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Após mobilização de mães Yanomami por corpos de bebês mortos por covid-19, agentes do Governo vão à aldeia

Indígenas de Roraima recebem força tarefa do Ministério da Saúde e Exército em busca de solução sobre filhos sepultados fora da aldeia. Mães ficaram quase um mês sem saber onde eles estavam

Crianças do povo Sanöma, que vive na Terra Indígena Yanomami, na fronteira do Brasil com a Venezuela.
Crianças do povo Sanöma, que vive na Terra Indígena Yanomami, na fronteira do Brasil com a Venezuela.Sílvia Guimarães (Arquivo pessoal)
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Crianças do povo Sanöma, que vive na Terra Indígena Yanomami, na fronteira do Brasil com a Venezuela.
Mães Yanomami imploram pelos corpos de seus bebês
AME1745. MANAOS (BRASIL), 22/05/2020.- Fotografía del 14 de mayo que muestra a una indígena que usa tapabocas con la inscripción "vidas indígenas importan", durante el funeral del cacique Messías Kokama, víctima del COVID-19, en el Parque de las Tribos, en la ciudad de Manaos, Amazonas (Brasil). La pandemia del COVID-19 se está atacando de una forma muy violenta a las comunidades indígenas de América, unas poblaciones que, en muchos casos, viven en el olvido de sus dirigentes, con escaso apoyo de los sistemas sociales de protección y ajenos a los servicios de salud. El coronavirus SARS-CoV-2 está dejando miles de infectados y muertos en las comunidades nativas del continente, con un especial énfasis en la región amazónica sudamericana, donde la red sanitaria de países como Brasil, Colombia, Ecuador y Perú ya está colapsando por la alta cantidad de pacientes, muchos de ellos de pueblos originarios, que están llegando a sus instalaciones. EFE/ Raphael Alves ARCHIVO
A morte do futuro: covid-19 entre os povos originários
Indigenous men of the Xavantes tribe bathe in Xingu River during a four-day pow wow in Piaracu village, in Xingu Indigenous Park, near Sao Jose do Xingu, Mato Grosso state, Brazil, January 16, 2020. REUTERS/Ricardo Moraes
Nove indígenas Xavante morrem em 24 horas com sintomas de covid-19, denunciam lideranças

Três mulheres indígenas Yanomami precisaram encampar uma verdadeira saga para descobrir onde estavam os corpos de seus bebês, mortos em hospitais públicos de Boa Vista com suspeita de estarem infectados pelo novo coronavírus. Foram várias semanas até elas descobrirem que as crianças haviam sido sepultadas em um cemitério municipal, um destino bem diferente do que prega a tradição da etnia. Em tempos normais, os bebês teriam sido levados de volta à comunidade Auaris, onde nasceram, e seriam cremados. As cinzas seriam guardadas durante um ano, até serem misturadas a um mingau compartilhado entre os parentes. Um ritual de celebração àquelas vidas que foi interrompido pelo risco de contágio da covid-19, mas que veio acompanhado de uma violência contra essas mulheres: a falta de informações sobre os corpos de seus filhos mortos em equipamentos públicos por cerca de um mês. O caso repercutiu, e na última sexta-feira (26) a hashtag #criançasYanomami ficou por horas entre os assuntos mais comentados do Twitter, onde usuários cobravam que o Estado brasileiro as localizasse. Após a pressão, uma força tarefa do Governo foi destacada para o local. Entre eles, funcionários da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) para dialogar com os indígenas em busca de uma solução

Auaris é uma aldeia em Roraima, perto da fronteira entre Brasil e Venezuela. Está colada a uma base das Forças Armadas e é o lar de 150 indígenas. Elayne Maciel, coordenadora regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Roraima, também chegou a Auaris, junto com duas dezenas de médicos e enfermeiros militares para fazer um teste rápido de covid-19 e consultas na aldeia, a fim de evitar outras transferências de emergência em tempos de pandemia.

Maciel afirma que as mães dos bebês “entendem a situação mas não aceitam”, embora seja um risco para todos os indígenas se um corpo com covid-19 voltar para a aldeia. “Precisamos continuar dialogando para que eles voltem [com os corpos] quando for realmente seguro”, disse ela, durante o voo até a aldeia das mães Yanomami como parte de uma viagem à Amazônia, organizada pelo Ministério da Defesa.

Na aldeia, alguns indígenas ponderam. “As mãezinhas queriam ter seus filhos devolvidos, mas agora estão segurando porque estão com medo. Fica ruim pra levar na comunidade agora porque pode infectar mais gente. Eles vão permanecer sepultados por enquanto. O pessoal da Sesai está aqui conversando pra gente buscar uma solução”, contou por telefone ao EL PAÍS um indígena da comunidade que preferiu não se identificar. Em maio, as mães Sanöma ―um grupo da etnia Yanomami― e seus filhos foram levados a um hospital de Boa Vista com suspeita de pneumonia. Lá, as crianças teriam contraído o novo coronavírus e morreram. Elas não entendem o português e precisaram contar com a ajuda de várias pessoas para conseguir gritar ao restante do país suas súplicas para localizar seus filhos mortos.

Os Yanomami estão entre os indígenas brasileiros mais apegados às tradições ancestrais. Para eles, rituais funerários com um corpo presente fecham um ciclo. Sem isso, a comunidade fica submetida a um luto indefinido. A representante da Funai se diz consciente dessa dor, “uma tristeza”, até que os cadáveres possam voltar com os seus para serem incinerados num ritual coletivo na aldeia de Auaris.

“Sofri para ter essa criança. E estou sofrendo. Meu povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”, contou uma das mães à jornalista Eliane Brum, conforme publicou o EL PAÍS. Tentavam elas mesmas se recuperar da possível pneumonia enquanto viviam a dor de ver seus filhos desaparecerem na terra dos brancos. O apoio de parentes e a peregrinação deles para saber dos bebês foram, aos poucos, montando essa história. Descobriram que as crianças provavelmente estariam enterradas em um cemitério municipal, mas dizem que oficialmente não haviam sido informadas. E que uma exumação delas só seria possível em três anos.

Segundo a Sesai e o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Yanomami, os sepultamentos dos corpos de duas crianças indígenas com suspeita de covid-19 seguiram os procedimentos de manejo dos corpos conforme protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde e pelo Estado de Roraima. Em nota, afirmam que as mães foram comunicadas sobre os procedimentos funerários. Mas a informação é negada pela comunidade indígena. Nesta segunda-feira, o site Amazônia Real confirmou que duas crianças Sanöma estão enterradas em sepulturas comuns no Parque Cemitério Campo da Saudade, em Boa Vista. O corpo de um outro bebê Sanöma, que nasceu prematuro e tinha hidrocefalia, foi encontrado pela reportagem da Amazônia Real no Instituto Médico Legal (IML).

Em nota enviada neste domingo ao EL PAÍS, o Ministério da Saúde relata dois sepultamentos. Informa que um dos casos é de uma gestante Sanöma transferida para o Hospital Materno Infantil, gerido pelo Governo de Roraima, com suspeita de covid-19. Houve complicações no parto, feito prematuramente, e a criança faleceu por apresentar baixo peso, infecção e suspeita de covid-19. “A mãe foi devidamente comunicada sobre os procedimentos funerários com o acompanhamento de assistente social no momento de luto e encontra-se internada no hospital, em recuperação, sob guarda legal do Estado de Roraima”, diz a nota.

O segundo caso trata-se de uma criança Yanomami de uma comunidade indígena venezuelana, com diagnóstico de pneumonia, insuficiência renal e suspeita de covid-19. A criança e a mãe foram transferidas para o Hospital da Criança Santo Antônio (este gerido pelo município), mas morreu dois dias depois e foi sepultada conforme os protocolos sanitários para suspeita de covid-19. “A mãe da criança encontra-se cumprindo isolamento na Casa de Saúde Indígena (CASAI) Yanomami e foi orientada sobre os procedimentos técnicos de sepultamento para evitar a disseminação do novo coronavírus (COVID- 19) em sua comunidade de origem”, afirma o Ministério da Saúde.

Caíque Silva, secretário adjunto de comunicação da Prefeitura de Boa Vista, explica que o protocolo seguido quando há morte de indígenas exige que se acione o DSEI, que passa a ser o responsável pelo encaminhamento dos óbitos com o acompanhamento de familiares. O secretário informa que, além da criança Yanomami, outras duas da etnia Macuxi faleceram no Hospital da Criança Santo Antônio nos dias 25 de maio e 5 de junho. Essas duas crianças indígenas, que tinham apenas três meses, também foram sepultadas no Cemitério Campo da Saudade, mas com o acompanhamento da mãe.

A Sesai ainda emitiu outra nota na qual “se solidariza com os familiares, lamenta as mortes e a impossibilidade de as famílias realizarem os procedimentos funerais característicos de suas etnias”. Diz ainda que todo o ocorrido foi informado aos envolvidos por meio de indígenas intérpretes com ciência do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI). Mas lideranças Yanomami ouvidas pelo EL PAÍS sustentam que somente nos últimos dias as mães foram comunicadas oficialmente sobre o paradeiro de seus filhos. “As mães não tinham sido informadas. Elas estão sofrendo muito. O pessoal da Sesai está entrando na área e conversando pessoalmente com a comunidade. Estamos com medo porque, se levar os corpos agora [para a aldeia], podem morrer outros lá”, diz um indígena Yanomami.

Os indígenas da comunidade dizem entender a necessidade de cuidados imposta pela grave covid-19, mas querem diálogo para entender os riscos e ver o que é possível fazer nesse contexto. “Queremos saber onde estão e quando poderemos desenterrar os corpos para levá-los para a aldeia, onde nasceram e cresceram, onde seus pais, seus tios, seus primos estão morando, onde a alma das crianças pode ser feliz. Entendemos a necessidade dos protocolos [de biossegurança], mas precisamos ter informação e compreender o que vai acontecer. Precisamos saber quando os corpos serão devolvidos”, explicou o líder Yanomami Dario Kopenawa, na semana passada. Há um interesse em saber, por exemplo, quanto tempo o vírus sobrevive no corpo. “Se os infectologistas nos explicam, a gente entende e pode respeitar. E podemos transmitir essa informação para a comunidade”, conclui.

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