Passa a bola para elas
Garotas que fazem aula de futebol em clube do Rio de Janeiro falam ao EL PAÍS sobre seus times e ídolos, mas também sobre a falta de visibilidade feminina no esporte e na narração de partidas
Encontrar um clube ou escolinha que ofereça aulas de futebol para meninas ainda não é algo tão fácil no Rio de Janeiro. O clube Gurilândia, em Botafogo, na zona sul, é uma das exceções. Lá, Lara Souza da Silva, uma menina de 11 anos, franzina, pode praticar à vontade seus toques e dribles precisos e dar suas arrancadas com a bola no pé. É apontada como uma das melhores das duas turmas montadas pelo professor André Luiz Varanda, o Deco. "Desde pequenininha o meu pai começou a treinar comigo. Ele e minha mãe sempre me incentivaram", conta ela, que torce pelo Flamengo e o Real Madrid e segue Marta, jogadora da seleção brasileira feminina, Messi e Neymar. "Muitas vezes já me falaram 'ah, você não vai jogar porque não é menino'. Mas quando eu jogo, eles se surpreendem. Muita gente critica o futebol feminino achando que é coisa de menino, que eles são melhores, que tem o chute mais forte...", explica Lara, que diz ajudar muitas meninas a gostar de futebol e ter criado uma página no Instagram dedicada ao esporte.
Em plena Copa Mundo masculina na Rússia, essas meninas dividem o tempo entre ir a escola, assistir a seus ídolos na televisão e praticar o esporte que mais gostam. Todas elas acompanham principalmente o futebol masculino e os ídolos homens. Gabriela Ferreira, por exemplo, é vascaína e gosta muito do jogador Yago Pikachu, atualmente em seu time. Também segue o Real Madrid e Porto, este último o time de seu avô, e tem como ídolos os jogadores Cristiano Ronaldo e os ex-futebolistas Eric Cantona e Zidane. Mas e o futebol feminino? "Assisto quando tem Copa do Mundo. E vejo mais pela internet, porque é muito difícil um canal que passe os jogos. Acho que isso deveria mudar, deveria repercutir mais na mídia. A gente tem que parar de valorizar só o futebol masculino, porque o feminino é tão competitivo e tão bom quanto, e cresce cada vez mais", opina a garota, de 13 anos.
Mesmo muito jovens, as garotas com as quais o EL PAÍS conversou possuem opiniões firmes sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que praticam futebol, sejam elas profissionais ou não. "A sociedade é muito machista ainda, com valores que vem do passado... Isso ainda repercute hoje. A gente ainda tem que avançar em muitas áreas, e o futebol é uma delas, porque as mulheres são tão boas no futebol quanto os homens", diz Gabriela Ferreira. Ela, por exemplo, sofreu na pele muito cedo alguns dos preconceitos e obstáculos. "Eu sofria muito bullying na minha antiga escola por gostar de futebol. Me chamavam de sapatão, falavam muita coisa de mim porque eu era a única menina que gostava de jogar no sexto ano. Na hora do recreio, eles [os meninos] não deixavam eu jogar. Falavam que eu entraria depois de dois gols, mas aí esses dois gols viravam sete, oito, dez gols. Acabava ficando parada no recreio inteiro", conta a menina.
Hoje estudando no colégio público Pedro II, diz ter começado a montar um time feminino na escola para ensinar suas amigas a jogarem. A situação ficou mais fácil, sim, mas ainda assim lá ela se limita a jogar apenas na educação física e com os meninos de sua turma. Prefere se dedicar ao esporte fora de lá. "Quando eu entrei de sócia da Gurilândia, há uns quatro anos, jogava umas oito horas por dia. No ano passado entrei na escolinha e me interessei ainda mais", conta.
Deco, o treinador das meninas na Gurilândia, conta ter sido iniciativa sua montar as equipes de futebol, abertas inclusive para os não-associados ao clube. Ele fala que a oferta de aulas para as meninas ainda é muito pouca na cidade, mas acredita que uma maneira de reverter isso é que escolinhas como a sua estimulem o interesse das garotas desde muito cedo, criando demanda para que mesmo os colégios ofereçam aulas e criem equipes femininas ou mistas. Lá no clube, ele realiza atividades que reforçam o trabalho em equipe e ensinem o futebol como arte e diversão. "As outras escolinhas, muito voltadas para os meninos, geralmente estimulam muito a competição entre eles e reforçam muito a questão do preparo físico. Não é o que busco fazer aqui ", explica ele. Um ambiente que seja acolhedor e que reforce o futebol arte é também um diferencial, já que as tradicionais escolinhas de futebol, inclusive as vinculadas a clubes como o Flamengo e o Fluminense, sofrem com a competição de grandes centros de treinamento infantil de grandes clubes internacionais, como o Barcelona e o PSG — este último, por exemplo, possui apenas uma turma de meninas em somente uma de suas cinco sedes no Rio.
Gabriela Pacheco, de 14 anos, é outra das alunas de Deco. Ela joga desde os seis anos e, ao contrário de sua xará, a menina Gabriela Ferreira, conta nunca ter sofrido nenhum tipo de bullying. Pelo contrário: "Jogo desde os seis anos. Meu pai sempre incentivou, sempre me levou ao estádio para ver o Flamengo jogar... Há umas três semanas teve um jogo de meninos do meu ano contra os professores da minha escola, e eles quiserem me colocar no time. Fui a única menina a jogar", diz ela, fã de Marta, Zico e Neymar. Ela também critica, contudo, a falta de exposição do futebol feminino. "No grupo da minha escola, não sabiam que existia a Copa de futebol feminino e nem que a seleção brasileira havia sido sete vezes campeã. Não sabiam que a Copa vai acontecer no ano que vem na França. Isso acontece porque tem muito menos mídia, que é quase totalmente voltada para o futebol masculino". Ela também critica a falta de mulheres em posições destaque na televisão, comentando ou narrando partidas — inclusive as masculinas. "Não sei se você viu, mas o Fox Sports está pela primeira vez colocando mulheres para narrar os jogos da Copa. Pô, eu acho muito legal isso", diz a menina. "Isso mostra como o futebol feminino tá crescendo. Me sinto representada, até para acabar com o preconceito que ainda existe", acrescenta.
Sua colega Gabriela Ferreira, que diz gostar muito da jornalista Fernanda Gentil, chega a vislumbrar a seguinte situação: "Se o Galvão Bueno cedesse por um dia seu lugar para uma mulher narrar o jogo, eu me sentiria muito representada. Porque o Galvão é muito conhecido, um dos mais importantes do ramo. Se ele, em algum jogo de grande interesse mundial, botasse uma mulher para gravar no lugar dele, ia repercutir muito. Ele é muito famoso, as pessoas diriam 'pô, que legal". Já a pequena Lara, ao ser indagada sobre o que acharia de ver mulheres narrando os jogos, resume a questão da seguinte maneira: "Seria muito importante para mim ver isso acontecendo".
O problema para Luisa Marques, de 16 anos, é que muitas vezes as mulheres envolvidas com o esporte não são avaliadas pelo seu trabalho. "Vi que postaram uma foto de uma juíza, super sexualizando ela. Então estão sempre olhando se ela bonita, não o que ela faz", diz a garota, que conta acompanhar pelo Instagram o que acontece no futebol feminino.
Estudar jornalismo e participar de coberturas esportivas é a maneira que Luisa pretende ficar perto do esporte, principalmente do futebol. "Acho que existe uma grande demanda para mulheres dentro do jornalismo esportivo. Como ainda são muito poucas, estão abrindo um mercado grande", argumenta ela, que quer se tornar repórter. Ela começou a jogar futebol desde cedo, com o incentivo de seu pai, mas a paixão pelo esporte só veio mesmo com nove anos. "Do nada veio um negócio e comecei a amar e a procurar tudo relacionado", conta a adolescente, torcedora do Fluminense e do Bayern de Munique. "Uma hora alguém considerou que só garoto joga. E a menina, para poder jogar, tem que jogar muito melhor para ser aceita entre os garotos. Tem sempre que ser superior, você não pode simplesmente gostar e jogar. É como se ela tivesse que provar algo".
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