_
_
_
_
_

Sebastián Piñera: “Não soubemos entender o clamor chileno por uma sociedade mais justa”

Presidente do Chile propõe uma política mais social e mudanças na Constituição para conter a gigantesca revolta

Sebastián Piñera durante a entrevista na última quinta-feira, no palácio de La Moneda
Sebastián Piñera durante a entrevista na última quinta-feira, no palácio de La MonedaSebastián Utreras

Sebastián Piñera (Santiago, 69 anos), um dos homens mais ricos do Chile e presidente do país em duas ocasiões, entre 2010 e 2014 e agora, desde 2018, enfrenta uma situação crítica. Uma revolta maciça e com altíssimos níveis de violência colocou à beira do abismo uma sociedade que, até um mês atrás, era considerada uma das mais estáveis e prósperas da América Latina. Nesta entrevista, realizada na última quinta-feira durante mais de uma hora em seu gabinete do palácio de La Moneda, Piñera admite a necessidade de construir um sistema mais justo e igualitário, com uma reforma constitucional ou até mesmo uma nova Constituição, mas afirma que não cairá "na tentação da demagogia e do populismo".

Pergunta. Quanto tempo o Chile pode resistir a este protesto?

Mais informações
Chile arde e ninguém sabe como apagar o fogo
O presidente do Chile prefere governar uma colônia, por ELIANE BRUM

Resposta. Cada pessoa faz a sua própria projeção, e eu sou otimista. Acredito que a democracia chilena, o Estado de direito e o senso comum vão prevalecer. O Chile tem um paradoxo: foi a colônia mais pobre da Espanha na América Latina e, nos últimos 30 anos, viveu provavelmente um dos melhores períodos da sua história. Em 30 anos conseguimos recuperar a democracia de forma exemplar, alcançamos um processo de crescimento e desenvolvimento que nunca havíamos conhecido, multiplicamos por cinco nossa renda per capita. Deixamos de estar na posição intermediária para liderar todos os rankings da América Latina. A pobreza diminuiu como em nenhum outro país da região, de mais de 60% a menos de 10%. Conseguimos também reduzir as desigualdades, menos do que gostaríamos, menos do que necessitamos, mas tendíamos a uma sociedade mais igualitária. E agora sofremos as três semanas mais violentas e disruptivas de que tenho memória. A que obedece esse paradoxo? Li os principais analistas elaborando teorias de todo tipo, muito contraditórias entre si.

P. Como o senhor explica?

R. Concordo com todas as teorias, embora sejam contraditórias. É uma maneira de expressar a confusão. Tenho minha própria hipótese: o mal-estar do sucesso. Das três décadas de avanços emergiu uma classe média ampla, pujante. O que acontece no Chile não se deve ao aumento de 30 pesos [cerca de 20 centavos de real] no bilhete do metrô; obedece a uma realidade que vinha sendo adiada talvez há mais de 30 anos e que não resolveremos em 30 dias. Não soubemos entender que havia um clamor subterrâneo da população por conseguir uma sociedade mais justa, mais igualitária, com mais mobilidade social, mais igualdade de oportunidades, menos abusos. Nas últimas semanas, vimos esse clamor explodir, e também vimos uma onda de violência, de destruição, provocada por grupos criminosos organizados.

P. De onde procedem esses grupos?

R. São de diversas origens. Acredito que hoje exista algo novo, diferente do que tínhamos há um mês, mas preciso de provas para poder afirmar.

P. O senhor, em certo momento, utilizou a palavra "guerra".

R. Guerra conta a violência, contra a criminalidade, contra o saque, contra a injustiça, contra a pobreza, claro. Na vida, você tem causas pelas quais está disposto a lutar, como conseguir que o Chile seja um país desenvolvido, sem pobreza, com maior igualdade de oportunidades, mas também tem causas contra as quais quer lutar. Eu dizia que dessa onda de violência participam grupos muito organizados que antes não conhecíamos no Chile, aos quais se somam a criminalidade tradicional, o narcotráfico, os anarquistas e muitos outros. Eles demonstram vontade de destruir tudo, sem respeitar nada nem ninguém. Queimaram e destruíram metade das estações de nosso sistema de transporte subterrâneo, vandalizaram mais de 2.800 ônibus, queimaram centenas de supermercados, estabelecimentos comerciais, pequenas lojas. Sem piedade, sem nenhuma contemplação por nada. Vamos identificar esses grupos, vamos levá-los à Justiça e eles vão responder por seus crimes. Ao mesmo tempo, houve outra situação, que foi a manifestação pacífica muito forte dos cidadãos do Chile para exigir um país mais justo, mais igualitário, com menos privilégios. E o Governo, o que fez? Atendeu a duas realidades. Combatemos a violência com toda a força da Constituição. Uma responsabilidade fundamental de todo Governo é proteger a ordem pública e proteger a segurança cidadã, e é isso que estamos tentando fazer, com muitas dificuldades, durante essas três semanas. Mas, ao mesmo tempo, implantamos uma agenda social que responde a muitos dos pedidos dos chilenos: aumentar as aposentadorias e a renda mínima assegurada, reduzir os preços dos serviços básicos como eletricidade, transporte público e pedágio nas estradas. Também estabelecer mais impostos sobre os setores de maior renda para financiar essa agenda social.

P. Estamos falando de uma mudança de modelo no Chile ou simplesmente de retoques?

R. O modelo em que acredito, e vou lutar para aperfeiçoá-lo, é a democracia com liberdade de expressão, com separação de poderes, com Estado de direito, com respeito pelas minorias. Acredito numa economia livre, aberta, de mercado, competitiva. Creio também num forte compromisso do Estado em lutar contra a pobreza e oferecer maior igualdade de oportunidades. O outro modelo é o bolivariano, que, em todos os países onde foi aplicado, trouxe sofrimento, perda de liberdade, estancamento.

P. Não há um modelo intermediário? O senhor fala de Estado social, mas foi preciso uma explosão para que se empreendessem certas reformas das quais não se falava meses atrás.

R. Nosso programa de Governo, com o qual vencemos as eleições, incluía uma reforma previdenciária que estava estancada no Congresso há mais de um ano e que agora irá adiante. Incluía também uma profunda reforma do sistema de saúde, tanto público como privado, para torná-lo mais equitativo e de melhor qualidade. E uma reforma da educação. Agora percebemos que a demanda social era mais urgente e mais profunda, e que é preciso acelerar o ritmo, mas quero dizer uma coisa: um dos riscos quando ocorrem essas situações é que os Governos se transformem em demagogos, populistas e irresponsáveis, e realizem gastos extraordinários. Com isso, apenas comprometem o futuro do país. Portanto, temos que ser muito responsáveis e não destruir as bases da economia. Nesses tempos de emergência, o Governo deve ter muita clareza sobre os rumos para não cair na tentação da demagogia e do populismo.

P. Voltemos à violência. Quem destruiu o metrô, com perdas estimadas em 376 milhões de dólares (cerca de 1,5 bilhão de reais)?

R. Em 15 minutos, de forma coordenada e simultânea, incendiaram sete estações do metrô. Das 136 estações, 80 foram queimadas, vandalizadas ou destruídas. Isso não é algo espontâneo nem casual. É obra de grupos criminosos organizados, mas naturalmente cabe às polícias, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário investigar essa situação e levá-los à Justiça.

P. Suspeita de agentes de regimes adversos ao seu Governo?

R. Não descarto nada. Recebi muitas informações, uma delas do exterior, que afirma que aqui houve intervenção de Governos estrangeiros. Mas quero ser prudente. Entregamos essa informação ao Ministério Público, que por lei é quem deve investigar os crimes no Chile.

P. O senhor encabeçou a arremetida regional contra o presidente Maduro. Suas suspeitas apontam para a Venezuela?

R. Escutei o que disse um alto funcionário do Departamento de Estado dos Estados Unidos, escutei o que disse a OEA [Organização dos Estados Americanos] e diversas organizações muito respeitadas. Não descarto nada, mas, como presidente do Chile, tenho que ser prudente.

P. Acredita que o Chile está a caminho da normalização? Os protestos continuam.

Piñera, na última quinta-feira, no palacio de La Moneda.
Piñera, na última quinta-feira, no palacio de La Moneda.S. U.

R. O Estado tem muitas responsabilidades numa democracia: resguardar a ordem pública, proteger a segurança dos cidadãos, proteger a liberdade e os direitos de todos os chilenos. Também tem a obrigação de respeitar os direitos humanos. Posso dizer o seguinte: essas emergências podem ter dois destinos. Um deles é serem um grande incentivo. As exigências dos cidadãos podem servir para que o Governo e a sociedade inteira trabalhem com mais urgência para conseguir maior justiça, maior igualdade. Isso seria bom para o país. Mas também pode ser que essas demandas sejam canalizadas fora da institucionalidade democrática e se transformem num terreno fértil para a violência, a demagogia, a criminalidade, o populismo. Esse seria um caminho muito ruim.

P. Ninguém duvida da qualidade da democracia chilena, mas se percebe uma importante insatisfação. Como se pode recuperar o interesse dos cidadãos pela política?

R. É outro paradoxo: tanto apreço pela democracia e tanto desprezo pela política e pelas instituições da República. Não somente no Chile. Vemos isso na Espanha, na Europa, em muitos países do mundo. No caso do Chile, sem dúvida que foi sendo gerada uma espécie de divórcio entre os cidadãos, a política e os políticos, e acredito que os dois lados devam refletir sobre isso. Os políticos têm que entender que não podem defender privilégios, que têm que trabalhar mais e melhor. Os cidadãos também precisam compreender que, se cairmos na profecia autocumprida de que a política é uma porcaria, que não serve para nada, que são todos corruptos ou incompetentes, quem vai querer estar no mundo da política? Os melhores irão embora. Quem vai ficar?

P. Há numerosas denúncias de violações dos direitos humanos por parte dos agentes do Estado, com 14 efetivos dos Carabineros [polícia militarizada do Chile] acusados de tortura, e há grupos violentos que continuam destruindo as cidades.

"Deveríamos ter entendido que tínhamos que distribuir melhor os frutos dessa prosperidade [no Chile]"

R. Os atos de violência começaram na quinta-feira 17 de outubro. Antes eram manifestações, incivilidades, evasões de pagamento. A violência de verdade começou na quinta-feira 17 de outubro, e na sexta 18 saiu do controle. Em poucos minutos, queimaram sete estações de um metrô que nos custou sangue, suor e lágrimas construir e que estávamos expandindo para que chegasse a quase todos os habitantes de Santiago. A situação era tão complexa, havia tantos atentados em tantos lugares diferentes, com tanta potência, com tanto planejamento, com tanta maldade, que não foi possível controlar a ordem pública. Naquele instante, como presidente do Chile, senti o dever de recorrer aos instrumentos que a Constituição confere ao presidente e decretei o estado de emergência.

P. Levar os militares às ruas tem uma grande carga simbólica num país como o Chile.

R. O que menos quer um presidente é decretar estado de emergência. Mas você não faz o que quer, e sim o que deve. O que significa estado de emergência? Que o presidente designa membros das Forças Armadas como os máximos responsáveis pelas diferentes zonas de emergência, com o mandato de proteger a ordem pública. A Constituição permite limitar o direito de ir e vir e o direito de reunião por um prazo máximo de 15 dias. Mas, quando decretamos o estado de emergência, aqui, nesta mesma mesa, nos reunimos com os principais ministros, com o chefe da zona de emergência de Santiago, o general Iturriaga, e tomamos todas as precauções possíveis para assegurar o respeito aos direitos humanos. Uma emergência é um período extraordinário com muita violência. Há mil carabineiros feridos.

P. E muitos civis feridos e pessoas com lesões oculares (1.778 e 177, respectivamente, segundo o Instituto Nacional de Direitos Humanos).

R. E muitos civis feridos, sim. Eu poderia ter decretado o estado de emergência e simplesmente esperar que todo mundo agisse de acordo com a lei. Mas, de imediato, chamamos o Instituto Nacional de Direitos Humanos, que é um órgão autônomo cuja missão por lei é proteger os direitos humanos, e dissemos: "Vocês terão todas as facilidades, poderão ingressar em todos os lugares, nas prisões, nas delegacias, nos hospitais, em qualquer lugar." Depois ligamos para as Forças Armadas e para os chefes das zonas de emergência para que respeitassem integralmente o protocolo de uso da força, que cumpre com todos os padrões de direitos humanos em âmbito mundial. Esse protocolo estabelece que a primeira linha é a presença de efetivos dos Carabineros ou das Forças Armadas para resguardar a ordem. Segundo, dialogar e convencer. Terceiro, se isso não for possível, o uso de alguns elementos dissuasivos, como caminhões com jatos d'água e bombas de gás lacrimogêneo. E só em última instância, e se for estritamente necessário, na chamada defesa própria privilegiada, o uso de escopetas de balas de borracha usadas por todas as polícias do mundo. Fizemos contato com a Defensoria Pública para que cada detido tivesse imediatamente um advogado que protegesse seus direitos. Quarto: falamos com o Ministério Público e com o Poder Judiciário porque o Estado de direito permaneceu intacto, para que tivessem especial diligência e preocupação neste período de emergência. Quinto: convidei pessoalmente a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos e o Human Rights Watch para que enviassem missões de observação ao Chile. Sexto: adotamos uma política de transparência total. Toda informação é publicada. Há 60.000 carabineros no Chile e eu os vi se esforçando com abnegação, com sacrifício, para proteger os direitos das pessoas. Se algum deles cometeu excessos, não respeitou os protocolos ou cometeu crimes, o Ministério Público investigará.

P. O senhor votou "não" a Pinochet no plebiscito de 1988, e, sendo presidente, atraiu a antipatia de boa parte da direita quando falou dos "cúmplices passivos" da ditadura, em referência aos civis. O que sente quando o acusam de violar os direitos humanos?

R. É uma acusação totalmente infundada. Fiz o possível por proteger meus compatriotas da violência. Se não o tivesse feito e tivessem continuado queimando, não só estações de metrô, mas também hospitais ou aeroportos, teria descumprido meu dever. Posso garantir que tomamos todas as providências e precauções para assegurar o respeito aos direitos humanos. Agora, que nestas semanas de violência podem ter ocorrido abusos, claro que sim. E terão que ser investigados e julgados.

P. O senhor admite a necessidade de reformar a Constituição. Descarta por completo um período constituinte e uma nova Constituição?

R. Acho necessário modernizar e aperfeiçoar nossa Constituição. Em nosso programa de Governo há uma proposta de reforma, e estamos dispostos a debater este assunto dentro dos canais da democracia. Qual é o poder constituinte que existe em nosso país? Nosso país é uma democracia, não uma ditadura.

A polícia detém um manifestante em Santiago, na última sexta-feira.
A polícia detém um manifestante em Santiago, na última sexta-feira.Esteban Felix (AP)

P. Refere-se ao Congresso...

R. O que eu digo é que discutamos todas as reformas, e se isto terminar numa modernização da atual Constituição ou em uma nova Constituição, fará parte do jogo democrático. Onde isso deve se dar? Dentro do marco que a própria democracia fixou para esse debate, que é o Congresso Nacional, o poder constituinte do nosso país. Mas primeiro discutamos quais são as mudanças que queremos e procuremos caminhos de entendimento. Quem quer burlar a institucionalidade democrática e fixar suas próprias regras do jogo está atentando contra a democracia.

P. É burlar as regras do jogo pedir um plebiscito para que a população decida se quer ou não mudar a Constituição e escolha o mecanismo para isso, como reivindicam alguns setores no Chile?

R. Nosso programa propõe que, quando o Congresso obtiver um acordo sobre uma nova Constituição ou uma Constituição modernizada, esse acordo seja ratificado pela sociedade através de um plebiscito.

P. Qual é a principal objeção à atual Constituição? O que o senhor gostaria de mudar?

R. Acho que é preciso um melhor equilíbrio entre os diferentes poderes do Estado, especialmente entre o Legislativo e o Executivo.

P. Menos presidencialismo?

R. Um melhor equilíbrio. Atualmente os poderes do Executivo são excessivos em relação aos poderes do Legislativo. Em segundo lugar, deve ser uma Constituição que permita maior participação dos cidadãos, projetos de lei de autoria popular, plebiscitos nas comunidades para que a sociedade possa discutir e resolver temas que afetam sua qualidade de vida. Eu tenho um projeto de reforma constitucional, posso entregá-lo agora mesmo, mas onde é preciso discuti-lo? Se formos democráticos, temos que discuti-lo dentro das regras da democracia e no Congresso.

P. Mesmo que o Congresso esteja desprestigiado?

R. Hoje em dia não há nenhuma instituição em nenhuma parte do mundo que tenha a confiança da sociedade. Veja o que aconteceu com a Igreja, com as organizações esportivas, os Parlamentos, os tribunais, as Forças Armadas, a polícia. Em todas as partes do mundo houve um distanciamento entre a sociedade e suas instituições. Devemos usar os instrumentos que a própria democracia nos dá para melhorar a qualidade da democracia, e isso passa por melhorar a qualidade das instituições, por melhorar a qualidade dos políticos. Por exemplo, uma das reformas que estamos propondo, que é de âmbito constitucional, é reduzir as verbas excessivas pagas aos parlamentares no Chile. Os parlamentares no Chile recebem uma verba superior a todos os países da OCDE, e o Chile não é o país mais rico da OCDE. Também reduzir o número de parlamentares, e isso já está em andamento.

P. O que acha das avaliações da direita radical? José Antonio Kast disse: "Que ironia, o Governo de direita que prometeu tempos melhores terminou com as ruas cheias de violência e delinquência, subindo os impostos e aprovando de joelhos todas as reformas que a esquerda queria".

R. Um comentário alheio à verdade e que pouco contribui para aquilo de que os chilenos necessitam hoje em dia.

P. Acha que esse tipo de direita crescerá, ou que a moderação terminará triunfando?

R. O Chile é e sempre foi um país moderado, por isso eu tenho muita confiança em que, depois destas semanas de febre, recuperaremos nossa natureza. O Chile é um país que sempre que precisou enfrentar a adversidade, e nos tocou muitas vezes (terremotos, maremotos, inundações), mostrou o melhor de si mesmo.

P. Haverá um antes e um depois? O Chile será diferente após estes acontecimentos?

R. O Chile mudou, todos mudamos nestas semanas, e o presidente também.

P. Em que sentido?

R. Em que entendemos melhor a mensagem das pessoas. O Chile teve três décadas notáveis, o chamado "milagre chileno", e conquistamos a democracia de forma exemplar. Normalmente, a passagem de um Governo militar para um Governo democrático gera caos econômico e violência social, mas não foi o caso do Chile. Além disso, experimentamos um progresso econômico monumental. Diminuímos a desigualdade, uma classe média forte emergiu, tudo isso foi um grande feito, mas não foi suficiente. Deveríamos ter entendido que tínhamos que distribuir melhor os frutos dessa prosperidade. Essa é a lição que aprendemos agora.

Um homem segura uma bandeira do Chile nos protestos de Santiago, na última sexta-feira
Um homem segura uma bandeira do Chile nos protestos de Santiago, na última sexta-feiraJorge Silva (REUTERS)

P. Um homem como o senhor, acostumado ao sucesso na política e nos negócios, o que sente quando tantos chilenos exigem sua renúncia?

R. O Chile é um país livre. Todos têm direito a pensar o que quiserem do Governo, do presidente, dos clubes esportivos. Eu respeito essa liberdade. Quem não respeito são aqueles que pretendem ser os intérpretes da sociedade. Essa gente não percebe que o mal-estar também é contra eles.

P. Para alguns analistas, seu Governo está simbolicamente acabado. Prometeu crescimento econômico, e a economia está encolhendo. Buscou o apoio da classe média, e a classe média saiu à rua para protestar. Garantiu que haveria segurança, e não há.

R. Ouvi a oposição. Há uma doença crônica da democracia e que está se tornando contagiosa no mundo inteiro, a de pensar que o trabalho do Governo e da oposição é se destruir mutuamente, com o que destroem também a democracia e a convivência. Acredito numa democracia em que há Governo e oposição, mas em que ambos tratam de colaborar a partir dos seus diferentes pontos de vista para que o país avance na direção correta. Agora deixe-me falar do crescimento. Durante o Governo anterior, porque é dele que vêm os críticos, o país cresceu em média 1,7% ao ano. O investimento e a produtividade caíram. No ano passado, o primeiro do nosso Governo, a economia cresceu 4%, liderando o crescimento da América Latina e superando o crescimento mundial. O investimento se recuperou fortemente. Portanto, foi um ano de muitos feitos no Chile. Criamos 70.000 novos empregos, reduziram-se as desigualdades. Este ano, 2019, foi muito difícil, porque a economia mundial se enfraqueceu. As duas grandes potências, Estados Unidos e China, se engalfinharam numa guerra comercial, e isso teve um impacto brutal no Chile, um país muito aberto, e afetou o preço de nossos principais produtos de exportação, o cobre, a celulose, a fruta. Nossa expectativa de crescimento era entre 2,5% e 3%. Essa previsão já não é mais válida, porque estas três semanas provocaram um dano gigantesco à economia, e não me refiro somente ao dano material, também reduziram a confiança dos consumidores e investidores. Tivemos que cancelar a cúpula da APEC e a cúpula do clima, com dor na alma. Acho que no mês de outubro a taxa de crescimento terá sido negativa. Mas quero dizer aos críticos, aos partidos de oposição, que eles participaram de Governos anteriores e, como nós, tampouco foram capazes de ver o que descobrimos agora com as manifestações.

P. Acha que conseguiu abrir canais de comunicação eficientes com a oposição?

R. No princípio foi muito difícil, porque viram uma oportunidade para tirar vantagem, e toda proposta do Governo era rejeitada: "Não é suficiente, nada é suficiente". Fizemos uma mudança de gabinete, substituímos grande parte da equipe política: "Não é suficiente". Apresentamos uma agenda social que significa um aumento do gasto em nosso país como nunca antes tinha ocorrido: "Não é suficiente". Agora estamos percebendo que chegou o momento da responsabilidade democrática, do compromisso republicano, da unidade, da grandeza, não da divisão nem da pequenez. Nos últimos dias fizemos grandes avanços com parte da oposição. Porque há uma parte da oposição que não tem nenhuma vontade de colaborar, e há outra parte da oposição que no meu entender está tomando atitudes mais construtivas e nos permitiu avançar muito em um acordo para levar adiante a reforma das pensões, a reforma tributária e, esperamos, muitas mais. Para aprovar a agenda social e a agenda de ordem pública são necessárias leis do Congresso, no que somos minoria.

P. Preocupa-o o dano à imagem internacional do Chile?

R. Claro. Tenho neste momento um milhão de preocupações, mas isso não significa que não tenha ao mesmo tempo a capacidade de estar atento, de escutar, de reagir, de tratar de canalizar estes difíceis tempos para a sociedade chilena através do caminho da democracia, do diálogo, dos acordos, das soluções, e não pelo caminho de incendiar tudo, como querem alguns.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_