Eles viveram a angústia do coronavírus, mas jamais entrarão nas estatísticas: “A doença gera muita ansiedade”

Com poucos testes para detectar a covid-19, muitas pessoas que vão a hospitais com sintomas da doença são apenas medicadas e mandadas para casa sem a confirmação de que estão infectados

Bernando Lima e Daniela Lopes, dois moradores de São Paulo que apresentaram os sintomas de coronavírus mas não foram testados.Arquivo Pessoal

Daniela Lopes tem quase certeza de que foi infectada pelo coronavírus. Bernardo Lima também. Ambos ouviram de médicos que tinham a covid-19 quando foram ao hospital com os sintomas graves da doença. O quase se deve ao fato de que ambos apresentaram todos os sintomas mais avançados da covid-19, tais como febre alta, coriza, tosse seca, perda de olfato e dificuldades respiratórias —a companheira de Lima, que trabalha num hospital, chegou a ser testada e diagnosticada com a doença. Mas, ao buscarem por auxílio médico em hospital privado, foram medicados e mandados de volta para casa sem que realizassem o teste que detecta o novo vírus. Os dois moram na cidade de São Paulo, epicentro da pandemia de coronavírus no Brasil, com 11.568 casos 853 óbitos confirmados até quinta-feira, 16 de abril, em todo o Estado. Ao menos até agora, a escassez de testes que identificam uma possível infecção fizeram com que apenas os pacientes com extrema gravidade fossem testados, de acordo com a orientação do Ministério da Saúde. Assim, Daniela e Bernardo formam parte do que especialistas e autoridades definem como uma provável subnotificação de casos de coronavírus em todo o país.

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Conforme explicou nesta semana o infectologista David Uip, que coordena o grupo que combate a doença em São Paulo, a imensa maioria casos são, na verdade, “não notificados”, uma vez que 80% deles “são assintomáticos e os indivíduos nem vão ao posto de saúde”. Mas entre essas pessoas e aquelas que são testadas e diagnosticadas com o coronavírus estão casos como o de Daniela e Bernardo, que podem nunca ter a confirmação de que foram infectados e, dessa forma, constar nos números oficiais. A não ser que sejam submetidos a um dos testes rápidos oriundos da Coreia do Sul —1,3 milhão de kits foram comprados pelo Governo João Doria (PSDB), dos quais 725.000 chegaram nesta semana— que identifica a presença de anticorpos contra o contra o coronavírus. Além disso, como existe uma fila de cerca de 13.000 testes no Estado de São Paulo, acredita-se que o quadro apresentado diariamente seja uma fotografia da pandemia de dias atrás, aumentando ainda mais a desconfiança com relação aos números apresentados diariamente.

“Não sabia quanta falta de ar deveria sentir para buscar hospital de novo. É angustiante”

No dia 19 de março, Bernardo Lima, de 37 anos, decidiu ir para a casa de sua companheira, Julia, para atravessar o período de distanciamento social que começava a entrar em vigor. Naquela mesma noite começou a ter uma leve febre, de 37 graus. Foi o começo dos sintomas. Dias depois, no domingo 22 de março, a persistência da febre fez com que buscasse pela primeira vez um hospital. Lá escutou da médica que, devido aos sintomas, provavelmente havia sido contagiado pela covid-19. Mas só em caso de piora seria testado.

Os sintomas evoluíram então para dor de cabeça, calafrios, disenteria e falta de ar. Na quarta-feira do dia 25 de março, decidiu buscar novamente um médico no posto de saúde. “Lá fiz tomografia e constataram que estava com pneumonia nos dois pulmões. Mas como estavam menos de 25% tomados, não era grave. Então optaram de novo por não testar e me liberar para casa de novo. E então a falta de ar começou a piorar de novo”, conta Bernardo, que trabalha na parte administrativa de uma empresa de infraestrutura de Telecom e, mesmo no regime de home office, precisou se afastar de suas atividades na fase mais aguda da doença. “Eu não sabia quanta falta de ar deveria sentir para procurar um hospital de novo. É o seu corpo lutando contra uma doença que é nova, desconhecida, mas que você ouviu falar que é grave e pode levar a um óbito. O processo é angustiante”, relata.

Bernardo decidiu então buscar um médico pela terceira vez e fazer outra tomografia e exame de sangue. Constataram que a pneumonia persistia, mas concluíram que a saturação do ar no sangue não estava num nível muito baixo. Mais uma vez foi mandado de volta para casa. Dessa vez, os remédios para a H1N1, além do anti-inflamatório Dipirona para aliviar os sintomas, começaram a fazer efeito. “Vem em ondas, você melhora e depois vem a fraqueza. Respirar é algo que você está acostumado a fazer sem pensar. Então é complicado, a doença gera muita ansiedade, muita incerteza”, conta ele.

Naqueles mesmos dias, sua companheira começou a sentir alguns dos sintomas, ainda que mais brandos —somente a dipirona fez com que melhorasse seu quadro. Por trabalhar na parte administrativa de um hospital, conseguiu ser testada e comprovou que havia sido infectada pelo coronavírus, o que aumenta ainda mais as suspeitas do rapaz. Ele acredita que o contágio ocorreu quando andava de Uber ou em alguma área pública. Além de deixar completamente de sair para a rua, inclusive para atividades como ir ao mercado ou à farmácia, o casal tentou aumentar o isolamento dentro do apartamento de um quarto. “Eu dormi na sala para minimamente evitar que ela se contagiasse, mas era tarde”, lamenta ele, já completamente recuperado e sem quaisquer sintomas, que duraram aproximadamente dez dias.

“O coronavírus rouba nossos rituais mais sagrados”

A pedagoga Daniela de Amorim Lopes, professora do 4º ano de uma escola privada de São Paulo, de 45 anos, é divorciada e vive apenas com seu filho de oito anos. No dia 20 de março, dois dias depois de começarem a quarentena em casa, o menino começou a ter diarreia e coriza —e, mesmo sem febre, ficou uns quatro ou cinco dias com esses sintomas, o que levou à suspeita de que fora infectado pelo coronavírus. A partir do dia 25 foi a vez da própria Daniela. Ela, que tem asma e bronquite, e chegou a ser internada por causa de H1N1, acordou de madrugada passando mal, congestionada e tossindo muito. “Liguei então para o convênio médico, que me deu direito a telemedicina. Me disseram que aparentemente era só uma gripe e para que eu fizesse só inalação”, conta. “No dia 28, de sexta para sábado, passei muito mal de noite, tive crise de asma, e fiquei muito assustada por estar sozinha com meu filho. Resolvi então ir para o hospital Samaritano assim que o sol raiasse, para chegar quando ainda estivesse vazio”.

No centro médico, deparou-se com um cenário que descreve como “cena de filme apocalíptico”, com médicos vestindo uniformes que cobriam todo o corpo, permitindo que “você só visse os olhinhos”. Disseram que de 15 sintomas comuns à covid-19, Daniela apresentava ao menos 13. “O que me chamou atenção foi a perda do olfato, porque passei a não sentir cheiro. Percebi isso fazendo café da manhã para meu meu filho. É muita dor no olho, muita dor no corpo, muito congestionada, coriza, falta de ar...”, explica. "No entanto, o médico me disse que não era o caso de internação, porque eu ainda conseguia fazer minhas atividades e eles não estavam testando todo mundo, apenas os casos de internação”, relata. Porém, como ela tinha quadro de asma e bronquite, afirmou que ante qualquer dificuldade para respirar ela deveria retornar.

Como seu ex-marido vive com mãe, que tem mais de 60 anos, Daniela e ele decidiram que o menino deveria seguir em casa. Ainda assim, o isolamento domiciliar precisou ser endurecido. Isso significou que Daniela deveria ficar de seu quarto isolada, enquanto seu filho podia circular no resto da casa. “E quem cozinha? Quem faz as outras tarefas de casa? Foi um momento muito significativo pra mim. As pessoas me ligaram e começaram a levar comida congelada, máscara, álcool... Consegui fazer o isolamento por causa dessa rede de apoio que se formou. Fui muito cuidada, me senti uma pessoa muito privilegiada", conta a pedagoga.

Ainda assim, o isolamento pode ser um processo bastante cruel. “Como acho que esteja acontecendo com muitas mães, tive que conversar com meu filho sobre o que ele faria se eu passasse mal, desmaiasse ou não acordasse”, lamenta. Outra situação foi a morte da avó de seu ex-marido no dia 30 de março. “Ninguém gosta de velório e enterro, mas me dei conta de como é violento não poder velar seus mortos. Ela era uma pessoa muito querida e eu me senti roubada da possibilidade de prestar uma última homenagem, de estar com meu ex-marido e minha ex-sogra, de a gente se consolar", lamenta. "Foi muito cruel ouvir que o caixão chegou, que não foi aberto e que logo enterraram. Não tinha dimensão dessa violência”, relata ela, citando o novo protocolo dos enterros assumido em cemitérios durante a pandemia. Ainda que o óbito tenha sido de câncer, ele precisou seguir esse padrão.

Ao longo dos dias, para manter algumas atividades diárias da casa, teve de mudar rotinas: passou a manter objetos separados, a tomar banho em horários muito diferentes de seu filho, a manter a casa sempre arejada, além de sempre usar máscara. Só não conseguiu manter a porta de seu quarto fechada. De sua cama, mantinha a comunicação com o menino, que ao longo do dia brincava com seus amigos através do computador. “A noite era o momento mais difícil para ele. A gente tem uma rotina desde que ele nasceu de ir para o quarto dele à noite, deitar na cama dele, ler uma história, conversar, contar piadas...", relata. "Tem todo um ritual para dormir, então vinha até minha porta e perguntava se não podia ficar em minha cama pelo menos um pouco. O coronavírus rouba nossos rituais mais sagrados”, lamenta. O isolamento total durou 10 dias, mas a recuperação total só veio a partir do décimo quinto dia.

A fila de testes e a compra de kits da Coreia do Sul

Até quinta-feira, 16 de abril, o Governo Doria tinha uma fila de 12.958 exames de coronavírus a serem analisados, segundo o secretário da Saúde José Henrique Germann. Uma média de 2.000 testes são processados diariamente, mas a expectativa é a de que a capacidade de processamento aumente para 5.000 na próxima semana e 8.000 na seguinte, conforme os laboratórios vão certificando seus aparelhos.

A fila se explica pela pouca quantidade do teste disponível em São Paulo e no resto do país, o RT-PCR (reação em cadeia da polimerase em tempo real), que detecta o RNA do vírus em uma amostra de sangue ou secreção nasofaríngeo —coletado por uma espécie de cotonete pelo nariz ou pela boca. Com isso, o Ministério da Saúde chegou a afirmar que, em todo país, 84% de todos os casos não são registrados pelo poder público. Um primeiro estudo abrangente coordenado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) indica que número de casos pode ser 7 vezes maior que o apresentado oficialmente. Outra pesquisa, feita por cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Brasília, apontam que o número pode ser 15 vezes maior.

A testagem em massa a partir dos novos kits de testes rápidos, e defendida por diferentes autoridades, entre elas o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, ajudaria a avaliar com mais precisão a evolução da pandemia no território nacional. Como esses testes identificam os anticorpos produzidos contra a infecção, um paciente que teve coronavírus, mesmo curado e já sem sinais do vírus em seu corpo, teria a confirmação de que foi contagiado.

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