Uma radiografia da Marginal Tietê para o debate da velocidade em São Paulo
A escadaria de uma ponte pode esclarecer pontos ocultos do debate sobre as velocidades das ruas de SP
Quem passa a 70 km/h por debaixo da Ponte das Bandeiras talvez não note nada de especial. Há coisas que só dá para perceber fora de um automóvel e, de preferência, no ritmo de uma caminhada. O problema é que caminhar ali não parece das ideias mais animadoras. É que abaixo da ponte está a Marginal Tietê, principal via da cidade de São Paulo. No trecho em questão, compõe a marginal um emaranhado de 20 pistas – dez de cada lado das margens concretadas do poluído rio Tietê – onde carros e caminhões transitam sem interrupções de cruzamentos ou travessias para pedestres. O cenário é cinza, o barulho ensurdecedor, o cheiro do rio nauseante. Mesmo assim, a ponte é imponente, bela e – mais surpreendente – há nela uma elegante escadaria em formato de Z que vai dar direto na pista expressa da marginal. Arrisque-se a descer ali e você ficará espremido em uma calçada de menos de um metro, debaixo de uma ponte tingida de preto pela poluição dos escapamentos.
Qual sentido faz? Para compreender a existência insólita da escadaria, é necessário dar um passo atrás e buscar a origem de um projeto que não anteviu de todo o que se tornaria a marginal, as marginais: locais de passagem, em que os únicos pedestres são os vendedores ambulantes que se aproveitam do acúmulo de tráfego nos horários de rush ou os moradores de malocas incrustadas dentro de pontes e viadutos. Vias engolidas pela cidade, nada periféricas como seu nome sugere. O exercício de rememorar, segundo especialistas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Paulo (FAU-USP), ajuda também a compreender o que está em jogo quando se fala em redução da velocidade nas marginais Tietê e Pinheiros implementada há pouco mais de um ano na gestão Fernando Haddad (PT). Foi tema que ocupou grande parte da corrida eleitoral da cidade e que segue agora rondando o prefeito eleito, João Doria Jr., que surfou na insatisfação popular que a medida gerou em parte da população e prometeu que na primeira semana de seu mandato aumentaria novamente os limites. Alvo de críticas, Doria disse ao EL PAÍS que a promessa pode ser repensada caso não dê certo, mas depois chegou a dizer que a promessa de campanha era algo "amadurecido".
Desde junho de 2015, a prefeitura decidiu reduzir a velocidade permitida de 90 km/h, 70 km/h e 60 km/h para, respectivamente, 70 km/h, 60 km/h e 50 km/h nas três pistas que formam a marginal e que são chamadas de expressa, centrais e locais. De forma geral, a cidade caiu do 7º lugar em um ranking de piores trânsitos do mundo para o 58º. Dados da municipal CET (Companhia de Engenhariade Tráfego), publicados pela Folha de S. Paulo nesta quarta-feira, também mostram queda de 52% nos acidentes fatais nas marginais entre julho de 2014 e junho de 2015. Os atropelamentos com morte praticamente zeraram: de 24 casos no período anterior para apenas um.
Nesse ponto é possível voltar a à história da Marginal Tietê e da escadaria. “Por mais que visualmente possa não parecer, São Paulo não é fruto de uma sucessão de situações caóticas. O que vemos da cidade hoje é um legado de várias decisões pensadas”, diz o professor Ângelo Bucci. Por exemplo, a Ponte das Bandeiras, assim como a Marginal Tietê, data da época em que São Paulo fez, pelas mãos do engenheiro e prefeito da cidade, Francisco Prestes Maia, uma opção pelos carros.
"A arquitetura, no sentido mais amplo da palavra, é pensada de acordo com vários elementos. Quando você tem uma via expressa, não pode pensar em projetos que tenham a escala das pessoas"
Ambas são construções das décadas de 1940 e 1950, presentes no plano de avenidas de Maia que definiu uma série de outras obras viárias para a cidade. Contudo, ao que parece, nem mesmo ele, um entusiasta da modernidade que os automóveis representavam na época, poderia imaginar que a escadaria ficaria para comprovar o que ele não pode prever. Sua simples existência sugere que em algum momento Maia imaginou que as pessoas usariam aquele lugar como um aprazível passeio público às margens do rio.
Para o professor da FAU-USP, Alexandre Delijaicov, o que está sendo discutido hoje como uma certeza – a via expressa – é o que está na raiz de suas preocupações como urbanista. “As marginais só fazem sentido dentro de um contexto de cidade pensada apenas para o automóvel, elas são verdadeiras rodovias urbanas que criam ilhas separadas”, comenta Delijaicov. Só quem já caminhou em direção a marginal Tietê percebe que, conforme você se aproxima dela, as ruas vão ficando cada vez mais vazias, as construções cada vez maiores e as pessoas cada vez mais escassas. Segundo Delijaicov, esse é um dos efeitos de se ter uma “rodovia urbana” dentro da cidade. Em São Paulo, elas são como barreiras que ilham os transeuntes em duas margens opostas.
“Se a redução da velocidade diminuiu acidentes e trânsito, ela também foi talvez o primeiro passo para uma mudança de pensamento”, argumenta Bucci. Com velocidades mais baixas, segundo ele, a prioridade sai do automóvel e passa para a vida das pessoas, possibilitando a criação de projetos mais humanos. “A arquitetura, no sentido mais amplo da palavra, é pensada de acordo com vários elementos. Quando você tem uma via expressa, não pode pensar em projetos que tenham a escala das pessoas. As proteções e barreiras que têm que existir para o intenso fluxo de carro, por exemplo, são um fator que afasta os transeuntes”, diz. Para ele, seria interessante ver que tipos de projetos surgiriam daqui para frente com a velocidade das vias mais baixas. “Claro que ninguém está propondo que as coisas mudem do dia para noite, mas a velocidade é um primeiro passo para que se possa repensar essa sensação de isolamento que as marginais proporcionam”.
O argumento é que as marginais têm de ser repensadas por terem levado a cidade à exaustão. “As duas marginais fazem parte de um contexto que tem exaurido a mobilidade em São Paulo. Na lógica delas está o movimento pendular que faz as pessoas irem para longe buscar moradia e voltar ao centro para trabalhar”, comenta o urbanista Geraldo Moura. Ao contrário das ferrovias, que dão preferência ao crescimento imobiliário ao redor das estações, possibilitando a criação de polos de desenvolvimento, as rodovias, por não terem “pontos de parada” fixo, são um estímulo para que a cidade cresça para todos os lados. “É um modelo rodoviarista, voltado para o carro, e que concentra as oportunidades de trabalho em um só local”, diz Moura. As marginais, pela sua extensão, são um símbolo perfeito dessa lógica.
De costas para os rios
Há outras questões envolvendo as marginais – principalmente a Tietê. No seio da construção das vias expressas está um embate entre duas visões diferentes de cidade, protagonizadas, entre os anos 1920 e 1930 pelos engenheiros Saturnino de Brito e Prestes Maia (responsável pelo plano de avenidas). “Brito tinha como proposta preservar o leito maior do rio, ou seja, a várzea dele, uma área que é alagada periodicamente”, comenta Delijaicov. O projeto previa a criação de um imenso parque fluvial que iria possibilitar que o rio Tietê tivesse uma ampla área de vazão de águas e serviria também como uma referência da São Paulo imaginada por ele: uma cidade voltada para os rios e não de costas para eles. Em que, talvez, a luta contra os alagamentos não faria parte do cotidiano dos verões paulistanos.
"Saturnino de Brito tinha como proposta preservar o leito maior do rio, ou seja, a várzea dele, uma área que é alagada periodicamente"
“A proposta de Brito foi perdedora, entre outras coisas, pelo pouco apelo mercantil que tinha. É claro que lotear a várzea do rio, e criar uma via expressa que possibilita a exploração imobiliária de locais distantes da cidade, é mais atrativa para o mercado”, diz Delijaicov. Um dia, o rio Tietê foi uma das principais vias de exploração do território paulista. Por uma questão geografia, ele nasce perto da serra do mar, mas não corre para baixo e sim entra para o continente por mais de 1.000 km seguidos. Essa peculiaridade fez com que ele fosse usado durante anos para adentrar o interior. Quando a vitória do modelo proposto por Maia veio à tona, ele foi relegado, ao menos dentro da cidade, a um papel mais do que secundário; sua única função passou a ser a de despejo de esgoto.
“O tecido urbano, que é tudo que constitui a cidade, não pode ser separado em ilhas e é exatamente isso que a marginal faz. Elas são agressivas, afastam as pessoas”, comenta Delijaicov. Para Moura, Doria entrou no labirinto ao fazer da questão uma bandeira de campanha. “O Doria prometeu voltar a velocidade, mas a verdade é que agora, se ele não fizer, vai se dar mal e se fizer vai se dar mal também. Tecnicamente, o aumento da velocidade é indefensável, mas agora que ele prometeu, tem uma dívida com seus eleitores. É uma pena porque a medida simples era um porta para se repensar uma série de coisas”, diz.
Para além dos acidentes e do tamanho do trânsito que redução e aumento de velocidade podem gerar, a discussão em torno da utilidade e impacto das marginais não pode ser aferida apenas em estatísticas, mas se relaciona de forma direta com a formação da cidade e o que os paulistanos desejam dela. A escadaria da Ponte das Bandeiras, com seus degraus, cuidadosamente desenhados, é um símbolo de que as coisas não precisam ser exatamente do jeito que são e de que nem tudo projetado vira história como planejado.
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