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Pandemia de coronavírus
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

“A gente tem que saber qual é a doença que está nos matando”

A falta de testes para o novo coronavírus na população Yanomami causa subnotificação, mascara a real dimensão da pandemia, encobre a falta de controle da covid-19 pelas autoridades responsáveis e condena a morte dos indígenas à invisibilidade

Criança Yanomami na Região do Papiu (RR), Terra Indígena Yanomami
Criança Yanomami na Região do Papiu (RR), Terra Indígena YanomamiAna Maria Machado,
Majoí Favero Gongora Daniel Jabra Ana Maria Machado

Um recém-nascido yanomami acompanha sua família até a cidade de Santa Isabel do Rio Negro (AM) e, de volta à comunidade, todos começam a ter tosse e dores no peito. O bebê, com apenas 5 meses, passa a respirar com dificuldade e faz o teste para covid-19 junto com outras quatro pessoas: todos positivos. Nessa aldeia localizada na região do Marauiá (AM), muitos são os sintomáticos, mas não há testes suficientes. No dia 18 de agosto, o bebê, que também estava com malária, não resiste e morre na comunidade. Essa morte não entrou nas estatísticas oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), apesar do resultado positivo para covid-19.

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Na região do Marauiá, onde vivem mais de 2.500 pessoas, cerca de 10% da população da Terra Indígena Yanomami, a SESAI realizou apenas nove testes rápidos de covid-19: todos positivos. Outros 32 testes foram feitos pela Secretaria Municipal de Saúde de Santa Isabel do Rio Negro, município mais próximo das comunidades, todos igualmente positivos. Há muitos sintomáticos em diversas comunidades da região e, neste contexto, também foram relatados pelas lideranças indígenas quatro óbitos suspeitos de covid-19 ocorridos em julho e agosto, dos quais três estão associados à debilidade física decorrente de infecção recente por malária, doença endêmica na região.

Diante da falta de testes, os Yanomami estão totalmente desamparados e sem saber do que estão morrendo, como relata um Yanomami do Marauiá, agente indígena de saúde, em mensagem enviada em português, em 31 de julho, à Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana:

No rio Marauiá, aqui embaixo, tá tendo muito virose que é forte e até hoje tá apresentando também coisa de covid-19, essas coisas aí. Eu estou maior preocupado por causa disso, porque já foi 3 óbitos das pessoas né, em três comunidades. Isso é meu preocupação grande que tá acontecendo né. Como hoje tá iniciando de esse falecimento dos nossos parceiros, parente quer dizer, nossos parente daqui do rio Marauiá, eu fico muito triste. Não era para a gente tá morrendo disso, por causa de doença forte né. Então, eu digo: é pra SESAI de Boa Vista tá mandando teste de covid-19, para tá mandando também, para nós aqui do rio Marauiá, porque até hoje não está chegando teste rápido de covid-19. [...] Agora tá acontecendo, tá aumentando sintoma de covid-19, tá aumentando. O que a gente pode fazer? Como a gente vamos saber se é realmente covid-19? Se acontecendo daqui do rio Marauiá, como que a gente pode descobrir? Se foi de covid-19 que a gente tá morrendo? A gente tem que saber qual doença que tá matando a gente. Se não tiver esse teste rápido de covid-19, a gente não tem nem como descobrir que essa doença que tá matando a gente? Como que a gente vamos descobrir? Como que a gente vamos saber que é covid-19 que tá matando a gente?

Até hoje nenhum óbito de Covid-19 das comunidades do Marauiá entrou nas estatísticas oficiais da SESAI.

No final de abril, enquanto os dados da SESAI indicavam a morte de um único Yanomami por covid-19, uma mulher Yanomami grávida de sete meses é removida de sua aldeia na região do rio Catrimani (RR) para a maternidade, em Boa Vista, com muita falta de ar e fraqueza. Seu marido a acompanha. Na cidade, ela faz o teste para covid e o resultado é positivo. O bebê do casal nasce no dia 28 de abril e é imediatamente encaminhado à UTI, onde falece por complicações e dificuldades respiratórias. O corpo do bebê também foi sepultado em Boa Vista, seguindo protocolos de biossegurança, no entanto essa morte não entrou nos registros da SESAI, nem sequer como óbito suspeito de covid-19.

Um excerto do relato do pai do bebê, registrado em Yanomae e traduzido pela Rede Pró-YY, revela a gravidade do caso:

Depois que a Zita Rosinete teve febre, no dia seguinte, caminhamos até o posto de saúde. A Rosinete estava muito mal, desmaiou três vezes na Missão. Ela estava muito fraca e com muita febre na Missão Catrimani. No dia 27 de abril, à tarde, fomos removidos para Boa Vista. Chegamos em Boa Vista quase à noite e fomos para a maternidade. Ela estava com muita dificuldade de respirar, estava muito fraca e quase morreu! Fizemos exames no dia 28 de abril e depois de cinco dias chegou o resultado positivo para covid-19. Ela desmaiou no hospital e eu fiquei segurando ela de novo. Meu filho morreu. No dia 28 mesmo, no dia em que nasceu, ele morreu. Nasceu de manhã e à noite morreu. Eu não vi meu filho. A Zita Rosinete fez nascer o bebê, os médicos pegaram e disseram: “Levem ao hospital, à UTI”. Então, ele morreu. Eu fiquei muito triste! Eu estou triste ainda. O médico não disse por que ele morreu. Ele só me perguntou: “Ei, você é papai?” “Sim, eu sou papai.” “Desculpa aí, seu filho morreu. Ele estava com muita dificuldade de respirar e por isso morreu”.

No mês de maio duas mães Sanöma, grupo Yanomami que vive na região de Auaris, são encaminhadas à Boa Vista para tratamento de saúde de seus bebês em hospitais locais, onde acabam falecendo. Por cerca de um mês essas mães sofrem com a dor de não saber o paradeiro dos corpos de seus filhos, em um contexto já dramático de desrespeito aos rituais funerários tradicionais. Um deles testa positivo para covid-19 e o outro é diagnosticado como morte suspeita de contaminação pelo novo coronavírus. Os pequenos corpos são sepultados no Cemitério Campo da Saudade, em Boa Vista, seguindo protocolo de biossegurança. A morte desses bebês Sanöma também não entrou nas estatísticas da SESAI e seus corpos não retornaram às suas comunidades de origem para serem chorados por seus familiares seguindo as formas de luto cerimonial Yanomami.

Em julho, uma jovem Yanomami de 14 anos, com a saúde fragilizada pela malária, morre com falta de ar em sua aldeia na região do rio Mucajaí (RR), onde garimpos ilegais avançam violentamente sobre as florestas, rios e comunidades indígenas. Além de trazer a covid-19 para dentro do território, as áreas de garimpo e os próprios garimpeiros são também vetores de transmissão da malária. Nos últimos anos, essa doença tem se alastrado de forma descontrolada na Terra Indígena Yanomami e os altos índices da malária se tornam ainda mais alarmantes no contexto da pandemia, uma vez que é uma comorbidade que pode agravar o quadro clínico de uma pessoa com covid-19. Segundo dados do Ministério da Saúde, havia, em 2014, 2.896 casos de malária na Terra Indígena Yanomami e, cinco anos depois, em 2019, 16.613 - uma diferença assustadora de 473%. Em pleno estado de calamidade devido à pandemia, o garimpo ilegal está mais forte do que nunca. As organizações indígenas Yanomami e Ye’kwana estimam a presença de mais de 20 mil garimpeiros na Terra Indígena Yanomami.

Vista aérea de garimpos ilegais na TI Yanomami, próximo à comunidade Ye'kwana, região Waikás
Vista aérea de garimpos ilegais na TI Yanomami, próximo à comunidade Ye'kwana, região WaikásRogerio Assis/ISA

Dois dias antes da morte dessa jovem Yanomami na terra indígena, seus parentes são removidos a um hospital em Boa Vista e testam positivo para o novo coronavírus. A sobrinha da jovem falecida, com apenas 7 anos, ficou entubada alguns dias e, ao contrário do destino de sua tia, teve atendimento adequado e se recuperou.

Segue um trecho do relato da irmã da jovem falecida registrado na língua yanomama e traduzido pela Rede Pró-YY:

Hoje eu estou pensando certo. Hoje o corpo com essa doença de minha irmã mais nova está suspendido [embrulhado em folhas e suspenso em árvores, preparando para a cremação]. Antes eu pensei que ela só tivesse malária. Eu pensei isso antes, mas agora apareceram os rastros do comedor de coração, do comedor de pulmão [covid-19]. Então foi o rastro disso [que matou minha irmã]. Então, por causa disso, hoje eu estou pensando com clareza. “Ah, eram sintomas disso”. Agora acabei entendendo. Primeiro, eu só tinha pensado em malária. Depois de ir com minha filha inconsciente para o lugar onde se verifica os pulmões [raio-x], logo mostrei o peito dela [e a equipe médica disse]: “Aí está com sangue”. Foi aí então que entendi. Antes eu não sabia o que era, mas agora estou sabendo tudo!

A morte dessa adolescente não foi registrada pela SESAI, apesar da obviedade de seu quadro clínico.

A fim de mascarar a gravidade crescente da situação epidemiológica da Terra Indígena Yanomami e a falta de controle da mesma, a SESAI parece ter lançado mão de um recurso dissimulado: uma política deliberada de subnotificação dos óbitos pela doença. Desde abril, foram registrados oficialmente apenas seis óbitos, ou seja, uma taxa de letalidade de 0,9%, muito rara no planeta e desconhecida na América do Sul, a não ser em um país de registro sanitário tão duvidoso quanto a Venezuela (0,8%).

Após mais de cinco meses de pandemia, enquanto a Sesai registra em seu site apenas 6 mortes entre os Yanomami por Covid-19, a Rede Pró-YY apresenta um quadro bastante diferente: 08 óbitos confirmados e 09 suspeitos (sem investigação oficial), ou seja, um total de 17 mortes. Esse levantamento independente evidencia uma taxa de letalidade menos inverossímil (2,58%), pouco inferior à do Brasil (3,1%). A SESAI, entretanto, não contabilizou até agora as mortes registradas pela Rede Pró-YY e muitos outros óbitos suspeitos ainda em investigação que ocorreram em cidades e na TI Yanomami desde o início da pandemia.

Além disso, é alarmante o fato de que a SESAI não tem realizado testes suficientes na Terra Indígena Yanomami, especialmente, em aldeias onde a transmissão comunitária já pode estar ocorrendo. Segundo dados da Rede Pró-YY, há casos confirmados de contaminação em área em 13 das 37 regiões da Terra Indígena Yanomami. Nessas aldeias, o isolamento social entre os moradores é impraticável, consequentemente, é possível que cerca de 10.800 Yanomami e Ye’kwana já estejam expostos ao novo coronavírus, em um universo de cerca de 27 mil pessoas - mais de um terço da população total.

O fato de a SESAI usar unicamente testes sorológicos em área (e não testes RT-PCR) impossibilita o diagnóstico dos casos positivos a tempo de controlar a sua força de contágio. Com o uso de uma quantia muito insuficiente de testes rápidos em locais com altíssima chance de transmissão comunitária da doença, o órgão de saúde esconde a real situação da pandemia nas aldeias Yanomami e Ye’kwana.

É preocupante também o ocultamento do diagnóstico das mortes atrás de comorbidades. Entre a pior delas, encontra-se a malária, doença que se alastra exponencialmente na área indígena junto com os garimpos ilegais. Segundo o monitoramento da Rede Pró-YY, óbitos de pessoas com registro de infecção por malária em regiões onde a covid-19 já se faz presente não estão sendo investigados pela SESAI e assim, dá-se outro ocultamento. Entre os 17 óbitos confirmados e suspeitos contabilizados pela Rede (todos com os sintomas típicos de covid-19), oito estavam com malária: quatro óbitos confirmados e quatro suspeitos. Dos nove óbitos suspeitos, cinco tinham comorbidades conhecidas, ou seja, a contaminação pela covid-19 agravou o quadro clínico dessas pessoas, levando-as à morte.

Essa política de subnotificação dos óbitos de covid-19 produzida pela SESAI, seja por mera ausência de registro, falta de teste ou mascaramento dos óbitos atrás de comorbidades, cria uma equivocada impressão de baixa letalidade da covid-19 entre os Yanomami e Ye’kwana. Forja-se, assim, um falso cenário de controle do avanço do novo coronavírus na Terra Indígena Yanomami. Enquanto isso, os fatos mostram que a transmissão comunitária está totalmente fora de controle nas aldeias e as autoridades sanitárias parecem se dedicar ao mascaramento de sua negligência.

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