A favela do Parque Cidade Jardim: uma metáfora da São Paulo moderna
Restaurantes em favela têm atraído funcionários de um dos empreendimentos com metro quadrado mais caro de SP
Quarta-feira, meio-dia e pouquinho, solão de rachar o coco e o pessoal, no melhor estilo paulistano, já se enfileirando para conseguir uma mesa em um dos três restaurantes daquela viela sem nome. Nem a pasmaceira da primeira semana do ano foi capaz de desanimar a clientela cativa. Também, não é para menos. Feijoada completa, no esquema coma à vontade, por um preço camarada que fica entre 16 e 19 reais, não é em qualquer lugar que se encontra. Escolados na arte de fazer o vale-refeição caber no orçamento mensal, quem espera na fila sabe bem disso. Coisa de 200 metros dali, onde trabalham, é impossível bater um almoço tão duplamente honesto — para a barriga e para o bolso. A explicação da disparidade alimentícia entre os dois locais está justamente nessa curta distância. É que esses 200 metros entre origem e destino não são apenas 200 metros. Ao menos não na régua da realidade que separa o Parque Cidade Jardim da sua vizinha de muro, a favela Jardim Panorama.
Apesar do cenário da Marginal Pinheiros, às margens de um dos rios mais poluídos do Brasil, verdadeiro esgoto a céu aberto, nem todos os adjetivos usados para designar exclusividade, ou apenas todos eles somados, são capazes de dar conta do Parque Cidade Jardim, na zona sudeste de São Paulo. O complexo é composto por um shopping, onde relógios ao preço de 200 mil reais são artigos triviais nas vitrines; por nove torres residências, com apartamentos que variam entre 235 e 1885 m²; e, por fim, como quase tudo ali é batizado em inglês, pelo Corporate Center, com três towers comerciais. Para chegar ao local, o modo mais indicado é o automóvel, mas como nem todos os funcionários que trabalham ali têm carro, o complexo disponibiliza um serviço de van que faz o traslado da estação de trem da CPTM, do outro lado do rio, para o complexo. O trajeto dura cerca de 15 minutos. De qualquer jeito, para consumidores e clientes, a entrada oficial é uma só: a rampa da garagem.
L.B., 24 anos, publicitário de uma das maiores agências do mundo, com sede em 75 países, caminha do Corporate Center, onde fica seu trabalho, para a favela Jardim Panorama diariamente. A opção do almoço, como conta, é feita pensando na barriga e no bolso, mas também na cabeça e no pulmão. Acontece que se o sujeito – assalariado comum – não quiser deixar todo seu ordenado nos restaurantes de alta gastronomia do shopping, como o Pobre Juan e o francês Parigi Bistrot, restam-lhe apenas quatro opções. A primeira, mais aprazível, fica no átrio do Corporate Center. É o Villa Gustto. Em comparação com outros self-services da cidade, o preço de 60 reais o quilo não chega a ser exorbitante, mas pesa bem no orçamento. Contudo, o problema mesmo, conta L.B., é comer no pátio do lugar em que se trabalha. Que tempo para a cabeça descansar vendo outras coisas? Daí que ele e seus colegas botaram uma alcunha no estabelecimento. Para eles, o Villa Gustto virou Vila Angústia.
Continuando o tour gastronômico, a segunda opção é o Food Hall, espécie de Praça de Alimentação 2.0, onde é possível fazer compras de produtos chiques ou almoçar em um restaurante a la carte. Para chegar lá, L.B. tem que entrar na fila de um carrinho de golfe que faz a ligação subterrânea entre o Corporate Center e o estacionamento do shopping. Dependendo do horário, a fila é tão grande que o pessoal opta por fazer o trajeto de alguns metros de túnel a pé. Mais cinco lances de escada rolante passando pelos corredores do shopping e pronto: assim, o Food Hall, para eles, virou Food Hell. A terceira alternativa é o Divino Fogão, que ainda não ganhou apelido, mas que poderia muito bem ser chamado de Divino Porão. O restaurante por quilo fica no segundo subsolo do shopping, num anexo sem janelas dentro do estacionamento. Haja pulmão! A última opção é o refeitório dos funcionários que, localizado ao lado do Divino Fogão, oferece um prato feito diário e microondas para esquentar marmita. Tudo branco, num estilo que lembra os cenários dos refeitórios de presídios dos filmes americanos.
Para o psicanalista Christian Dunker, autor do livro Mal-estar, sofrimento e sintoma, que estuda a vida em condomínio no Brasil contemporâneo, o projeto do restaurante dos funcionários no subsolo está na arqueologia do condomínio. “Em lançamentos como Alphaville [condomínio fechado da década de 1970, em São Paulo], por exemplo, a ideia era que os funcionários desaparecessem. Ao entrar pela porta dos fundos, usando uniformes que não os diferenciassem, eles fariam as coisas funcionarem sem sequer aparecer”, comenta Dunker. Curiosamente, dentro do shopping, a sensação é de que os corredores largos com lojas milionárias são habitados apenas por seguranças, faxineiros e vendedores. Num dia de semana, pouco se veem clientes e compradores. Um dos diretores do documentário O Castelo, que narra um dia no complexo, Guilherme Giufrida, confirma a sensação. “Na hora de montar o filme, optamos por contar a história a partir dos funcionários daquele local, que são as pessoas que você mais encontra pelos corredores”, conta.
Inaugurado em 2008, quando foram lançados o shopping e as torres residências (o conjunto comercial só viria em 2012), o Parque Cidade Jardim é um projeto da construtora JHSF, especializada em empreendimentos de luxo. O modelo do complexo paulista já foi exportado para outras capitais, como Salvador, onde o Horto Bela Vista funciona numa lógica bem semelhante. E, recentemente, projetos de expansão para um terreno em frente do Parque Cidade Jardim foram revelados pelo portal UOL. Pouco acessível, controlado por um esquema de segurança intenso, o empreendimento é constantemente criticado por urbanistas por ser um enclave fechado dentro da cidade. “A presença de algo assim destrói os tecidos urbano e social da cidade”, diz Maria de Lourdes Zuquim, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
É de lá, contudo, que L.B. e outros funcionários de escritórios do Corporate Center saem rumo à favela Jardim Panorama diariamente. No caminho, descem pelo elevador inteligente de uma das torres comerciais – em que só é necessário digitar, ainda no lobby, o andar desejado –, passam pela catraca eletrônica do térreo e dão num átrio que faz as vias de via privada. Contornando um laguinho artificial (com direito a pontezinha e tudo mais), eles seguem até o elevador que conduz ao nível da rua, não sem antes passar por outra catraca eletrônica. Já na pequena viela da favela, formam-se filas na porta dos restaurantes. Tem de tudo: publicitários com barbas cerradas milimetricamente aparadas, consultores metidos em roupas sociais e sapatos lustrosos, e faxineiros em seus uniformes acinzentados.
O cenário da favela é o habitual. Sobrados mais sólidos de alvenaria dividem espaço com construções esquálidas de dois, três, quatro andares. Do lado de fora das casas, mulheres estendem roupas em varais improvisados, crianças em férias escolares correm para cima e para baixo, cachorros vadeiam em busca de sombras escassas. Em meio a tudo isso, passam cozinheiras carregadas de panelões de feijão, arroz e carne de porco em direção a um dos três restaurantes: o do Fabinho, o da Lu e (ou) do Silvio. Cada um deles recebe cerca de 60 clientes por dia e, com pouco tempo de atividade, já amealham o suficiente para pagar as contas e guardar um pouquinho no final do mês.
Dos três estabelecimentos, o Fabinho, Fabio Gonçalves, 31 anos, é o único que não paga aluguel. Em abril de 2015, depois de ver o sucesso dos dois concorrentes, ele e sua mulher, Soraia Araújo, 29 anos, foram morar em Taboão da Serra, abrindo espaço para o restaurante que ela toca no dia a dia, enquanto ele trabalha como motoboy. A cozinha funciona no andar de baixo, improvisada na casa dos pais de Fabio, enquanto os clientes são atendidos no andar de cima. Logo em frente ao negócio do casal está o restaurante da Luciana Conegero, 37 anos, que se não é a mais antiga na região é, com certeza, a que há mais tempo vende comida para os trabalhadores do Parque Cidade Jardim. É que antes da inauguração do complexo ela já estacionava seu carro por ali e fornecia marmitas para os pedreiros da obra. Moradora da Freguesia do Ó, Luciana chega na Panorama todo dia por volta das 5h30 e dá expediente até às 15h30. Depois ainda toca pro atacadão, lá pros lados da Freguesia, onde faz as compras para o almoço do dia seguinte. Com um aluguel de 1.700 do restaurante, mais 700 reais da cozinha – isso sem falar no salário das duas ajudantes –, não dá para moscar.
Já mais para frente, onde a viela se dobra numa curva à direita, está o restaurante do José Silvane, 44 anos, também conhecido como Silvio. Ele é o símbolo do migrante empreendedor. Em pouco tempo de conversa já está dizendo que chegou em São Paulo em 1991, vindo do Maranhão, que trabalhou como encanador durante muitos anos, até abrir uma padaria que era a menina dos seus olhos, na favela Real Parque, ali perto da Panorama. “Eram 3 mil pãezinhos no balcão todo dia, mas aí veio o incêndio e levou tudo.” Numa busca rápida na internet, é possível encontrar uma reportagem da TV Gazeta, de 2010, em que Silvio aparece aos prantos na frente das câmeras, porque o fogo, iniciado em alojamentos provisórios – que, no entanto, vinham cumprindo essa função há anos –, lambeu todo seu negócio. Desde então, ele tenta se reerguer: sua preocupação agora é pagar o aluguel, mas, principalmente, dar conta dos empréstimos que fez para botar o restaurante de três andares (o mais antigo da viela) de pé.
O Castelo é uma produção da Primo Filme, dirigida por Alexandre Wahrhaftig, Guilherme Giufrida, Helena Ungaretti e Miguel Antunes. O documentário pode ser assistido no dia 26/1, em Tiradentes, e no dia 3/3, em São Paulo, durante a Mostra Curtas Premiados do Itaú Cultural.
De comum, Silvio, Lu e Fabinho têm uma expressão cansada de quem vive só para o trabalho. No papo-rápido, apressado pelo entra e sai de clientes, também é clara a importância do Parque Cidade Jardim em suas vidas. Se, por um lado, ele viabiliza o negócio, por outro, é fonte de uma preocupação meio velada, da qual falam usando meias palavras. É que recentemente, como contam, algumas casas da favela foram compradas por um valor que varia entre 50 e 70 mil reais e demolidas pela administração do empreendimento, sem que, no entanto, nada fosse feito no local. Por ora, as demolições foram interrompidas. Mas sabe-se lá quando vão voltar? “Não é um termo acadêmico, mas o que acontece é que o mercado imobiliário vai literalmente comendo pelas bordas. O que acontece na Panorama também acontece em Paraisópolis ou no Jaguaré. A favela existe sob um consentimento assistido, um dia a pressão econômica acaba com ela”, comenta a urbanista Zuquim. A JHSF mesmo prefere não comentar o assunto, não diz que não e nem que sim.
Por enquanto, a favelinha, instalada ali desde 1957 – muito antes de a região do Morumbi deixar de ser um matagal fechado e desvalorizado para passar a ser um dos m² mais caros da cidade – continua lá. Menor, é verdade, mas lá. Vive uma espécie de frágil mutualismo que acaba por expor o mal-estar de se trabalhar e viver em um complexo como o Parque Cidade Jardim. Para Dunker, comer na favela é praticamente um exercício de resistência não planejado dos funcionários do complexo. “Não é só porque é mais barato, mas é porque a vida nesses locais é de mentira, é tudo regulado, tudo pelo manual. As pessoas têm vontade de experiências mais reais, mais informais, por isso querem sair de lá, ao menos no horário do almoço”.
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