Trama para esconder Queiroz e ajudar Adriano da Nóbrega joga a milícia no coração da família Bolsonaro
Detalhes do inquérito mostram que Flávio Bolsonaro surge como chefe de suposto grupo criminoso e que ex-assessor manteve contato com ex-capitão do Bope foragido por caso Marielle
No inquérito que investiga o esquema de rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), o então deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro aparece como “líder” de uma suposta organização criminosa que tem Fabrício José Carlos de Queiroz como operador financeiro e personagem central. As 46 páginas da decisão do juiz Flávio Itabaiana Nicolau, que determinou a prisão preventiva de Queiroz na última quinta-feira, narra uma novela em que acontece de tudo. O ex-policial e ex-assessor do filho zero um do presidente Jair Bolsonaro movimentou quase três milhões de reais em sua conta bancária entre abril de 2007 e 17 de dezembro de 2018 e pagou dezenas de boletos pelo chefe, segundo o inquérito do MP citado pelo magistrado. Para além de seu papel como homem forte do gabinete na Alerj, o inquérito também reforça ainda mais o elo de Queiroz e da família Bolsonaro com Adriano Magalhães da Nóbrega, o ex-capitão do Bope que liderava o grupo miliciano Escritório do Crime, suspeito de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes e que estava foragido até ser morto em operação policial em fevereiro deste ano.
Os elos entre a família Bolsonaro e Adriano já eram conhecidos. Além de ter sido homenageado com uma medalha Tiradentes pelo então deputado Flávio Bolsonaro, entre os assessores de seu gabinete estavam Danielle Mendonça da Costa e Raimunda Veras Magalhães, ex-esposa e mãe, respectivamente, de Adriano. O inquérito do MP mostra que tanto Raimunda como o miliciano participaram do suposto esquema criminoso e fizeram vários depósitos nas contas de Queiroz. Estima-se que somente Adriano possa ter transferido mais de 400.000 reais para o ex-assessor de Flávio Bolsonaro.
Mas o envolvimento de Queiroz com milicianos não se limitava a esses vínculos empregatícios. O inquérito mostra que até o final do ano passado, às vésperas de o STF destravar as investigações sobre o esquema, Queiroz orientava Raimunda a permanecer escondida fora do Rio. Através dela, também seguia mantendo contato com o foragido Adriano. Em dezembro, Márcia Oliveira de Aguiar, esposa de Queiroz, e o advogado Gustavo Botto Maia, que representava Flávio Bolsonaro, foram até Minas Gerais e se reuniram pessoalmente com Raimunda. O encontro foi inclusive registrado em fotografia e consta no inquérito.
O ex-capitão do Bope, expulso da PM em 2014, estava foragido desde janeiro de 2019, após ter sido um dos alvos da Operação Intocáveis, realizada uma força-tarefa da Polícia Civil e do Ministério Público. Na ocasião foram presos cinco suspeitos de integrar a milícia, que agia nos bairros cariocas de Rio das Pedras e Muzema e era acusada de extorsão de moradores e comerciantes, agiotagem, pagamento de propina e grilagem de terras. O chefe Adriano tornou-se então um dos homens mais procurados do Brasil, até que em fevereiro deste ano foi morto pela Polícia Militar da Bahia em seu esconderijo ―o que levantou as suspeitas de queima de arquivo.
Em abril deste ano, o portal de notícias The Intercept divulgou documentos e dados sigilosos do MP fluminense que apontavam que Flávio Bolsonaro financiou com dinheiro público a construção de prédios da milícia no Rio. De acordo com os investigadores, que falaram com The Intercept em condição de anonimato, o atual senador estaria hoje recebendo o lucro do investimento dos prédios por meio de repasses feitos por Adriano da Nóbrega e Queiroz. O senador nega qualquer irregularidade e diz que as investigações são um ataque a seu pai.
O envolvimento com milicianos é tido como algo certo pelo magistrado em sua decisão. Outra prova de que Queiroz mantinha não só laços como também influência sobre esses grupos é a troca de mensagens entre sua esposa e um interlocutor não identificado que pede para que ele interceda a seu favor após ter sido ameaçado por “meninos” que dominam a região do Itanhangá. “Não teve briga, nada não. Só discussão mesmo. Eles foram lá na Tijuquinha, né, os ‘caras que comanda aqui’ e foi falar que eu bati nele, isso e aquilo. Uma coisa que não aconteceu. Os ‘meninos’ me chamaram. Entendeu? Só que eu conheço eles, né. Conheço os ‘meninos’ tudo. Aí, poxa. Aí eu queria que se desse para ele ligar, se conhecer alguém daqui, Tijuquinha, Rio das Pedras, os ‘meninos’ que cuida daqui”, pede o interlocutor.
Márcia repassa o contato para Queiroz, que promete ajudar a pessoa pessoalmente. “O Márcia, avisa a ele que é impossível ligar pra alguém, entendeu? Isso aí vai, uma ligação dessa acontece de eu estar grampeado, vai querer me envolver em algum coisa aí porque o pessoal daí vai estar tudo grampeado. Isso aí a gente, eu posso ir quando estiver aí pessoalmente”, disse.
O faz-tudo de Flávio Bolsonaro
Dos quase três milhões de reais que Queiroz movimentou em sua conta, pouco mais de dois milhões vieram de centenas de transferências bancárias e depósitos em espécie feitos por ao menos outros 11 assessores fantasmas com quem o ex-policial tinha relação de parentesco, vizinhança ou amizade. O dinheiro era então repassado para Flávio Bolsonaro através de outros depósitos ou pagamento de despesas pessoais. O Ministério Público do Rio identificou mais de 100 boletos de escola e plano de saúde pagos com dinheiro em espécie, além do depósito de 25.000 reais na conta bancária da esposa de Flávio Bolsonaro.
Toda essa movimentação financeira, descoberta pelo Coaf e investigada pelo MP, gerou reportagens na imprensa que levaram Queiroz para o centro dos holofotes no final de 2018. Após ser submetido a uma cirurgia para a retirada de um câncer no hospital Albert Einstein, em janeiro de 2019, o faz-tudo do clã Bolsonaro sumiu dos radares das autoridades. No período em que ficou escondido, o ex-policial seguia dando ordens através de mensagens de celular e “atuava de forma sistemática para embaraçar as investigações”, segundo o MP. Por exemplo, ele orientava os envolvidos a não comparecer em depoimentos ou a assinar folhas de ponto em branco na Alerj.
Ao longo de todo esse tempo em que agia nos bastidores, o magistrado aponta para uma “rotina de ocultação do paradeiro de Queiroz que envolvia restrições em sua movimentação e em suas comunicações”. Ele era monitorado por “uma terceira pessoa” que, por sua vez, se reportava a um superior hierárquico referido como “anjo”. Trata-se de Frederick Wasseff, advogado da família Bolsonaro que é o dono do imóvel em Atibaia onde Queiroz foi encontrado. Chamou a atenção dos investigadores o fato de que o ex-policial recebia dinheiro de terceiros para se manter. Por exemplo, a quantia de 174.000 reais em espécie, de origem desconhecida, fornecida para pagar as despesas no hospital Albert Einstein.
Apesar do esquema estampar as páginas de jornais, Queiroz seguia tentando manter sua influência política e continuava a falar sobre cargos comissionados a serem ocupados em Brasília. Essas trocas de mensagem acabaram vazando para a imprensa, no que foi considerado uma traição de um de seus interlocutores. Sobre o episódio, os investigadores encontraram uma conversa em tom de desabafo entre a filha de Queiroz e sua esposa: “Márcia, eu vou te falar. De coração. Eu não consigo mais ter pena do meu pai, porque ele não aprende. Meu pai é burro! Meu pai é burro! Ele não ouve. Ele não faz as coisas que tem que fazer. Ele continua falando de política. Ele continua se achando o cara da política”.
De acordo com o inquérito, o ex-policial e sua esposa eram sempre orientados a desligar o celular quando estavam na casa. Mas os cuidados não foram suficientes para que os investigadores descobrissem o paradeiro de Queiroz através “do rastreamento de fotografias encaminhadas para Márcia, tanto por seu filho como pelo próprio Queiroz”.
O mais recente capítulo de toda essa trama aconteceu em Atibaia, cidade do interior de São Paulo que também foi cenário da Operação Lava Jato, que acusou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por ter reformado um sítio nesse mesmo lugar com dinheiro de propina, o que levaria a sua condenação por corrupção. Além dessa coincidência, reivindicou protagonismo na trama Heloísa de Carvalho, filha do ideólogo e guru do bolsonarismo Olavo de Carvalho, com quem não mantém uma relação boa.
No dia da prisão de Queiroz, Heloísa publicou uma fotografia em seu Instagram comemorando ao lado amigo Bruno Todd em frente a casa de Atibaia onde havia sido detido. Os dois se gabavam de que muito antes já haviam dado o alerta por meio das redes sociais sobre o paradeiro de Queiroz. A informação que todos queriam estava no Instagram de Todd pelo menos desde o dia 20 de maio. “Desde abril, maio de 2019 que eu sabia que ele estava aqui. Eu recebi a informação através de um jornalista e descobri que ele vivia neste bairro e nesta casa em Atibaia. Desde o ano passado que eu falava que ele estava aqui”, contou Heloísa.
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