“O VAR veio para arruinar o esporte mais precioso de todos os tempos”
O jornalista Arnaldo Ribeiro se coloca como maior inimigo no país da ferramenta e questiona as estatísticas que apontam diminuição de erros na arbitragem do futebol
O VAR estreou em competições nacionais do futebol brasileiro no dia 1º de agosto de 2018. Naquela quarta-feira, às 19h30, o Cruzeiro venceu o Santos por 1 a 0 na Vila Belmiro pelo jogo de ida das quartas-de-final da Copa do Brasil, que ficou marcado como a primeira vez do árbitro de vídeo em um torneio organizado pela CBF. Sem chamar muita atenção, a ferramenta foi usada somente uma vez, para revisar um suposto pênalti para o Santos que acabou não marcado. Mais de um ano depois, a realidade do VAR no Brasil é diferente, uma vez que semanalmente a ferramenta é alvo de discussão no meio do esporte. Como atesta Arnaldo Ribeiro, jornalista e comentarista esportivo: "Hoje você vai ao bar pra discutir o VAR, não pra discutir as atuações de Gabigol ou Everton Cebolinha. Os programas de debate só tratam disso".
Ribeiro fala com a propriedade de quem passou por Folha de S.Paulo, Estadão, Revista Placar e ESPN em 27 anos de carreira e, hoje, participa de programas no UOL e no SporTV. Sempre falando de futebol, o jornalista se notabilizou como o inimigo número um do árbitro de vídeo no país, posto que o coloca em oposição aos principais colegas de debates esportivos. "Eu me orgulho disso, mas envelheci 10 anos em 1", diz. "E me surpreendo com a passividade de pessoas do meio futebolístico, entre torcedores, jornalistas, jogadores e treinadores, com essa praga que está acabando com o futebol", continua.
Em agosto, quando a ferramenta fez aniversário de uso no Brasil, a CBF divulgou um balanço estatístico do VAR em seus campeonatos. Segundo o levantamento apresentado por Leonardo Gaciba, ex-árbitro e chefe de arbitragem da confederação, a porcentagem de acertos das decisões dos juízes em campo no campeonato brasileiro, onde a ferramenta só foi implantada neste ano, aumentou de 77% em 2018 para 98% em 2019. Os números não convencem Ribeiro: "O VAR acertou os lances na opinião de quem?", indaga. "A opinião do Gaciba não me representa". O balanço ainda revelou um tempo médio por checagem no árbitro de vídeo de 1 minuto e 54 segundos –24 segundos a mais que o recomendado pela Fifa, além de um gasto de 51.000 reais por jogo com o auxílio no vídeo.
O jornalista reclama das novas determinações da Fifa que vieram atreladas ao VAR, da qualidade da arbitragem brasileira e da "justiça discutível" trazida pelo uso da nova ferramenta. "Entendo uma certa injustiça em capitalizar no VAR toda a onda ruim que está assolando o futebol. Mas o VAR é o amplificador", diz. "Tem que tirar essas três letras na marra do futebol."
Pergunta. Você se considera o maior inimigo do VAR no Brasil?
Resposta. Eu sou o inimigo número um do VAR no Brasil e me orgulho disso. As minhas impressões sobre os malefícios do VAR precedem esse ano e três meses de uso da ferramenta no país. Não me surpreendo com a repulsa provocada pelo árbitro de vídeo nos jogos dos nossos times, que eu já tinha de antemão. Apesar de não ser a maioria, já vejo várias pessoas questionando o VAR.
P. E por que a repulsa contra o VAR?
R. O VAR amplifica, para o mal, a interferência da arbitragem no jogo de futebol, que é o esporte mais sagrado de todos os tempos, sob a égide da justiça, que é bem discutível. Ele aumenta o número de intervenções, interrompe o jogo, entra em lances interpretativos que não são capazes de serem elucidados. O VAR nasceu errado. As tentativas de adoção dele com parcimônia em ligas mais estruturadas, como a Premier League, talvez suavizem, mas ao mesmo tempo evidenciam os limites do árbitro de vídeo. Se o VAR veio para ficar, ele veio para arruinar o esporte mais precioso de todos os tempos.
P. Como você vê os números do balanço estatístico apresentado pela CBF e pelo Leonardo Gaciba? Eles apontam um aumento nos acertos de 77% para 98% com o VAR, além do gasto de 51.000 reais por jogo com a ferramenta.
R. O valor gasto é alto, sem dúvida, porque é muito mais gente está envolvida. Virou um negócio. O Leonardo Gaciba representa uma geração de árbitros, assim como vários comentaristas de arbitragem espalhados pelas emissoras, que hoje entram para falar do jogo no intervalo antes do vídeo de melhores momentos da partida, o que não tem o menor cabimento. E todos esses comentaristas eram árbitros interventores, que não conseguiam mediar bem jogos. As opiniões de Paulo César de Oliveira, Sandro Meira Ricci e Gaciba não me representam. Usar números, como o Gaciba fez, é muito fácil. Para quem que o VAR acertou 98% das decisões? Corrigiu mesmo? Quase sempre esses balanços estatísticos no final significam pouco. Hoje você vai ao bar pra discutir o VAR, não pra discutir as atuações de Gabigol ou Everton Cebolinha. Eu sou mais o bar de raiz.
P. E você acha que o VAR veio para ficar?
R. Os torcedores e clubes que não gostam dele não têm peso suficiente [para reclamar]. O torcedor já não conseguia mais comemorar um gol plenamente, ele já estava sacaneado. Agora, nem o jogador consegue mais comemorar um gol [porque precisa esperar a checagem da cabine de vídeo para validá-lo]. Se surgir um movimento contrário dos protagonistas do futebol, jogadores e técnicos importantes, talvez o VAR seja relativizado. Ele nunca poderia caber em lance interpretativo e quem bolou essa estupidez não entende que eu vou achar que é pênalti enquanto outros vão achar que não. Por isso também que os programas de debate agora só tratam de VAR.
P. Mas existem lances que não são interpretativos, em que o VAR ajuda.
R. Olha o exemplo da Premier League, que para minha tinha tudo e cedeu. Tinha só a questão da bola passar ou não a linha no gol, o que era visto em dois segundos. E tinha um código de conduta interessante onde o árbitro interferia muito pouco no jogo. Nesse pouco que interferia, o jogador respeitava. Tanto que os árbitros no campeonato inglês não precisavam ser atletas, eram "velhinhos" respeitados. Para lances objetivos, o VAR é aceitável. Mas se ele for utilizado em um lance "objetivo" como o impedimento, a regra do impedimento tem que ser revista, porque ela não faz mais sentido. Existem lances milimétricos que continuam não sendo elucidados. O problema do VAR é que ele vai além do recurso tecnológico, ele vem com as alterações de regra que a Fifa trouxe. O futebol é mágico e simples, não precisa de tanta interferência. Aí trazem adaptações da regra, manual de conduta do VAR, o tal do protocolo... Protocolo é coisa de remédio!
P. Quais alterações seriam necessárias na regra do impedimento?
R. A Globo inventou a maldição do tira-teima e contagiou vários dos meus colegas comentaristas. O cara presta atenção se o nariz do jogador impedido está à frente ou não e todos começaram a ver o jogo sob essa ótica. O auxiliar do árbitro tem uma fração de segundo para ver e ainda erra pouco. Quem quer cuidar dessas regras agora não sabe o cheiro da grama e fica vendo jogo no ar condicionado, traçando compasso e "reguinha" para lá e para cá, o que não tem nada a ver com a essência do esporte. Na semifinal da Libertadores entre Grêmio x Flamengo [1 a 1, no dia 2 de outubro], anularam um gol do Gabigol por impedimento que até agora não sabemos se foi correto. Em tese é um lance objetivo. Eu me surpreendo com a passividade de pessoas do meio futebolístico, entre torcedores, jornalistas, jogadores e treinadores, com essa praga. É uma praga que acabou com o jogo. O [Pep] Guardiola é uma das pessoas mais malas do futebol mundial e foi eliminado [da Champions League pelo Tottenham] com um "gol de VAR" aos 50 minutos do segundo tempo. Se esses caras grandes se colocassem a favor do jogo... Mas são politicamente corretos.
P. E quanto às novas regras que passaram a valer neste ano, como a determinação de anular qualquer gol caso o atacante toque a bola com a mão? Como você avalia?
R. Essas novas determinações são esdrúxulas e consequência do "pacote VAR". A regra que invalida gols em que a bola tenha tocado na mão é a coisa mais nefasta do futebol, porque faz com que os atletas tenham que jogar sem braço. É pior do que o VAR, é uma aberração, e o mundo do futebol também se mostra muito passivo quanto a isso.
P. No caso de outros esportes, como o vôlei e o tênis, a tecnologia é usada há alguns anos para corrigir erros dos árbitros. Por que a realidade não pode ser levada para o futebol?
R. Vôlei e tênis não são esportes de massa ou uma paixão como o futebol. E mesmo nesses esportes existem desafios, limites para o uso da tecnologia. No primeiro ano do uso no vôlei, por exemplo, vi o Bernardinho pedir o desafio [revisão do lance] não porque tinha dúvidas, mas para paralisar o jogo e desestabilizar o adversário. Sabe aquele provérbio: em time que está ganhando não se mexe? Mexeram no futebol. Para as coisas que estão sendo colocadas e não estão sendo adequadas, temos que fazer barulho para que elas sejam revistas.
P. Você não acha que um esporte profissional, de alto rendimento e com muito dinheiro envolvido não pode correr o risco de ter trabalhos prejudicados por um erro humano grave?
R. Os erros em pênaltis, por exemplo, vão continuar existindo. No Brasil e na América do Sul, o VAR é absurdamente caseiro e "caça-pênaltis" porque os árbitros aqui são mais influenciáveis. Esse argumento do trabalho jogado fora por erro de arbitragem... Quantos erros de arbitragem decisivos foram cometidos nos últimos tempos? Pouquíssimos. Não justifica essa defesa. O argumento da justiça é uma cascata que inventaram pra defender o VAR.
P. Você acha que o árbitro de vídeo escancara a má preparação dos árbitros, em especial aqui na América do Sul, além de jogar luz nas contradições das regras?
R. O VAR tem o dom de piorar árbitros. O Brasil já tinha árbitros ruins, mas piorou porque ficou muito fácil se eximir de responsabilidades. Eles ganharam uma bengala. O árbitro tem a função de mediar. Ele só é necessário porque, em alguns momentos do jogo, os 22 jogadores em campo vão divergir em uma situação. Aliás, em diversas vezes eles concordam com alguma situação e o VAR discorda. No River Plate x Boca Juniors [jogo de ida da semifinal da Libertadores, apitado pelo brasileiro Raphael Claus no dia 1º de outubro], o jogador do River foi derrubado na área com cinco minutos de jogo e ninguém reclamou. Depois, o Claus foi consultar o vídeo e marcou o pênalti, o que aí sim desencadeou uma reclamação do Boca. O jogo se resolve no campo, não na sala do árbitro de vídeo. Até nisso o jogador perde protagonismo. A reação do jogador muitas vezes indicava se o árbitro tinha acertado ou não, e isso pouco importa hoje em dia.
P. Mas essa personificação do VAR não é equivocada? O vídeo é uma ferramenta de auxílio, e quem se equivoca ou acerta nas decisões continua sendo o árbitro.
R. Entendo que sim. É mais fácil culpar o VAR porque são só três letras. Acaba sendo um pacote: as determinações novas e árbitros mal preparados que ficam encobertos pelo VAR protagonista. Entendo uma certa injustiça em capitalizar no VAR toda a onda ruim que está assolando o futebol. Mas o VAR é o amplificador. Essa sigla maldita... Tem que tirar essas três letras na marra do futebol.
P. Imaginando que o VAR pertence a uma realidade irreversível no futebol, qual mudança o faria aceitar mais a ferramenta?
R. Eu envelheci 10 anos em 1 na esperança de um relativização da coisa, de um recuo. Seja nas determinações, na interferência ou no número de paralisações. Esse "exagero" meu na oposição é na esperança de certo recuo, uma revisão da coisa. O protocolo do VAR nasce com o subtítulo da mínima interferência, quando na verdade ele multiplica a interferência e danifica o jogo.
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