando-o como um tirano monstruoso, com o evidente intuito de paralisar o avanço do movimento comunista no mundo.

A estratégia antissoviética teve como pilares a amplificação dos números da violência política, o menosprezo dos êxitos socialistas e a ocultação das condições históricas (para começar, das permanentes ações imperialistas contra a URSS desde 1917). Essa orientação passou a se desenrolar nos marcos do moralismo sugerido, entre outros, por Arendt, mas também abraçado por certos setores da esquerda internacional, até antes da própria filósofa. Tal conduta lastreou uma teoria dos dois demônios, comparando-se Stálin e Hitler, chefes de regimes igualmente classificados como totalitários, com o desprezo parcial ou absoluto à essência dos projetos que corporificavam, aos interesses que serviam.

O “trabalho de sapa” contra Stálin atingiria novas proporções três anos depois de sua morte. Com ajuda da própria direção soviética, ironicamente. Razões de luta interna, entre dois grupos rivais, levariam o novo secretário-geral, Nikita Kruschev, a atacar duramente seu antecessor no XX Congresso dos comunistas soviéticos, em pronunciamento conhecido como Relatório Secreto, que de secreto nada teve, atribuindo-lhe crimes dos mais abjetos. Seu objetivo aparente, ao individualizar no falecido líder todos os problemas da construção do socialismo, era estigmatizar seus adversários como herdeiros de um legado maldito, ao mesmo tempo em que buscava construir pontes de diálogo com o campo capitalista e os Estados Unidos.

Neste informe aos delegados reunidos em 1956, denunciava-se o culto à personalidade de Stálin, embarcando-se no culto à vilania, que rapidamente seria apropriado pelos operadores da Guerra Fria contra o comunismo e o marxismo. Indisposto a debater as dificuldades reais do sistema soviético, econômicas e políticas, sobre as quais todos os seus integrantes tinham responsabilidade direta, o novo núcleo dirigente recorreu ao flexível método do moralismo para simplificar o debate e obter os resultados políticos pretendidos, abatendo a oposição interna.

O que Losurdo propõe, finalmente, é a crítica dessa armadilha implementada pelo pensamento liberal, tentando deslocar o embate entre sistemas, tendencialmente desfavorável ao capitalismo contra o socialismo após a Segunda Guerra Mundial, para um choque entre ditadura e democracia, dominado por ferramentas teóricas alienadas da história e embebidas em uma lógica moral bastante funcional aos velhos Estados imperialistas.

O contraponto à santificação de Stálin, uma das atrofias ideológicas da experiência soviética, não está em simplificadamente considerá-lo um vilão, um carniceiro da própria revolução que ajudou a realizar. Seu devido lugar na história somente poderá ser encontrado se investigarmos os fatores objetivos e subjetivos que determinaram sua época, interpretando suas ações, acertos e erros, vitórias e derrotas, façanhas e vilanias como partes integradas do complexo processo de consolidação do primeiro Estado socialista, frente a inimigos poderosos e dispostos a destruir, por quaisquer meios, a nação fundada sob a liderança dos bolcheviques.

Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi. Jones Manoel é professor de história, historiador, mestre em Serviço Social, educador e comunicador popular.

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