O eterno verão de Zé Celso
Prestes a completar 80 anos, dramaturgo fala de uma nova montagem de ‘Bacantes’ e de um país em crise
Um dos grandes mestres do teatro brasileiro está prestes a completar 80 anos. Lúcido, sorridente, atuante. Muitos se perguntam qual é o segredo de José Celso Martinez Corrêa (Araraquara, 1937), o Zé Celso, para preservar tamanha energia e criatividade depois de 58 anos à frente do icônico Teatro Oficina – símbolo de resistência artística (e política) cravado no Bixiga, em São Paulo. Mas a verdade é que desse “xamã do teatro”, como ele gosta de se definir, não há segredos para se arrancar. Na entrevista concedida ao El País com os pés ao alto, em meio a uma nuvem de erva queimada, o dramaturgo vestido de um branco alvo como os fios de seus cabelos mostra que não tem assuntos proibidos, respondendo a esta altura da vida com voz suave tudo o que lhe é indagado. Isso, sim: sem fim, nem começo e pelos caminhos que lhe parecem.
A um desses caminhos ele volta sempre: a encenação de Bacantes, o clássico grego de Eurípedes montado pela primeira vez no Oficina em 1995 (em versão brasileira do diretor, no gênero “tragicomédia orgia”), que reestreou no Sesc Pompeia e logo passou ao Bixiga em outubro de 2016. A peça, de quase seis horas e com 52 atuadores em cena, reconstitui o ritual de origem do teatro na Grécia em 25 cantos e cinco episódios e tem música composta por Zé Celso (que também assina autoria e direção). Mais: a obra retorna mais uma vez, em 11 de fevereiro.
Encenada como ópera de Carnaval para cantar o nascimento, morte e renascimento de Dionísio, o deus do teatro, do vinho e das festas, ela tem lotado a casa tanto com habitués, como com novos assistentes – atraídos pela nudez libertária do elenco e às vezes também do público, pela genialidade do diretor, pela história ou por tudo ao mesmo tempo. A ideia é que os espectadores se integrem ao bacanal, e alguns deles terminam despidos pelos atores. Na primeira versão, isso aconteceu com Caetano Veloso. Por causa do sucesso orgiástico de Bacantes, Zé Celso ganhou ainda mais força e voz, voltando à carga em seus temas preferidos: teatro, política e xamanismo – que para ele são um só.
“Bacantes tem essa coisa de todo mundo ser um indivíduo, totalmente autocoroado, mas no meio da multidão, sujeito à natureza e a tudo, né? Como Os sertões”, conta Zé Celso, que diz voltar sempre aos mesmos livros. Um deles é justamente o clássico de Euclides da Cunha, que ele estima ter lido “umas 20 vezes” e que adaptou ao teatro na virada do século XXI, seguro da potência de um texto que define como “a Divina Comédia brasileira”. Foram cinco peças sobre a Guerra de Canudos, no interior da Bahia, que somam 27 horas de teatro encenadas Brasil afora e inclusive na Alemanha.
Os sertões faz o Zé pensar no Brasil, claro, e o Brasil, para variar, não está para principiantes. Ele se diz “horrorizado” com a onda de conservadorismo e com Governo atual – “É um fracasso”. Mas também anda desgostoso com a “esquerda brasileira”: “A esquerda hoje dia tem um problema extraordinário. Ela precisa de um programa de economia, mas tem também de se livrar dessa coisa fascista das palavras de ordem”, afirma. E cantarola com desdém: “O povo unido/jamais será vencido... O povo... Isso não vai unir ninguém!”.
Nas horas em que impera a “ladainha” em um mundo “de Prometeu acorrentado”, é que Zé Celso traz à tona o xamanismo em seu sentido mais amplo, quase filosófico. E o assunto ganha fôlego com uma de suas leituras mais recentes: A queda do céu, um relato do xamã e porta-voz dos Yanomami Davi Kopenawa para o etnólogo francês Bruce Albert que foi publicado em 2015 pela Companhia das Letras. “O livro é impressionante, porque ele conta todas as seções xamânicas que fez. E ele lembra de todas. Pela primeira vez, a cultura ocidental pode entender o que acontece com esses índios, que foram execrados durante anos. Eles têm lideranças poderosíssimas”. Precisaríamos de mais xamanismo e menos política? “Mas o xamanismo é político”, responde ele, que certa vez ganhou de Mãe Stella de Óxossi, do candomblé na Bahia, a honraria de “Exú, senhor das artes cênicas”. "É o título que mais me enche de orgulho."
À escola com Temer
Agora que Temer, seu ex-colega de faculdade, não é mais "só o vice", Zé lhe dá um conselho: “Você é uma pessoa, eu sei, cedeu à tentação. Mas saia dessa o quanto antes!”.
Para Zé Celso, duas coisas podem salvar o país da crise política em que começou a mergulhar em 2014: o xamanismo, claro, e a arte. O que ele procura é juntar as duas coisas, rumo à "revolução cultural" que o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica prega como a única saída para esses tempos obscuros. Ele já pensava assim quando viveu exilado em Portugal durante os anos de chumbo da ditadura militar e, mais atrás um pouco, no década de 50, quando era colega de Michel Temer na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Agora, mais ainda.
O dramaturgo lembra de quando encontrou o atual presidente em uma visita que fez com o ex-senador Eduardo Suplicy ao Congresso. “Falei para o Suplicy que a gente já se conhecia. E o Temer estava igualzinho. Disse que tinha uma grande admiração por mim, que me olhava na faculdade e me achava 'altivo' ou algo assim”. Agora que Temer não é mais "só o vice" e que o Teatro Oficina anda lotando com atos de protesto organizados “contra o golpe”, Zé lhe dá um conselho: “Você é uma pessoa, eu sei, cedeu à tentação. Mas assim não dá. Isso vai te levar à pior. Você devia sair dessa o quanto antes!”.
O momento parece adequado para desvendar o segredo desse verão eterno de Zé Celso. Ele não só concebeu e dirigiu a nova Bacantes, como atua em cada encenação de seis horas da peça, acaba de concluir sua participação no longa-metragem As mortes de Horácio, dirigido por Mathias Mangin, trabalha em uma nova montagem de O rei da vela para este ano e segue firme no conflito que trava há 37 anos com Sílvio Santos. "Aprendi muito com o Sílvio Santos. Imagina? Ter como antagonista o líder do capital financeiro no Brasil? Ele já virou meu amigo". O apresentador de TV, à frente do Grupo SS, é dono do estacionamento que fica nos fundos do Oficina e há tempos cobiça o terreno do teatro, desde 2010 tombado como patrimônio cultural.
É bastante coisa aos 79 ("Faço 80 só em 30 de março"). Era o que planejava? “Nunca programei nada, nem pensei que sobreviveria tanto. Tenho o coração ruim, sou cardíaco”, responde. Mas busca no passado e conclui que a chave está na arte. “Como pessoa em teatro, fui desenvolvendo um conhecimento cada vez maior do ser humano, porque trabalhei com muita gente, com muitos públicos, em muitos lugares. A gente viveu de teatro, e isso é uma grande vitória”. No mais, diz que bebe vinho, fuma maconha e toma guaraná em pó todos os dias, há 50 anos. Mas não garante que essa seja a receita.
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