Cidades lentas
Velocidade e amplidão são valores políticos. Como consequência, o transporte público não é priorizado nos orçamentos ou nas políticas urbanas
O planejamento urbano modernista inaugurou dois valores para as cidades, no mundo, no início do século XX: a velocidade e a amplidão. Consequências diretas do advento do automóvel, mas também frutos da crença na tecnologia e na ciência que transformavam a vida, através da Revolução Industrial, da industriosidade, como diz Walter Benjamin, e que produziram grandes concentrações urbanas, a velocidade e a amplidão viraram marcas indeléveis de um espírito do tempo, que origina-se em Europa mas caracteriza-se como identidade da “cidade americana”.
As metrópoles utópicas seriam então cidades livres do solo, mas não apenas o território, mas o cidadão também o seria. E é nesse aspecto que perdura em nós, brasileiros, o anseio pela velocidade: como princípio individual, como ética pessoal.
Brasília não é então um assombro da coletividade nacional mas um território no qual este novo homem brasileiro poderia realizar as suas proezas: os cruzamentos livres, as não-interseções, a axialidade e os edifícios na paisagem são monumentos ao não-encontro. Mesmo as superquadras desprovidas de espaços rés-do-chão configuram-se espaços de ingenuidade absoluta, considerando o atrito do corpo social um julgo a ser vencido. Daí as piadas: lá não há esquinas ou botequins. Lá não há o roçar que nos embala.
Tais ideias da capital predominam ainda nas grandes cidades brasileiras, nas suas expansões, nas suas bordas e periferias, sejam elas as informais ou nos condomínios. Predominam na cabeça de cada brasileiro.
Velocidade e amplidão converteram-se valores políticos. Como consequência o transporte público não é priorizado nos orçamentos ou nas políticas urbanas. Sua realização assim como sua gestão, sua eficiência, são considerados, de modo paradoxal, sonhos utópicos, porque precisam ser feitos lentamente, porque são conquistados paulatinamente.
As diversas tramas de prazer que temos na cidade, ao caminhar, ao conversar com os amigos no bar, ao caminhar até o trabalho, ao chegar a tempo para beijar os filhos, passam a ser conquistas épicas das quais não merecemos dispor
Porque são também espaços públicos de encontro e de atrito. Essa é a ironia do urbanismo modernista. Logo, as diversas tramas de prazer que temos na cidade, ao caminhar, ao conversar com os amigos no bar, ao apreciar uma vitrine, ao encontrar alguém de surpresa, ao caminhar até o trabalho, ao chegar a tempo para assistir a novela e beijar os filhos, passam a ser conquistas épicas das quais não merecemos dispor. Dispostos estamos a morrer pela velocidade individual mas não queremos nos deter sobre as práticas aborrecidas que poderiam nos prover de melhor transporte público e melhor cidade.
É necessária uma profunda revisão dos nossos valores urbanos e suas origens modernas. Não nos libertaremos do passado oligárquico e escravista através de novos territórios tecnicamente eficientes, mas sim pelo lento flanar pela cidade onde podermos viver e existir juntos. Esbarrando-nos. A calçada pode nos prover mais democracia, mais economia, mais desenvolvimento. Entretanto, curiosamente, os movimentos de busca por cidades mais humanas, sobre cidade “para as pessoas” estão sendo uma vez mais controlados como alicerces de um novo debate ideológico, como anti-tese à cidade “empresa”, e, estranhamente, como antagônicos a processos de planejamento ou de provimento de novas infraestruturas urbanas, baseadas em concessões ou em parcerias público-privadas.
A demonização dos mecanismos de mercado que podem porventura gerar mais investimentos em ampliação da malha de transporte público, a velocidade coletiva, só produzem mais desigualdade, e mais segregação, onde a luta por espaço público se converte em, uma vez mais, e repetidamente, na manutenção do status quo brasileiro, do julgo individual sobre o público, e a consolidação da velocidade privada, seja ela pelo carro ou pela "bike", nada mais que a nossa manifestação de viés modernista.
É necessário destituir o planejamento urbano do seu exclusivo caráter finalístico e doutrinário, ou utópico, e convertê-lo à sua essência projetual essencial de ser um meio pelo qual podemos chegar em melhores cidades, mais justas, compreendendo, contudo, que a melhor cidade que temos é a cidade que temos. É ela, imperfeita, complexa, mestiça, que contém todas as respostas, competindo a nós fazermos melhores perguntas.
Quem sabe com a lentidão individual possamos perceber a cidade que nos cerca como boa, culturalmente vasta, econômica e ambientalmente resiliente, e, podendo enxergá-la melhor, compreenderemos que o planejamento urbano avançado deva usar dos mecanismos do mercado necessários para produzir infraestruturas melhores, que possam, coletivamente, nos conduzir juntos, nas nossas desigualdades, coletiva e velozmente a uma condição melhor, quando então descobriremos que é aqui mesmo, no chão carregado da história dura do Brasil, que pode surgir uma sociedade mais justa.
Washington Fajardo é arquiteto e urbanista, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural
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