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A regra da Anvisa que prolonga o sofrimento de mulheres

Regra complica fornecimento do misoprostol, medicamento para o aborto legal seguro, para unidades de saúde do país

Protesto no Rio de Janeiro pela legalização do aborto.
Protesto no Rio de Janeiro pela legalização do aborto.FERNANDO FRAZÃO (AG. BRASIL)

Em janeiro de 2018, na cidade de Macapá, a psicóloga Daniele Sampaio sofreu um aborto espontâneo com 13 semanas de gestação. Orientada por seu médico, procurou a Maternidade Mãe Luzia para realizar a indução do parto. O que era para ser um procedimento simples acabou se prolongando por sete dias de sofrimento físico e psicológico.

Nesse tempo, Daniele foi submetida a procedimentos arcaicos, como a introdução de uma sonda no canal vaginal para estimular contrações uterinas, e não respondeu ao tratamento com ocitocina para dilatação do útero. Tudo isso enquanto aguardava compartilhando a enfermaria até mesmo com mães e seus bebês recém-nascidos.

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O motivo da demora para a realização do procedimento padrão indicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) nesses casos foi a falta do misoprostol, um medicamento listado como essencial para as maternidades brasileiras. Daniele só teve acesso ao remédio após o apelo de seu pai em uma publicação no Facebook, que sensibilizou a administração do hospital a providenciar o remédio, emprestado por outra instituição.

Quatro horas após usar o misoprostol, a psicóloga finalmente realizou o abortamento. “Foi um alívio, mas ao mesmo tempo uma indignação. Foi tão rápido com o medicamento que nem precisei de outra dose. Todo o meu sofrimento poderia ter sido amenizado se a maternidade tivesse o remédio no dia da minha internação”, lamenta Daniele.

O misoprostol, conhecido popularmente no Brasil pela marca Cytotec e atualmente vendido sob o nome Prostokos pela empresa Hebron, é um medicamento essencial para a saúde das mulheres. Pode ser usado na indução do parto com feto vivo ou morto, na prevenção e no tratamento da hemorragia pós-parto, no tratamento de aborto incompleto, provocado ou espontâneo, e na interrupção da gravidez. No país, está registrado para uso hospitalar em todos esses casos, exceto para hemorragia pós-parto.

Apesar da sua ampla utilização internacionalmente e de ser o fármaco mais estudado e investigado no campo da saúde sexual e reprodutiva no mundo, segundo relatório da OMS, no Brasil o medicamento ainda é cercado de estigmas. “O misoprostol tem que deixar de ser visto apenas como abortivo, ele tem que ser visto como um medicamento que salva a vida de mulheres”, afirma Maria Esther Vilela, médica e coordenadora geral de Saúde das Mulheres do Ministério da Saúde de 2011 a 2017.

Necessário, mas indisponível

O misoprostol faz parte da lista de medicamentos essenciais da OMS e da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). A disponibilidade do fármaco faz parte das exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o funcionamento dos serviços de atenção obstétrica e neonatal do Brasil. Mesmo assim, menos de 25% dos mais de 4.000 estabelecimentos com leitos de obstetrícia disponíveis para o SUS receberam o medicamento na última compra divulgada com detalhes pelo Ministério da Saúde, a de 2016. Na compra de 2018, o Ministério não detalhou o número de hospitais nos quais o misoprostol foi distribuído.

Apesar da compra centralizada não desobrigar os hospitais a obterem o medicamento direto com fornecedores, apenas 1.180 estabelecimentos de saúde realizam a aquisição do misoprostol diretamente com a Hebron em 2018. Os motivos para a escassez são diversos e esbarram na regulamentação restritiva da própria Anvisa, na burocracia para adquirir o medicamento e no estigma do aborto.

“O Brasil, infelizmente, eu acredito que seja o único país no mundo que tem um controle tão grande sobre o misoprostol. Nas farmácias é possível comprar medicações altamente perigosas para a saúde pública que são vendidas com receita médica e que, se tomadas erradas, levam à morte, mas o misoprostol não é vendido”, critica o ginecologista e obstetra Olimpio Barbosa de Moraes Filho, ex-presidente da Comissão de Abortamento, Parto e Puerpério da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO).

Já Jefferson Drezett, médico e coordenador por 23 anos do principal serviço de abortamento legal do país, o Hospital Pérola Byington em São Paulo, destaca que “nenhuma outra medicação usada nacionalmente, como quimioterápicos, anestésicos ou drogas que levam à dependência química ou que podem levar à morte, tem um controle tão rigoroso e exaustivo pela Anvisa quanto o misoprostol”.

O alto controle da Anvisa se deve à Portaria 344, de 1998, que colocou o misoprostol na lista C1 de substâncias controladas. Cada hospital público, para receber o medicamento comprado pelo Ministério da Saúde, deve fazer um cadastro na secretaria de vigilância sanitária do seu estado. As instituições privadas também fazem o cadastramento, mas a compra ocorre diretamente com um dos 12 distribuidores da empresa Hebron, com fiscalização da Anvisa e da Polícia Federal.

As vigilâncias estaduais têm autonomia para impor requisitos próprios e mais restritivos à compra do medicamento, com critérios e valores de diferentes gestores locais. Segundo Maria Esther, é a burocracia que torna o acesso ao medicamento restrito. Dados da empresa Hebron mostram que em 2010 foram compradas uma média mensal de 650 caixas do medicamento para todo Brasil.

Percebendo a escassez do misoprostol, o Ministério da Saúde promoveu a compra centralizada do fármaco no ano de 2011, após nove anos discutindo essa estratégia. “A falta de acesso ao medicamento causava a morte e o sofrimento de mulheres. O Ministério, em uma ação para mostrar a importância do misoprostol, fez essa compra suplementar, que não desonerava os municípios de também comprarem o medicamento para que ele não faltasse”, explica Maria Esther.

A escassez do Prostokos nos hospitais pode trazer como consequências imediatas o aumento do número de cesarianas e o uso de procedimentos invasivos para o tratamento do aborto. “A falta do Prostokos nos hospitais significa mais cesáreas, porque sem o medicamento para indução do trabalho de parto cerca de 70% dos partos normais virarão cesarianas”, afirma Olímpio.

A solução não está à venda

Outro problema atual relacionado ao misoprostol é a demora na aprovação de duas novas apresentações do medicamento, oral e sublingual, específicas para tratamento da hemorragia pós-parto, em tramitação na Anvisa desde 2013. Segundo Olímpio, o medicamento seria fundamental principalmente para pessoas de regiões distantes dos grandes centros de saúde, como a população indígena. “Isso certamente salvaria vidas, a hemorragia pós-parto é hoje a segunda causa de mortalidade materna no Brasil", reforça Olímpio.

O medicamento é indicado pela Organização Mundial de Saúde para prevenção e tratamento dessa ocorrência desde 2011, com resultados positivos em diversos países da África, Oriente Médio e Ásia, como Bangladesh, Afeganistão, Moçambique e Nigéria. No Brasil, as discussões para as novas apresentações iniciaram em 2013, em reuniões de representantes da Hebron com a Anvisa e o Ministério da Saúde.“Existe uma resistência da Anvisa de não aprovar o registro de um produto que não tenha estudos clínicos no Brasil. É um retrabalho. Há uma infinidade de estudos clínicos do misoprostol em outros países para hemorragia pós-parto. Os EUA aceitam o medicamento para essa finalidade, a Europa aceita, mas a Anvisa não”, problematiza Avaniel Marinho, diretor de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da empresa Hebron.

Segundo a Anvisa, a Portaria 344/98 “encontra-se sob revisão, conforme tema 1.12 da Agenda Regulatória da Anvisa, para fins de aperfeiçoamento das medidas sanitárias relacionadas aos produtos sujeitos a controle especial. Conforme boas práticas regulatórias, será possível a participação social por meio das ferramentas estabelecidas pela Anvisa, como audiências, consultas públicas”. O ponto citado da agenda regulatória dispõe sobre o controle e fiscalização nacionais de substâncias sob controle especial e plantas que podem originá-las.

A única menção à hemorragia feita nas respostas da Agência à reportagem é a de que o misoprostol, quando empregado de forma indiscriminada para interrupção da gravidez, além de provocar o aborto por estimular diretamente o miométrio e induzir a contração uterina, ocasiona também hemorragias e pode levar ao óbito materno, ou ainda, a graves complicações”.

A administração do misoprostol para hemorragia pós-parto, em substituição à ocitocina, é indicada para partos domiciliares e em locais distantes dos centros de saúde, de acordo com a OMS. O medicamento é mais estável, mais fácil de armazenar e de administrar, e tem um custo benefício favorável.

Mulheres brasileiras descobriram o uso abortivo do Cytotec

O acesso e o controle restritivos em torno do medicamento mostram o histórico diferenciado do Brasil em comparação a outros países quanto ao uso do misoprostol. Diversos estudos apontam que mulheres do nordeste brasileiro, juntamente com farmacêuticos, descobriram o uso abortivo do medicamento. Apesar de ser comercializado em 72 países no início dos anos 1990, somente no Brasil a utilização do Cytotec como método abortivo ganhou visibilidade, dada a magnitude e às polêmicas de seu uso, aponta a publicação “A experiência brasileira com o Cytotec”.

Hoje, o misoprostol, combinado à mifepristona, é um dos principais métodos utilizados nos países onde a interrupção da gestação é legalizada. “Eu digo sempre que, se houvesse justiça, o Brasil já teria ganhado um prêmio Nobel. Não os nossos cientistas, mas as mulheres pobres do Brasil que revolucionaram a obstetrícia. A partir delas, todo mundo começou a pesquisar e utilizar o misoprostol”, defende Olimpio.

No ano de 1986, o Cytotec começou a ser vendido nas farmácias populares do país para tratamento de úlceras gástricas, pela empresa Searle. Logo, o medicamento ficou conhecido por seu efeito colateral de provocar contrações uterinas e passou a ser indicado nas farmácias para gestantes que gostariam de interromper a gravidez.

Nos anos 1990, entre 50,4% a 84,6% das mulheres, principalmente do nordeste e do sudeste, abortaram utilizando o misoprostol. Um aumento significativo quando comparado aos números da década anterior, que variavam entre 10% e 15%. Os dados são apresentados no estudo “20 anos de pesquisas sobre aborto no Brasil”, de 2009, que recuperou mais de duas mil publicações nacionais sobre aborto.

“A vinda do misoprostol, mesmo que do ponto de vista clandestino, mudou o perfil do abortamento e dos primeiros socorros dos pronto-atendimentos obstétricos e ginecológico”, afirma Rodolfo Pacagnella, Presidente da Comissão Nacional de Especialidade de Mortalidade Materna da Febrasgo. Agulhas e objetos perfurantes, chás e ervas, venenos, líquidos cáusticos e injeções deram lugar ao aborto medicamentoso, que representava menos riscos, menor custo e maior privacidade. Diversos estudos apontam para a redução da mortalidade materna por aborto nos anos 1990, graças à entrada do medicamento no Brasil. Segundo o relatório do Ministério da Saúde durante Audiência Pública sobre aborto no Supremo Tribunal Federal em 2018, houve redução do número de internações e complicações por aborto entre 1992 e 2009 na ordem de 41% e 69% para os casos graves.

O caso misoprostol

O aumento do consumo do Cytotec nos anos 1980 chamou a atenção não só dos médicos e das mulheres brasileiras, mas de instituições ligadas à vigilância farmacológica que defendiam a retirada do medicamento do mercado. Nesse período, destaca-se a atuação da pesquisadora Helena Lutéscia, da Universidade Federal do Ceará. A então professora tomou conhecimento da utilização do misoprostol como abortivo através de relatos de estudantes que cursavam sua disciplina de farmacoepidemiologia. Acreditando estarem diante de uma "epidemia do medicamento", Helena e seus alunos fundaram o Grupo de Prevenção ao Uso Indevido de Medicamentos (GPUIM), que teve como primeira e principal pauta o uso racional e maior controle sobre o misoprostol.

O aumento de curetagens, a hipótese de desenvolvimento anormal do feto submetido ao medicamento (teratogenia), a vulgarização do uso e a falta de parâmetros para utilização do Cytotec foram os argumentos defendidos pelo GPUIM contra o medicamento. “Na verdade, não era encampar a luta pela restrição, mas colocar em discussão na sociedade o que estava ocorrendo. Uma verdadeira epidemia do uso de um medicamento que tinha sido comercializado para tratar problemas de úlcera e que era utilizado como abortivo sem nenhuma orientação, sem nenhum esclarecimento e sem ninguém assumir a responsabilidade sobre isso”, relembra Helena.

Dedicadas a mostrar os efeitos negativos do misoprostol, as pesquisas do GPUIM ganharam destaque em âmbito internacional com a veiculação de reportagem no jornal The New York Times e a publicação do artigo Misoprostol and congenital malformations na renomada revista científica The Lancet.

Entre os autores desse estudo está Walter Fonseca, primeiro pesquisador brasileiro a relacionar o misoprostol a uma má formação fetal muito rara, a Síndrome de Moebius. Bebês que nascem com a síndrome não possuem alguns movimentos da face e dos olhos. Para Anibal Faúndes, da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), esses estudos sobre teratogenia foram o principal motivo para a retirada do medicamento de circulação.

A proibição do medicamento ainda contou com outro importante setor. Em 1990 foi criada a Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime) e sua primeira grande pauta foi a retirada do misoprostol do mercado. Junto com o GPUIM, eles eram pilares principais de um movimento histórico de entidades ligadas à vigilância farmacológica pela retirada do misoprostol de circulação nas farmácias.

Entre os fundadores da Sobravime estavam a professora Helena Lutéscia e Elisaldo Carlini, coordenador da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária (SVS), futura Anvisa, entre 1995 e 1997, período em que a proibição do medicamento foi discutida. “Como a divulgação dessas informações geradas pelo GPUIM teve uma repercussão muito grande, a SVS teve que tomar uma atitude, uma ação imediata, porque era um escândalo”, conta Helena. “Eu não sei se precisaria ter um movimento pró-vida naquele momento forçando a retirada do misoprostol. A Sobravime era suficiente para isso”, conta Tânia Lago, médica que trabalhava na área técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde na época.

Como desdobramento, as vendas do misoprostol foram suspensas por decisão judicial em 9 de julho de 1991 no Ceará. Apenas uma semana depois, a SVS determinou a apresentação de receita médica para compra do medicamento em todo o país. As vendas do misoprostol caíram 80% em 1992. A proibição total da venda do misoprostol nas farmácias viria sete anos depois.

Tânia lembra que ficou sabendo da proibição a partir do contato do médico Anibal Faúndes, pois nada havia sido informado ou consultado pela Anvisa à área de Saúde da Mulher. “Aí eu fui falar com o Gonzalo Vecina [primeiro presidente da Anvisa], e ele disse que era uma portaria que já existia, da SVS, e que foi produzida por um comitê de experts de cada área.

No caso dos medicamentos de uso em ginecologia e obstetrícia, tinha uma comissão composta apenas por homens, ginecologistas e da área farmacêutica. A gente não sabia se tinha passado ou não por essa comissão. E lembro de falar com o Faúndes sobre ela, e ele comentar que a comissão era totalmente contra o aborto”, lembra Tânia. Estudos da época mostram que com o Cytotec fora de circulação houve um aumento de quase 50% das complicações infecciosas e hemorrágicas do aborto entre o período de máxima comercialização e sua proibição.

Difícil acesso ao medicamento causa gastos extras ao SUS

O histórico que levou ao controle do misoprostol a partir da portaria N°344/1998 traz consequências para saúde das mulheres brasileiras até hoje, além de impactar diretamente nos gastos do SUS. O uso restrito hospitalar, com obrigação de internação para ingestão do medicamento, seja na indução do parto com feto vivo ou morto, na interrupção voluntária da gravidez ou no aborto espontâneo, gera custos desnecessários para o sistema de saúde. Para Maria Esther Vilela, os procedimentos de aborto legal de até dez semanas e os abortos incompletos poderiam ser feitos em casa, mas as portarias da Anvisa tornam isso inviável.

Nos países em que a interrupção de gestação é prevista em lei, as mulheres não são internadas para realização do procedimento, explica Anibal Faúndes. “Essa é a grande vantagem do tratamento do aborto legal e do aborto incompleto com misoprostol, porque é bom para a mulher que não tem que estar separada da sua família, é bom para o serviço porque evita gastos e reduz o custo do atendimento enormemente, representando uma economia para o sistema de saúde”, afirma o médico.

A recifense Joana* faz parte das estatísticas de 2019 de mulheres que acessaram o serviço de abortamento legal. Um mês após ser vítima de um abuso sexual, a estudante de 19 anos percebeu que sua menstruação estava atrasada. Ela buscou apoio no Serviço de Atenção Integral às Mulheres e Adolescentes em Situação de Violência Pró-Marias, do Cisam para recorrer à interrupção de gestação prevista em lei.

Na enfermaria comum, Joana recebeu a primeira dose do misoprostol às 16h de uma terça-feira e foi orientada para a autoaplicação do medicamento de quatro em quatro horas. “Dividi a enfermaria com outras duas pessoas e seus acompanhantes, que não sabiam que eu passava pelo processo de interrupção da gravidez, tive sempre que pedir que as pessoas saíssem do local para eu aplicar o medicamento, era muito desconfortável".

Após aplicar duas doses, à meia noite a estudante foi informada que o medicamento havia acabado. “Fui perguntar às enfermeiras sobre o medicamento e as enfermeiras, que estavam deitadas, nem se levantaram para dizer que não havia mais medicamento para mim. Meu tratamento só voltou às 9h da manhã seguinte. Foi quando eu descobri que foram elas que se negaram a dar o medicamento."

Devido às horas de atraso na ingestão do misoprostol, o tratamento de Joana foi mais demorado, durando ao todo três dias, com um custo de cerca de R$ 1.200 por dia de internação para a instituição. Foram nove dosagens do medicamento e um procedimento de aspiração. A estudante acredita que se o uso do misoprostol pudesse ter sido realizado em casa ou em outro ambiente de sua escolha, teria sido melhor. “De toda forma, após receber o medicamento e as primeiras instruções, eu fiz o procedimento inteiro só”.

Os gastos do SUS com o aborto espontâneo, quando a mulheres acessam o serviço de saúde durante ou após o procedimento abortivo, também são significativos. O Ministério da Saúde estima que 25% das hospitalizações por aborto são decorrentes de abortos espontâneos. Em 2017, foram registradas mais de 200 mil internações por aborto, normal ou induzido, segundo o Ministério da Saúde.

Nos casos de aborto induzido, os números do SUS são ainda mais alarmantes. O Ministério da Saúde estima entre 938 mil a 1,2 milhão de interrupções voluntárias de gravidez em 2017, com um total de 210 mil hospitalizações decorrentes do procedimento.

O tratamento das complicações da interrupção voluntária de gestação inclui leitos hospitalares, medicamentos, bolsas de sangue, e até mesmo centros cirúrgicos, anestesias e o atendimento de especialistas. Segundo estimativas do Ministério da Saúde de 2018, o custo com hospitalizações por interrupção da gestação no SUS, em 2017, foi de 50 milhões de reais.

Mas a principal forma de evitar gastos do sistema de saúde e salvar a vida de mulheres que abortam clandestinamente é o uso do misoprostol como opção de interrupção voluntária da gestação de forma segura. “Eu penso que o Brasil é um país único em relação ao controle do misoprostol e é uma emergência internacional porque, de todos os países do mundo, é o que tem menos acesso a medicamentos para aborto seguro e uma maior população. É o único país grande no mundo que tem esse problema de milhões de mulheres sofrendo por causa dessas políticas do estado”, avalia Beverly Winikoff, presidente da ONG de saúde sexual e reprodutiva Gynuity.

Países como China, Índia, Rússia e Estados Unidos (dependendo da legislação de cada estado) possuem aborto legal praticado com misoprostol, seja no processo medicamentoso ou por aspiração. Outros países como a Nigéria, que não possuem a prática completamente legalizada e que tem uma grande população, não tem um controle tão grande em relação ao medicamento como o Brasil.

São inúmeros os países que realizam o aborto medicamentoso de forma segura, utilizam o misoprostol para prevenção e tratamento da hemorragia pós parto e tem o seu acesso facilitado na indução do parto. Ao contrário disso, as mulheres brasileiras, filhas e netas daquelas que descobriram o uso abortivo de um dos medicamentos obstétricos mais importantes do mundo, seguem interrompendo a gestação de forma clandestina e insegura, e enfrentando barreiras para ter acesso ao remédio nos hospitais até mesmo em casos em que seu uso é comprovadamente eficaz e pode salvar suas vidas.

Aborto medicamentoso é comum em países onde a prática é completamente legalizada

O aborto foi legalizado em 2012 no Uruguai após uma estratégia de redução de danos que durou anos. Para chegar até o status de legal e acessível no sistema público, o país implementou uma prática na qual os profissionais de saúde poderiam orientar mulheres que estavam decididas a realizar o procedimento, indicando os métodos mais seguros e eficazes, e a forma correta de tomar o medicamento.

“Essa foi uma estratégia que surgiu em 2002, um momento de grande crise econômica, quando algumas profissionais que trabalhavam na principal maternidade do país perceberam o aparecimento de mortalidade de mulheres por aborto de maneira incomum, com práticas inseguras, como uso de veneno”, relembra Lilián Abrascinkas, diretora de mulher e saúde (MYSU), do Uruguai. A partir disso, foi criada uma norma sanitária de redução de danos e riscos ao pré e pós aborto que entrou em vigor em 2004, com o intuito de evitar mortes por desinformação ou uso inseguro de práticas abortivas.

Para Lilian, o mais valioso dessa estratégia foi colocar em evidência a problemática do aborto clandestino, pois o modelo de redução de danos foi útil para diminuir a mortalidade materna, porém, dependia ainda do uso do misoprostol pelas mulheres, que conseguiam acessá-lo apenas de maneira clandestina e sem garantias sanitárias. A norma tinha seus limites, mas foi um primeiro passo para a legalização do aborto por lá. Hoje, o aborto medicamentoso é o mais utilizado no Uruguai.

O procedimento que traz maior autonomia e segurança para as mulheres é o mais utilizado também em Portugal. Lisa Vicente, médica responsável por implementar o serviço de interrupção da gravidez no país, conta que atualmente 71% das interrupções no país são feitas por meio combinação da mifepristona com o misoprostol. Só no serviço nacional público de saúde a taxa é de 97%.

"Antes do misoprostol, as mulheres de Portugal e de muitos países do mundo usavam outras formas de interromper a gravidez. Haviam alguns métodos horrorosos, como o uso de medicamentos que chegava a corroer a vagina da mulher. Depois, as mulheres começaram a utilizar o misoprostol, muitas vezes sem informação adequada, e por isso nós tínhamos ainda algumas complicações na interrupção da gravidez. A partir de 2007 elas diminuíram drasticamente, também porque diminuíram as curetagens e aspirações malfeitas. O fato de existir um aborto legal e gratuito nos hospitais, além das opções de contracepção, fez com que nós não víssemos mais complicações do aborto ilegal”, afirma Lisa. Desde que a estratégia foi implementada, Portugal teve apenas uma morte por aborto registrada.

Esta reportagem foi produzida com o apoio do edital Jornalismo Investigativo em Direitos Humanos, Aborto e Saúde Pública, uma parceria do Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos, Abraji e GHS.

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