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“Eu ‘tô’ com saudade do planeta inteiro”: o alto preço pago pelas crianças na pandemia

Enquanto país debate a volta às aulas, pais relatam reações após confinamento e especialistas alertam para casos de obesidade, ansiedade, comportamentos agressivos e até depressão

O casal Claudio Mumme Harger da Silva e Natália Machado de Carvalho Harger, com os filhos Thomas e Laura Carvalho Harger.
O casal Claudio Mumme Harger da Silva e Natália Machado de Carvalho Harger, com os filhos Thomas e Laura Carvalho Harger.Lucio Telles
Marina Rossi

Enquanto especialistas e governantes se debatem sobre a difícil questão de retomar ou não as aulas presenciais, dentro de casa milhares de crianças estão sofrendo com o confinamento e apresentando sintomas de gente grande. “Eu com saudade do planeta inteiro”, disse Laura Carvalho Harger, 3, à mãe, a psicóloga e professora Natália Harger, 36. “Já passamos por várias fases nesta quarentena, já teve muito choro, muito medo, ninguém queria dormir sozinho, a menor, que já tinha desfraldado, voltou a ter escapes de xixi...”, conta Natália, mãe de mais um menino, Thomás, de cinco anos.

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Passado quase metade do ano vivendo dentro de casa e privadas do convívio social, as crianças estão apresentando uma série de sintomas psicológicos e físicos como reflexo desse tempo todo de privação, como explica o pediatra Ariel Levy. “A ansiedade talvez seja a maior queixa do ponto de vista psicológico, e se traduz em comportamentos agressivos e desrespeitosos com os pais, autoflagelação, comportamentos depressivos como não querer levantar da cama, choro fácil, dizer que o mundo vai acabar”, afirma ele. “E há também os sintomas físicos, como alguns tiques como ficar piscando sem parar, fazer xixi e cocô na calça e na cama, balançar a cabeça, roer as unhas, mexer no umbigo, lamber tudo”. O pediatra, que atende tanto em um consultório particular em São Paulo, quanto pelo SUS, diz que nas duas redes, a pública e a privada, os casos relatados são parecidos.

Assim como Natália, a consultora farmacêutica Paula Macedo Cerqueira, 46, também observou o reflexo dessa privação nos filhos. Mãe de dois meninos, de oito e três anos, ela conta que não imaginava que o mais novo pudesse apresentar um comportamento tão diferente nesse período. “No primeiro mês da quarentena, ele estava bem. Eu até falei que ele estava no céu, porque estava em casa, com o pai e a mãe dele presentes o tempo todo. Achei que ele não queria mais nada”, diz. “Mas depois, ele começou a ter um comportamento estranho. Corria pela casa, mas não de um jeito de brincadeira e sim de uma forma repetitiva, em um bate e volta. E também às vezes ficava aéreo, fazendo um gemido com a boca”.

O comportamento do menino acendeu um alerta nos pais, que buscaram ajuda profissional. Mas a mãe conta, no entanto, que ainda não foi possível realizar um diagnóstico fechado do que o seu caçula pode ter. “As consultas que fizemos foram todas online, ninguém o viu pessoalmente”, conta ela. Sem nenhum horizonte que aponte para o fim da quarentena, a família decidiu viajar para tentar mudar de ambiente, o que ajudou a aliviar os comportamentos repetitivos, de acordo com Paula. “Passamos uns dias no interior e isso ajudou bastante”, diz.

As reações das crianças e adolescentes a esse período extenso de quarentena esquentam ainda mais o debate sobre a viabilidade ou não da volta às aulas presenciais neste momento no Brasil. Não são somente os pais que estão com dificuldades para conciliar a rotina com as crianças em casa o dia inteiro. “Eu queria muito que meu filho voltasse para a escola, porque eu acho que faria muito bem para ele, nem que fosse uma ou duas vezes por semana”, diz Paula. Para ela, o comportamento diferente apresentado pelo filho está diretamente ligado ao momento de pandemia. “Esse comportamento dele tem a ver com a pandemia”, afirma. “Ver a avó e não poder abraçar, ficar muito tempo em casa, não ter onde gastar a energia, o clima ruim, as pessoas angustiadas, tudo isso ele sente”.

O psicólogo Ricardo Lana, que atua com pais e mães, diz que é importante criar estratégias para tentar mitigar os efeitos desse isolamento. “Eu tive caso de criança de cinco anos que falava que tinha medo de morrer, por causa do coronavírus”, afirma ele, que tem dois filhos, um de três anos e um de oito meses. “Agora que muito tempo de isolamento já passou, alguns pais e mães estão flexibilizando um pouco, até porque eles precisavam voltar ao trabalho. E tentar manter uma vida social e ter opções de lazer de forma segura tem sido algumas das estratégias”.

Mas essa flexibilização do confinamento, que pode ser uma ida ao parquinho, ou o retorno da pessoa que cuidava das crianças antes da pandemia, e até a volta do convívio com algumas crianças, também não está livre nem de riscos e nem de estresse. “Sair de casa e depois voltar e ter que fazer todo aquele ritual de tirar a roupa, tomar banho, também estressa a criança”, diz Lana.

Natália tentou tomar algumas dessas medidas para atenuar esse isolamento. A babá que cuida dos dois filhos voltou a trabalhar em casa e os pais buscam conversar muito com os filhos sobre o que eles sentem. “Eu brinco que a nossa quarentena é premium, porque a babá veio, eu moro em uma casa, tenho quintal”, diz ela. Mas ainda assim não foi fácil. “Até hoje o comportamento das crianças é muito flutuante. Há dias em que eles estão super briguentos, e outros que estão mais tranquilos”.

“Liberamos os adultos e confinamos as crianças”

A reclusão e privação das crianças nesta quarentena não trouxe apenas consequências psicológicas. Outro forte impacto que a suspensão das aulas causou, de acordo com o pediatra Ariel Levy, está na alimentação. “Do ponto de vista alimentar, a escola é uma grande parceira da alimentação da criança, é onde muitas vezes ela faz todas as refeições”, afirma. “Mas quando essa criança, especialmente a da escola pública, sai da escola, cabe aos pais darem o que acham o melhor ou o que, em muitos casos, é o que tem em casa”, explica.

Na semana passada, o Unicef divulgou uma pesquisa realizada em parceria com o Instituto Ibope, mostrando alguns dos impactos da pandemia nas crianças. O levantamento apontou que mais lares onde vivem crianças e adolescentes vivenciaram falta de comida na mesa nos últimos meses, devido a dificuldades financeiras.

Por outro lado, em muitos lares onde a comida não foi um problema, sua garantia na mesa tampouco foi a solução. “A gente vê que as crianças estão engordando, e eu vejo isso tanto na rede pública quanto na privada”, diz o pediatra. “Ansiedade, ignorância e o hábito de comprar alimentos mais baratos são as principais questões que eu vejo aqui em São Paulo, muito mais do que falta de alimento em geral”.

Por isso, Levy é categórico quando o assunto é o retorno das atividades escolares presenciais. “Sou absolutamente contra abrir shoppings e fechar escolas. É uma inversão total da prioridade da sociedade”, afirma. “Liberamos os adultos e confinamos as crianças”. Ele menciona uma série de estudos para concluir que talvez a escola aberta não represente, necessariamente, um risco de aumento de contágios. “Eu não quero impor nenhum risco às crianças. Mas o risco da escola fechada parece ser maior do que o risco do coronavírus para as crianças”. A opinião do médico, no entanto, é contrária à da maioria das pessoas ouvidas pela mais recente pesquisa realizada pelo Ibope. Segundo o levantamento, feito em agosto, 54% acham que as aulas presenciais só deveriam voltar quando houver uma vacina disponível.

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