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Tribuna
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A pandemia e a luta indígena em um planeta que tem febre

A história dos povos indígenas mostra que a pandemia mata, a fome mata e a ausência do Estado mata. Matam em velocidades diferentes

Célia Xakriabá Edmundo Antonio Dias Netto Junior
Indígena no Acampamento Terra Livre, em Brasília.
Indígena no Acampamento Terra Livre, em Brasília.CARL DE SOUZA (AFP)

No território Xakriabá, na região norte de Minas Gerais, os estudos começam com os mais jovens ouvindo os anciãos e lideranças do povo. Com eles, nunca se aprende que em 1500 o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral. O achamento do país foi uma conquista que ainda perdura.

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O antropólogo Darcy Ribeiro, no livro O povo brasileiro, observou que a chegada da branquitude desencadeou, “desde a primeira hora, uma guerra biológica implacável. De um lado, povos peneirados, nos séculos e milênios, por pestes a que sobreviveram e para as quais desenvolveram resistência. Do outro lado, povos indefesos, que começavam a morrer aos magotes. Assim é que a civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais.”

Essa história perpassa o presente. Em 04 de abril de 2020, patrulhas e guinchos da Polícia Militar adentraram a terra indígena Xacriabá para verificar a documentação de motos e carros de membros daquele povo. Estavam em seu território, em quarentena, como milhões de brasileiros que, procurando resguardar-se da pandemia, ficaram em suas casas. Cenas de violência simbólica.

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro dizia que a pandemia que assusta o mundo é uma “gripezinha”, mais sábia (e antenada com as recomendações da Organização Mundial da Saúde) foi a decisão do povo Xacriabá, que desde o dia 19 de março, como medida de proteção, havia fechado seu território, onde o isolamento social é para cuidar da morada coletiva (para não adoecer a morada interior).

Nesse contexto pandêmico, o mês de abril, que tradicionalmente é marcado pelas rememorações da história indígena no país, pela realização do acampamento Terra Livre e por marchas públicas, evoca de maneira forte o momento inicial da conquista e as constantes violações a direitos dos povos originários. Este ano, os povos indígenas decidiram ficar em suas moradas. A sua história mostra que a pandemia mata, a fome mata, as armas de fogo e a violência matam, a injustiça mata, a colonização mata, o racismo mata, o veneno mata, a mineração mata, a ausência do Estado mata. Matam em velocidades diferentes.

A Constituição de 1988 reconhece a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos índios e seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Quando a Constituição se refere ao patrimônio cultural, ela fala de identidade, de ação, da memória de diferentes grupos que formam a sociedade brasileira. Ela protege formas de expressão, modos de criar, fazer e viver. As manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional também encontram proteção em um Estado que, portanto, é pluriétnico e multicultural. Mas nem todos compreendem toda essa diversidade e riqueza, como se elas caminhassem inelutavelmente para se tornarem homogêneas, ou seja, como se a tradicionalidade tivesse de se modernizar.

Para o presidente da República, por exemplo, “o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós...” A fala, que não esconde o preconceito, expõe um projeto governamental assimilacionista. Uma das facetas da aculturação imaginada é o que se pode chamar de “agriculturação”, a imposição de um modo de pensar a ocupação dos territórios indígenas, que violenta a identidade dos povos originários e tenta fazer nova catequese, a de uma visão de mundo e de modos de produção vindos de fora.

Para o projeto de agriculturação, os povos indígenas têm muita terra, mesmo que estejamos atrasados (há mais de 26 anos) em concluir a demarcação das terras indígenas, que a Constituição estabeleceu deveria ser concluída no prazo de cinco anos a partir de 1988. A fala de Jair Bolsonaro, de que, se eleito, não haveria “um centímetro a mais para demarcação” de terras indígenas, é expressão desse projeto.

A desterritorialização é uma das marcas da ditadura implantada no país em 1964, que via os indígenas como um obstáculo ao modelo de desenvolvimento proposto pelos militares. A Comissão Nacional da Verdade estima que pelo menos 8.350 indígenas tenham sido mortos no período de suas investigações. A não implementação de reparação e de medidas de não repetição, como as que foram recomendadas pela comissão, mantém pulsante o agir de violência da história brasileira. Segundo dados preliminares divulgados pela Comissão Pastoral da Terra, sete lideranças indígenas foram mortas em conflitos no campo no ano passado, maior número da década.

A “agriculturação” se manifesta em várias frentes, como no projeto de lei nº 191, apresentado este ano à Câmara dos Deputados, para, a pretexto de regulamentar a Constituição, permitir a mineração em terras indígenas, propondo um modelo etnocêntrico apartado da cosmovisão indígena.

Felizmente, as marchas e contramarchas da história deixam também avanços, como o fortalecimento do movimento indígena. São travas em períodos de retrocessos. É o caso também da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, promulgada no país em 2004, que estabelece a obrigação de que os povos indígenas sejam consultados previamente sobre proposições legislativas que os afetem diretamente, como o acima mencionado projeto de lei nº 191/2020.

A esse panorama de tensões, violações e ameaças a direitos se soma agora o enorme desafio trazido pelo novo coronavírus. A chegada da pandemia encontra um Poder Executivo federal em constante conflito com os demais Poderes, incapaz de com eles se relacionar em harmonia, como propugnado na Constituição. A nota positiva é que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional vêm estabelecendo limitações importantes à atuação do Governo federal. O sistema federativo, de sua parte, está fortalecido e permite que governadores e prefeitos ocupem o aparente vazio de poder que decorre, na verdade, da particular visão de mundo presidencial.

A pandemia que hoje todos vivemos cria um mundo que ainda não se mostrou, cujas bases estão em reconstrução. A sociedade busca urgentemente a cura e precisa não apenas do princípio ativo do remédio a ser encontrado, mas também de ativar nossos princípios de humanidade.

Como tem dito a primeira autora deste artigo, a humanidade tem fome de “ressentimentalizar” a coletividade e a solidariedade, de respeitar o luto e as cicatrizes do planeta (um planeta que há um bom tempo está com febre), de curar a casa interior, para não perder a esperança. É ela que move o reencantamento pela vida.

Célia Xakriabá é cientista Social, mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília e doutoranda em Antropologia pela UFMG. Edmundo Antonio Dias Netto Junior é procurador da República em Belo Horizonte, é representante do Ministério Público Federal no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades.

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