Série humaniza a relação médico-paciente na periferia de São Paulo
‘Unidade Básica' retrata os profissionais da saúde numa UBS brasileira
Quem diria: Dr. House, o astro da aclamada série televisiva de mesmo nome, que foi ao ar nos Estados Unidos de 2004 a 2008, já não está tão em alta. Ao menos, não no Brasil, onde estreou este mês Unidade Básica, uma minissérie de oito capítulos em que brilha o tipo de médico que prefere tratar pacientes a fazer diagnósticos complicados, como é a paixão de Gregory House (Hugh Laurie). Estrelada pelos atores Caco Ciocler e Ana Petta, o personagem dele mais afim às pessoas e o dela mais às doenças, a obra retrata o sistema público de saúde do país pela ótica da Saúde da Família. Não muitos sabem, na vida real, do que trata essa vertente da medicina que extrapola o consultório – e aí está o trunfo da primeira série médica que pretende se aproximar da realidade brasileira.
Caco é Dr. Paulo, um médico que dispensa o jaleco para lidar com os mais variados casos que chegam às suas mãos na Unidade Básica de Saúde onde trabalha, na periferia de São Paulo. Seus pacientes em geral são diabéticos, hipertensos ou padecem de males passageiros, que ele procura identificar com olhos nos olhos e sem tecnologia excessiva para tratar com muito mais do que remédios. Ana, à sua vez, é Dra. Laura, uma médica recém-formada que vê a UBS como um esforço temporário até poder atuar na sua especialidade e longe de dramas que, na sua visão, escapam de sua alçada. Dedicada e apegada à técnica, ela vai sofrer para superar os revezes do cotidiano da unidade e de seus novos pacientes. E, ambos médicos que se creem são super-heróis, tanto Laura como Paulo vão ter de se acertar.
A ideia de Unidade Básica veio justamente de uma médica que entendeu na prática que não seria uma heroína, mas que poderia cuidar de pessoas. Especialista em infectologia, Helena Petta, irmã de Ana, trabalhou por cinco anos em uma UBS onde aprendeu a enxergar os pacientes por trás de dores e queixas e a dialogar com eles com mais do que pareceres técnicos. “Você não dá conta das coisas aplicando só o seu conhecimento. Minha formação não abarcava tudo o que eu encontrava ali, era preciso ir além”, conta Helena. Marcada pela experiência, tempos mais tarde propôs à irmã atriz que as duas criassem juntas uma série sobre essa realidade – que, como no caso dela, é desconhecida de muitos médicos, mas também da população em geral. “Percebi que não havia séries médicas nacionais e muito menos alguma que abordasse a medicina de família e comunidade, que cresceu muito no país nos últimos anos”. O canal Universal Channel, da TV por assinatura, abraçou o projeto, que termina por apresentar aspectos positivos do SUS – o Sistema Único de Saúde brasileiro – sem ignorar os aspectos pelos quais ele é comumente criticado. A saúde é apontada por pesquisas como um dos principais problemas do país e, em São Paulo, onde a série se passa, há um déficit de 1.500 médicos e mais de 250.000 pessoas aguardam na fila para se consultar com um especialista, a etapa seguinte ao atendimento com o médico da família.
A história, escrita por Newton Cannito, roteirista de filmes como Quanto vale ou é por quilo? e séries como Cidade dos homens, é baseada em casos reais e comuns. No primeiro capítulo, uma filha se preocupa com a diabete da mãe idosa, cuja doença não cede, apesar dos esforços da Dra. Laura com o caso. Ela pede exames e prescreve remédios. Em uma visita doméstica, comum na rotina de uma equipe médica de família, Dr. Paulo interfere: levanta o sofá e descobre que a senhora esconde os remédios em lugar de tomá-los. E interfere um passo mais, para que, conversando, mãe e filha superem as divergências que prejudicam a saúde de ambas. É uma intrincada dinâmica entre médico e paciente que Helena Petta conhece bem. “Você dá o celular, por exemplo, e se aproxima muito das pessoas… Elas ligam, e você começa a achar que se faltar comida na casa delas, pode ajudar. Logo você recua um pouco, até encontrar um equilíbrio nessa relação”, afirma a médica – que acaba de deixar o país para fazer um doutorado na Universidade de Harvard. Sua pesquisa acadêmica girará em torno da discussão sobre saúde pública no Brasil que a série ajudaria a incitar.
No Brasil, Ana Petta faz votos que Unidade Básica – com chances, segundo ela, de ganhar novas temporadas – de fato contribua com o debate sobre o SUS, que “muitos criticam sem conhecer”. Enquanto isso, Ricardo Barros, o ministro da saúde empossado há alguns meses pelo então presidente interino Michel Temer, afirma que o sistema deve ter seu tamanho revisto. “Quando criamos a série, havia uma expansão da medicina familiar dentro do SUS. Não imaginávamos que a estreia seria em um momento difícil”, diz a atriz. "Espero que ela ajude a influenciar a discussão, porque é um trabalho que deve ser valorizado”.
Como funciona uma UBS voltada à Saúde da Família?
Vizinha de porta da Unidade Básica de Saúde do Parque Regina, na zona Sul paulistana, Dona Maria penteia os cabelos recém lavados sentada no sofá, enquanto recebe explicações da Dra. Janaíne Camargo sobre como usar a bombinha indicada para aliviar a dificuldade respiratória que ela desenvolveu por uma falha no coração. Visitas como a que recebe a aposentada, de profissionais das equipes de saúde do posto, são frequentes, duram o tempo que for necessário e às vezes acontecem até sem hora marcada. Dona Maria viu a UBS ser construída 34 anos atrás e, satisfeita, se diz “amiga de todo mundo”. Está feliz de falar com uma repórter, mas dirige sua atenção e uma longa lista de elogios, na verdade, à médica. “Eu tenho liberdade com todos eles”, explica a senhora de 86 anos.
Não é todo paciente que vive na área de atuação de uma determinada UBS e utiliza seus serviços médicos que recebe visita. Mediadas por uma agente comunitário, elas acontecem quando há dificuldade de locomoção, necessidade de conhecer o entorno paciente (e como ele pode impactar sua saúde) ou até para resgatar aqueles que faltam em consultas pré-marcadas. Mas são comuns e, para muitos, um atrativo enorme dentro de um sistema público de saúde que deixa muito a desejar e é alvo de críticas por conta de longas filas e carências variadas.
A estratégia de Saúde da Família prioriza ações de prevenção e recuperação da saúde das pessoas de forma geral e contínua, sem se restringir à atenção primária. Junto com o restante do SUS, foi pensada há 25 anos para que toda a população fosse atendida, mas ainda não opera como na teoria. Por falta de recursos, foram priorizadas as áreas mais vulneráveis para receber as unidades específicas e, além disso, faltam profissionais de Medicina da Família para atender toda a rede.
No país, há cerca de 4.000 profissionais formados na área, o que faz com que muitas vagas permaneçam abertas ou sejam ocupadas por médicos cubanos trazidos ao país através do programa Mais Médicos. Para Gustavo Kerr, que trabalha na UBS Parque Regina há seis anos, isso não tem a ver com remuneração. "Médico sempre ganha bem. Entre meus colegas da faculdade, não sou o que mais ganha. Mas é uma opção. Gosto muito do que faço e, ao menos, trabalho 40 horas por semana”, diz ele, especializado em Família pela faculdade de Medina da Universidade de São Paulo há 11 anos.
Na UBS Parque Regina, no Campo Limpo, há sete equipes médicas (compostas por um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e dois auxiliares gerais) e cinco equipes de residentes. Cada grupo é responsável, em média, por atender ao redor de 3.200 pessoas que vivem na área. O Parque Regina extrapola essa marca, chegando quase a 4.000 – porque, na verdade, é uma unidade privilegiada, que opera em parceria com o Hospital Albert Einstein, um dos mais respeitados de São Paulo e do país. Com os recursos básicos garantidos, Dr. Gustavo diz a maior frustração de seu trabalho é a “falta de tempo para fazer tudo o que seria possível”. “Às vezes você se dá conta que determinado problema não tem cura. Ainda assim, sempre tem muito o que fazer”, opina.
Mas para a Dra. Janaíne, formada em Medicina da Família há cinco anos na Universidade Federal do Triângulo Mineiro, as limitações vão além. Na UBS Parque Regina há quase três anos, ela concorda que o acesso das pessoas ao atendimento muita vezes é restringido pela agenda. Falta espaço para atender todo mundo no "prazo ideal”. “Um paciente que vai passar por uma consulta de rotina não tem pressa, mas alguém com uma infecção que pode comprometer o pulmão precisa ser visto logo”, diz. Na sua visão, o paciente confia mais no médico se não houver barreiras para chegar nele. E confiança é essencial na “missão que temos de emparedar as pessoas e alertá-las para o papel que têm de se cuidar”.
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