Quando a imaginação se alimenta do rancor
No Brasil atual, há uma afinidade entre o medo da beleza livre e a opção por um projeto que ameaça as liberdades individuais
Em visita a Berlim, em 1930, ao ser questionado acerca dos riscos que a Alemanha corria diante da ascensão do nazismo, Freud respondeu que uma nação que havia produzido Goethe não sucumbiria a algo tão nocivo. O teórico da literatura Wolfgang Iser conta esse episódio para argumentar que a perda de status que as artes sofreram ao longo do último século deve-se, em boa parte, ao fato de que o processo de humanização por meio delas provou ser uma grande ilusão.
Ainda assim, no Brasil de 2018, acho difícil entender como alguém escolhe o lado contrário ao de Milton Hatoum ou Adriana Varejão, isto é, como alguém a quem tenham sido dadas as oportunidades sociais e culturais escolhe ficar do lado oposto ao da beleza. Não falo da beleza óbvia e repetida das celebridades ou do pôr do sol, mas daquela que nos desloca do cotidiano para nos transportar a um estado mais fundamental: um estado a que, por exemplo, um troço dolorido como “Jesus chorou”, dos Racionais MC’s, nos leva. Porque a beleza, além de não ser óbvia, também não é fácil e, com frequência, nos machuca.
Defender, aqui, a potência da arte e da beleza, quando estamos prestes a pôr a faixa presidencial em um apologista da tortura seria ingênuo como a resposta de Freud? Acredito, ao contrário, na relação entre experiência artística, imaginação e empatia, e que a empatia deveria estar na essência do que é a política. Mais especificamente, creio existir — entre aqueles que tiveram o devido acesso às artes — um alinhamento entre a relação que cada um tem com elas e seu posicionamento em relação a questões sociais. Em outras palavras, e perdoem-me o simplismo, parece-me que as manifestações de apoio ao candidato de extrema-direita foram, durante o segundo turno, consistentemente mais feias que aquelas ao candidato que representava a alternativa a ele.
De um lado, declarações racistas grotescas de Regina Duarte; do outro, o poema-manifesto de Arnaldo Antunes. Daquele, o registro de um ex-juiz de punho erguido enquanto seus parceiros destruíam a placa que homenageava uma vereadora assassinada; deste, a lucidez enérgica de Mano Brown. Lá, imagens falsas e toscas como a das mamadeiras em formato de pênis; aqui, a profusão dos belos ‘desenhos pela democracia’. Nas mãos deles, armas; nas nossas, as dos nossos amigos.
Não se deve, todavia, simplesmente supor uma separação essencial, genética, entre os lados. Gosto e política se discutem. Desde, pelo menos, as eleições de 2014, surpreende a capacidade de tantas pessoas letradas se deixarem levar por fantasias delirantes como a de uma iminente ditadura comunista. Para além da má-fé dos que nutrem tais paranoias, minha hipótese é a de que falta emoção na vida particular daqueles indivíduos. É natural: entre a rotina capitalista que achata os dias de todos nós e o moralismo perverso que, para tantos de nós, termina de extinguir as chances de redenção dos desejos e de exercício da alegria, sobram energia e rancor. Quando, nesse cotidiano, não se inserem a arte e a vivência afetiva de diferentes possibilidades por ela oferecidas, a imaginação ruma em direção ao nonsense e ao horrível.
A responsabilidade, porém, é de todos. É preciso que nós, que prezamos a beleza desconcertante e que experimentamos a imaginação de um modo saudável, tentemos entender o que podemos fazer para difundir essa experiência. E é preciso perguntar: onde é que instituições como a escola, a universidade, a mídia cultural falham ao compartilhar com o público seus objetos, isto é, textos literários, filmes, canções, obras de artes visuais?
Minha hipótese não dá conta de todo o problema, mas arrisco dizer que, por razões que vão da inércia à arrogância, sequestramos desse compartilhamento o que mais nos tem feito falta agora: a habilidade, inerente à arte, de comover. Por estarmos constantemente defendendo apenas o que as obras significam, seja alegórica ou historicamente, perdemos a chance de permitir ao leitor, ao público, a liberdade de trafegar por elas, de se deixar envolver.
Não conseguimos nem uma coisa nem outra: o público não sabe interpretar uma obra, tampouco consegue enxergar o outro. Só se vê, só entende a si próprio. O resultado são cenas como a dos fãs de Pink Floyd que não haviam entendido nada das canções que tanto adoravam — o que só descobriram depois de pagar os ingressos para ver Roger Waters nos estádios brasileiros. É claro que o lado de cá também, por outro viés, também só enxergou a si mesmo. Tanto que não viu se aproximar a imensa onda conservadora que teve seus anseios atendidos pela figura do nosso presidente eleito. O apreço ao belo causa uma cegueira que, entre outros, recebe o nome de preconceito. E nos distrai do que, por receio ou soberba, não queremos ver. Até mesmo nos faz nos apegar de tal modo a certas belas narrativas que insistimos em transformar líderes falhos em heróis ou mártires. Nosso erro é, também, estético.
Isso tudo não equivale a dizer que não há espaço para a pura celebração da alegria e do pertencimento identitários — de todos os lados, cada um de nós quer e precisa ser acolhido. No entanto, a quebra de regras que a experiência artística proporciona, aquilo que chamei de deslocamento, é uma vivência extrema das diferenças, que proporciona um reencontro modificado consigo mesmo. Por isso, a arte e a beleza requerem que saiamos de nós — que nos movimentemos ao ritmo do outro. Vem daí esse verbo tão importante: comover, mover junto.
Sabemos que Hitler e seus seguidores chamaram degenerada à arte que fugia às regras do jogo naturalista: aquilo que não copia a realidade, o que é indomável, assusta porque escancara as possibilidades do belo. Não comparo nossa situação à da Alemanha nazista, mas chamo a atenção para o fato de que, no Brasil atual, há uma afinidade entre o medo dessa beleza livre e a opção por um projeto que ameaça as liberdades individuais. Também vem daí, em boa parte, o ressentimento que os departamentos de humanidades, nas universidades, inspiram. E que precisamos combater, com informação. Não estamos fazendo orgias e usando substâncias alucinógenas nas universidades, pessoal; estamos, entre diversas ações, compartilhando outras formas de beleza, às quais vocês estão convidados. Se não sabem disso, a culpa também é nossa.
Ficarei no meu território: o da literatura. O que sobra a tantos estudantes senão se apegar ao texto menos complexo — aquele que gera menos possibilidades de erro de interpretação, mas também pouco espaço de interação — para driblar o receio de chegar à conclusão errada? Um receio que reiteradamente ajudamos a construir. Naturalmente, nem todo leitor apaixonado será um defensor dos direitos humanos, do mesmo modo que a arte não é o único caminho, nem o mais fácil, para a construção da empatia e o reconhecimento afetivo do outro.
A julgar, porém, pelo que essas eleições nos mostraram, talvez estimular o exercício da imaginação empática, a vivência afetiva das narrativas e poemas, seja um bom começo para criar gerações mais sensíveis à beleza do diferente e menos suscetíveis ao poder das emoções deletérias. Provavelmente, isso não será suficiente para mudar o resultado de uma eleição, mas talvez salve uma ou duas vidas.
Ligia Gonçalves Diniz é professora de literatura e autora de Imaginação como presença: o corpo e seus afetos na experiência literária (em preparação). Atualmente, é pesquisadora de pós-doutorado na UFMG.
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