Um cabaré feminista em São Paulo
Grupo ligado à Companhia de Revista ora faz gargalhar, ora assusta. É militante, mas não estreito. Espetáculo encerra temporada nesta quinta
Ela entra de olhos fechados, tateando o ar do teatro escuro. Com os braços esticados, os dedos no vazio, procura o centro do palco em que apresenta o espetáculo Cabaré ao Revés, em cartaz só até esta quinta-feira, 29, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Ao encontrar o microfone, à frente dos três músicos que a acompanham, sorri. E faz todo sentido que os primeiros momentos do cabaré aconteçam dessa forma, sob luzes apagadas, com a atriz, cantora e idealizadora do espetáculo, Natália Quadros, procurando o microfone, quase como se procurasse sua própria voz.
É que como ela explica, seja declamando poesias, seja cantando, é sua história de assédios e violências sofridas – comum às companheiras de palco e, possivelmente, a todo público feminino – que é cantada ali. De cara, começa com uma poesia musicada de Lana Lopes: “Não quero seus parabéns/ Quero seu respeito/ Não quero suas rosas/ Quero meus direitos/ Meu corpo, meus pelos, meu peito”. Depois, vai entremeando canções famosas de Chico Buarque, Mario Lago e Karina Buhr com músicas e poesias de autoras menos e mais conhecidas, além de interpretações de textos publicados na imprensa e comentários recolhidos nas redes sociais.
É um espetáculo feminista, e em defesa de minorias, que ora faz gargalhar, ora assusta pela crueza do que é dito e interpretado. É militante, mas não estreito. O gênero cabaré foi escolhido por Natália justamente por causa de sua dimensão política. “O cabaré sempre foi feito por artistas marginalizados. As putas, os provocadores, aqueles que traziam os assuntos tabus da sociedade, o subversivo, o marginal. Então me interessava trazer isso para a cena, mas sem ficar no lugar comum do divertimento. A intenção é questionar as convenções sociais”, diz a atriz.
Em um trecho, entremeia a interpretação da música de Karina Buhr Eu Sou Um Monstro – “Hoje eu não quero falar de beleza/ Ouvir você me chamar de princesa/ Eu sou um monstro” – com comentários sexistas e contra direitos humanos pinçados na Internet. “Direitos humanos para humanos direitos”, “O feminismo está estragando as mulheres”, “Quem quer ser feminista? Eu quero ser princesa” e por aí vai entre risos tensos da plateia. E, quando Natália canta, atrai toda a atenção para ela. Apesar de não ter formação como cantora, sempre usou da voz em sua carreira como atriz e, por isso, suas interpretações musicais são um pouco também atuação. Ela canta, gargalha e grita: “Eu sou um monstro!”, como se dissesse que sua voz precisa ser escutada.
“O cabaré é ácido, debochado. Ele traz isso na sua história, desde os cabarés franceses, alemães. É a convocação política por meio do deboche ou de forma bem dura e clara”, diz Natália, que é acompanhada no palco pelo pianista e mestre em Física Eduardo Dobay, pela flautista Monique Salustiano, que começou sua carreira aos 15 anos em um projeto desenvolvido pelo teatro Oficina na escola pública em que estudou, e pela percussionista Rayra Maciel. Em outro momento, a música Dizputa, de Carol Naine, define bem o espírito irônico do espetáculo: “O indivíduo atinge a idade adulta/ Ganha umas ideias dentro da cuca/ Perde uns cabelos acima da nuca/ Mas não aprende que a mulher não se disputa”.
Mas nem tudo é política – ou claramente política. Como todo cabaré, há um espírito boêmio que circula pelos números. Na apresentação tudo acaba ganhando ares de liberdade, de liberalização, reivindicação. O Samba na madrugada, de Francisco Alves, que tem sua versão mais famosa interpretada pela cantora carioca Dora Lopes, por exemplo, é um elogio à boemia, mas no contexto do espetáculo também um libelo à independência feminina: “Amanhã eu já posso morrer/ Sei que todo boêmio vai sofrer/ Eu não sou culpada/ De gostar de viver e beber na madrugada”.
Resistência também na coxia
“O cabaré começou a ser montado em 2016 e eu fui acrescentando músicas e criando uma espécie de fio condutor aos poucos, assim uma das intenções foi sempre usar o trabalho de artistas mulheres como a Carol Naine”, diz Natália. O espetáculo acontece na sede da Companhia da Revista, onde a atriz trabalha faz oito anos. E a história do grupo teatral independente é, assim como a de muitas outras companhias brasileiras, também uma história de resistência política.
Com 20 anos de vida, a Companhia da Revista passou a maior parte desse tempo em uma sede na praça Roosevelt, também na região central de São Paulo. O boom recente no preço dos aluguéis da cidade, somada a uma supervalorização da região, fez com que o grupo tivesse que buscar outro espaço. Faz quatro anos, estão na nova sede, construída no que antes era o espaço de um estacionamento pelos próprios atores e integrantes do grupo. Mas a manutenção financeira do espaço continua causando vertigens.
“A realidade é que espaços públicos que não têm fins lucrativos e que não têm patrocínio de alguma empresa grande lutam todos os dias para ficar de portas abertas”, diz Natália. Segundo ela, quando não há um edital para disputar financiamento, a corda fica no pescoço e abrir as portas é uma luta travada diariamente. A realidade, comum a outras companhias, é difícil e preocupante. A Companhia da Revista, por exemplo, não se dedica apenas às apresentações, mas é uma referência no trabalho de pesquisa das raízes do gênero de Teatro de Revista, tão importante na formação cultural brasileira.
Após a apresentação desta quinta-feira, o Cabaré ao Revés sai de cartaz para buscar incentivo por meio de editais e eventos públicos. O espetáculo já foi inscrito, por exemplo, na Virada Cultural de São Paulo e na Virada Cultural Paulista, que acontece no interior do Estado. Contudo, a participação nos dois eventos ainda não está garantida, dependendo do resultado do edital. Além disso, dia 12 de maio, fará uma apresentação em Penedo, no Rio de Janeiro, como parte do festival Pedágio Cultural, que acontece em diferentes cidades do interior fluminense.
Onde assistir?
A última apresentação do Cabaré ao Revés acontece na sede do grupo Companhia da Revista, em São Paulo, na Alameda Nothmann, 1135, região central. O espetáculo começa às 21h e os ingressos podem ser comprados com antecedência aqui.
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