Prefeito Doria, seu maior desafio será o de sair da bolha
Especialista em mobilidade pede que o novo prefeito de São Paulo olhe com atenção para as licitações de ônibus, ampliação das calçadas e ciclovias
Havia no ar, desde 2 de outubro, uma curiosidade a respeito do seu cotidiano. Ser designado ao comando de uma das maiores cidades do mundo mexe com qualquer um. E pede um "banho de cidade": ir à rua em busca dos problemas, costumes, agruras, discrepâncias, belezas, virtudes, percepções, questionamentos. E de conhecimento e vivência sobre tudo aquilo que lhe espera.
Esqueça a campanha nas ruas, período festivo conhecido por cegar postulantes e citadinos. Ali o senhor não viu a cidade. Falo de vivência real, a partir do ponto de vista que interessa: o dos cidadãos de São Paulo, com toda a sua complexa multiplicidade. Daí, prefeito, a curiosidade. Motivada não por coluna social, mas pelo questionamento implacável, desta cidade, sobre qual é a capacidade do João Doria de compreender São Paulo.
Seu desafio mal começou. Não com a cidade. Mas, sobretudo, com o senhor mesmo. Explico:
1. O bom gestor precisa ser político
"Não sou político, mas sim um gestor, um administrador, um empresário". Isso foi ecoado, prefeito, durante toda a sua campanha eleitoral – assim como as promessas, muito bem recebidas pelo eleitorado, no contagiante e irresistível discurso da eficiência privada aplicada ao setor público.
Consumada a posse, vamos falar sério: não imagino que o senhor esteja mesmo comparando coisas tão diferentes de forma tão simplista. Modelos de gestão privada e pública demandam igualmente planejamento, organização, execução e controle – sim! Mas, no resumo, as semelhanças acabam aí. A aplicação dos processos, inclusive esses congêneres, é totalmente diferente.
Qual o significado, então, de o senhor não se considerar político – seria uma confissão de despreparo? A anedota está no fato de que, para ser um bom gestor na administração pública, é necessário entender (e muito bem) a política. O prefeito de uma das maiores e mais diversificadas cidades do mundo tem que ser político. E muito. Não no desgastado significado da palavra; mas em entender as correlações de forças, saber ouvir e dar retorno, conseguir dialogar com os diferentes atores em cada esfera de poder, ter a capacidade de ponderar e de defender o interesse público e coletivo e, em especial, ser firme em construir a trajetória da gestão junto com a população da cidade.
Numa empresa, o CEO toma decisões unilaterais e clientes ou funcionários pouco dizem a respeito. Os interesses a serem atendidos, desde que não atentem contra a lei, são os dos acionistas – e isso ninguém discute. Do político (ou 'administrador público', caso aqui prevaleça o eufemismo), requer-se levar em conta os interesses da coletividade e buscar o bem comum. Isso, junto com a democracia que a duras penas construímos, significa também processos de decisão participativos, plurais, inevitavelmente complexos e às vezes até morosos. É o "preço" da democracia participativa, que tem nos permitido construir, a muitas mãos, a cidade que queremos, uma cidade que pondere demandas e atenda a todos.
– "Mas como conversar com 11 milhões de habitantes?"
Há mecanismos; democracia participativa não é mais novidade no mundo. À sociedade civil organizada em São Paulo, já acostumada a pôr as mãos na gestão da cidade, peça ajuda para entender como funciona. O senhor será prontamente atendido.
2. O bom gestor segue a lei e atende aos interesses dos acionistas
Antes mesmo da posse, sua equipe anunciou a intenção de alterar velocidades máximas em importantes vias da capital – assalto direto à política de mobilidade urbana vigente na cidade. Isso foi feito sem consulta à população, sem recorrer aos conselhos municipais eleitos por ela para discutir política urbana e mobilidade e sem qualquer estudo que justificasse a medida. Assim, por comparação, igualzinho um CEO daqueles antiquados e autocráticos.
Cumpre informar que, ao fazê-lo, o senhor já transgrediu uma lei federal e outra municipal – ambas claríssimas quanto à participação social "em todas as fases do planejamento e da gestão da mobilidade urbana". Ao levar a decisão solitária (e portanto autoritária) à realidade no próximo 25 de janeiro, entregará um presente de grego à cidade – justo em seu aniversário – e deixará pistas claras das suas características como gestor.
Se a lei não é argumento suficiente, segue outro: o senhor pode não ter percebido ainda, mas este gestor (também chamado de prefeito) é o servidor maior de uma cidade inteira, cujos "acionistas" são nada menos que toda a sua população.
Começando em 01/01/2017, o então prefeito João Doria Jr. terá 11 milhões de chefes – situação bem diferente, se não inversa, da de um empresário. É a eles que o senhor tem que atender, são os seus interesses que o senhor deve defender. Nunca sem diálogo.
Ainda dá tempo de compreender isso, de usar essa postura moderna e progressista a favor da cidade (e de si próprio), e até de ser feliz. Resta saber se, acostumado a liderar milhares (em suas empresas), o senhor terá a habilidade de agora ser liderado por milhões.
3. O bom gestor segue boas práticas e busca resultados
Falando em velocidades: aumentá-las iria contra as recomendações de gente de respeito – ONU e OMS, só para começar. Iria também (de novo, desculpe) contra a lei: além das citadas acima, o Plano de Mobilidade de São Paulo – construído a muitas mãos com participação pública –, que estabelecem como princípio a "segurança no deslocamento das pessoas" e preveem explicitamente "medidas de acalmamento de tráfego e de redução da velocidade".
O senhor quer aumentar as máximas das Marginais para cumprir uma promessa, entendo. Promessa no entanto irresponsável, com execução atrapalhada: aumenta aqui, mas mantém reduzida ali, com uma exceção na curva acolá e também no trecho x, mais a faixa y. Confuso para o motorista, letal para quem estiver perto dele.
O plano apresentado pela sua equipe diz ainda que vai procurar "evitar" pedestres nas marginais. Como? Vamos pedir às dezenas de milhares de funcionários e clientes das empresas e do comércio dessas avenidas que desçam dos ônibus e das estações da CPTM e então, imóveis, aguardem por táxis para levá-los pelas quadras restantes até seus destinos?
Ainda dá para evitar parecer alguém que quer fazer "pegadinha de multa", assim como ainda dá para evitar ter sangue nas mãos. Facilite a vida do motorista, sr. prefeito, e cuide da segurança e do conforto de quem está nas nossas ruas (seja protegido por uma carcaça de aço ou por uma simples trama de algodão): mantenha a atestada boa prática das velocidades máximas, padronizadas como estão.
Elas têm dois propósitos: quando há excesso de veículos utilizando a via (e já vai ficar tudo 'devagar' mesmo), servem para melhorar a fluidez e reduzir o congestionamento (fato já comprovado por experiência internacional e pelas medições da CET). Já quando a pista está vazia e não há congestionamento, serve para proteger a vida de quem por ali passa (sabia que a morte de ocupantes de veículos, nas marginais, também caiu depois da redução dos limites de velocidade? Pois é.).
Um bom gestor como o senhor baseia-se não em ego, mas em resultado: quando pega um bom projeto em curso, interfere o mínimo possível nele. Quando percebe um equívoco, volta atrás sem titubear. O discurso uníssono mundial sobre o tema das velocidades já está presente na mídia e não preciso repeti-lo. Os resultados reais de São Paulo – já reduzimos drasticamente mortos e feridos dentro e fora dos automóveis – também são públicos e notórios.
Ninguém – fora uma minoria de egoístas focados em umbigos motorizados do último ano – questionará algo comprovado tanto na eficácia quanto no interesse público e no bem comum. Confie.
As novas velocidades que São Paulo experimentou são de São Paulo; não "do Haddad", muito menos "do PT". Assim como os hospitais em obras; os corredores de ônibus licitados; as obras de macrodrenagem em estágio de convênio. Entenda isso, prefeito, bom gestor que é, ou todos sairão perdendo – o senhor e seu capital político em especial.
4. O bom gestor cria ruptura e inova
São Paulo não é campo de um jogo político bobo (isso morreu em outubro), mas a casa de milhões de pessoas que devem se beneficiar de continuidade, aprimoramento e implementação de políticas públicas de interesse coletivo – pouco importando por quem elas foram propostas, idealizadas ou iniciadas.
Chega de velocidade; isso é assunto superado. Minha última dica é um remédio infalível para a "síndrome de síndico novo" pela qual sua equipe deve estar passando: a necessidade de mostrar coisas novas, impactantes – aquela cor nova na parede da portaria do prédio! – para marcar sua chegada. Justíssimo!
Diferenciar-se das gestões anteriores, criticar algo que foi ou deixou de ser feito e evidenciar vantagens são o estratagema clássico da política, pois sempre vai haver algo em que o outro falhou. Tudo bem.
Na mobilidade urbana de São Paulo, há, sim, dúzias de desafios nunca (ou pouco) encarados pelas gestões anteriores. São paredes de portaria esperando por uma tinta! Seguem alguns, de presente, só para começar:
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Readequação física, através de acalmamento de tráfego, do desenho das ruas da cidade – hoje, ainda, verdadeiras pistas de corrida (entende agora por que seus amigos tanto estranham os limites de velocidade "baixos demais para essas ruas"?).
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Fiscalização de trânsito massiva, séria, permanente, 24h, em todas as regiões da cidade. Tanto CET quanto GCM devem combater crimes de trânsito (essa epidemia das nossas ruas). Em estimativa, são 10 milhões de infrações de trânsito por hora na cidade. Hoje, menos de 0,1% delas são fiscalizadas. Impune, este comportamento segue ameaçando, matando e mutilando pessoas todos os dias em nossas ruas.
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Um edital de licitação do sistema de ônibus sério, democrático, corajoso, que enfrente os interesses privados de alguns poucos em benefício de um transporte público que seja confortável, rápido, regular, seguro e de emissões limpas.
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Paradas de ônibus que sirvam não apenas à publicidade, mas ao seu propósito original: abrigar, informar, dar rotas, guardar bicicletas e antecipar a cobrança de tarifa (dando eficiência ao transporte).
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Calçadas, cruzamentos e travessias que sigam a lei e, portanto, deem preferência, sempre, ao pedestre. A sinalização da cidade inteira, desde os mínimos detalhes, hoje ainda favorece o automóvel ao passo que inferniza, atrasa e ameaça a vida do pedestre.
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Ciclovias: muitos dos seus eleitores encheram a boca para dizer "estão malfeitas! a pintura está falha!". Imagine o que eles esperam do senhor: as ciclovias "do Doria!" – de implementação rápida, em permanente expansão, conectadas à malha, bem sinalizadas e bem conservadas, vermelhas tinindo! – um convite a deixar o carro em casa.
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Sistema de bicicletas públicas: hoje a oferta é sofrível, limitada, pouco acessível e de baixa qualidade. Parece até serviço de banco. Dá para imprimir aqui uma bela marca – a do interesse público da cidade.
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Um serviço de relações com o munícipe que exista, seja acessível e prático, tome providências e dê respostas – em suma, que funcione.
São Paulo evoluiu muito nos últimos anos, mas tudo acima anda bem falho. "Não dá para fazer tudo!", diria, com razão, a gestão Haddad. Mas, como se vê, há inúmeras oportunidades de positiva ruptura (e até de crítica ao predecessor). Quantas o senhor aproveitou até o momento? Sua única sinalização de ruptura foi justamente contra uma política boa, já absorvida pela cidade e já com resultados. Ainda dá para consertar, prefeito. Não perca tempo trocando placa e confundindo motorista na Marginal.
5. Boas vindas ao bom gestor
Prefeito, quando lhe disse que o senhor precisa vivenciar a cidade, faltou um detalhe: precisa ser fora do carro. Quem vê São Paulo só por trás do para-brisa não vê São Paulo. A cidade, para alguém preso assim, vira um mero corredor de passagem entre outros espaços igualmente fechados e privados.
Proposta para hoje: sente num volante e dirija respeitando rigorosamente os novos limites de velocidade. Parece lento? Sim! Um limite maior parece excessivo? Definitivamente não!
Agora saia deste carro. Use uma moto, uma bicicleta, uma cadeira de rodas ou seus próprios pés para interagir, pra valer, com essas velocidades, com as travessias, com os conflitos, com o deslocamento. Observe outros também neste desafio cotidiano de sobrevivência. Parece normal? Pois não é. E essa experiência é chave para entender que as velocidades maiores que o senhor irresponsavelmente propõe podem até não parecer excessivas quando dentro do carro (eles são projetados para produzir este efeito!) – mas são absurdamente inadequadas para quem está fora (a esmagadora maioria da população, diga-se de passagem).
Sim, é surpreendente, novo e até chocante. Mas não se sinta mal por ter seguido concepção tão anacrônica da mobilidade urbana: o mundo inteiro levou décadas para perceber que cidade não se faz com carros, mas com pessoas. Olhe pelos olhos de quem o senhor representa e de para quem você trabalha. Ou, inevitavelmente, será um mau prefeito, correndo o risco de ficar marcado como distante e apagado, ou autoritário e fora da realidade. Não decepcione a população desta vibrante cidade com uma ideia equivocada do que é "gestão"; estamos aqui, prontos para fazê-la, juntos.
O seu maior desafio, aquele com o qual comecei minha carta, é o de sair da bolha. Conhecer e interagir com São Paulo das múltiplas maneiras como os seus chefes (nós, os 11 milhões aqui) a conhecem e com ela interagem.
A cidade é das pessoas. E a cidade é nossa. Para começar (com o pé) direito, o senhor precisa, ainda hoje, abrir os olhos. Isso é São Paulo. Seja bem-vindo!
Carlos Aranha é coordenador de Mobilidade Urbana da Rede Nossa São Paulo, conselheiro Municipal de Política Urbana, conselheiro Municipal de Trânsito e Transportes e Membro do Comitê Intersecretarial de Monitoramento e Avaliação da Implementação do Plano Diretor Estratégico de São Paulo
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