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O alívio (e a paz mental) de não ter de opinar sobre tudo

A opinião é um direito e uma necessidade psicológica. Sentir-se no dever de ter posição a respeito de todos os assuntos, se transformando em guardião da moralidade, é tóxico

Amy y Sheldon, en ‘The Big Bang Theory’.
Amy e Sheldon, personagens de ‘The Big Bang Theory’.

Todos nós temos o direito de opinar? É claro que sim. Somos obrigados a fazer isso? Parece que com mais força ainda, se nos basearmos na observação de qualquer publicação em uma rede social ou veículo de comunicação. Não há (ou não deveria haver) nenhuma dúvida sobre o quanto é positivo que os cidadãos tenham a possibilidade de se expressar. De fato, os números do coronavírus confirmaram que as democracias administram melhor as crises. É saudável para o indivíduo, para a sociedade e para o planeta que cada ser humano desenvolva seus próprios critérios e tenha plena liberdade de expressá-los, ponto final. Mas duas coisas poderiam ser deduzidas de fenômenos como os fiscais da vida alheia e os linchamentos virtuais: as novas tecnologias deram origem a novos e numerosos inquisidores voluntários, e estes são capazes de causar muito sofrimento. Também se poderia inferir que, quando alguém tem de expor com essa veemência quase violenta seus julgamentos, provavelmente não se sente muito bem internamente. “Apresentar e elaborar nossos argumentos não deveriam ser atos dolorosos. Chama muito a atenção que alguém se sinta profundamente magoado por causas alheias à sua vida. Quando alguém responde tão energicamente e de modo tão desproporcional, podemos levantar a hipótese de que essa pessoa pode estar em contato, em um nível inconsciente, com experiências anteriores de sua história de vida nas quais teve de se defender com força em situações em que sentia que sua sobrevivência ou sua integridade dependia disso —por exemplo, pessoas cuja opinião não foi levada em conta, ou que foram duramente criticadas, humilhadas ou punidas, ou passou por muitas outras situações em que houve carências relacionais”, explica ao EL PAÍS a psicóloga Leire Villaumbrales, diretora do centro de psicologia Alcea, em Madri—. Um exemplo frequente de críticas desproporcionalmente apaixonadas? Os atores linchados nas redes simplesmente por fazer seu trabalho ou por realizar alguma ação solidária.

A caça à celebridade

Sheila Estévez, psicóloga especialista em conflitos emocionais, assinala que “a tendência de culpar aquele que está mais longe de nós é arcaica e serve para sentirmos menos culpa ao canalizar o próprio mal-estar para fora de nós, colocando sobre essa figura toda a frustração. Não importa o que essa pessoa faça, o importante é que será canalizada através dessa celebridade a frustração popular, de um jeito ou de outro. O fato de haver diferenças sociais, culturais ou econômicas propicia a personificação do bom ou do mau nesse terceiro que é a celebridade ou aquela pessoa distante”. Não se deve confundir esta caça às bruxas (baseada apenas em emoções) com movimentos como o Me Too (baseados em fatos), embora a linha que os separa possa ser difusa às vezes (tanto que já chegaram a ocorrer situações terríveis e irreparáveis).

O fato de que a participação popular possa usar as mesmas ferramentas que as fofocas pode levar a erros, e ninguém esclarece melhor isso do que Barack Obama. “Você precisa abandonar rapidamente essa ideia de pureza, de que nunca estará em situações comprometedoras e de que sempre estará politicamente alerta”, disse o ex-presidente em um encontro em Chicago organizado por sua própria fundação, citando como exemplo que até mesmo as pessoas que mais admiramos têm falhas —e nossos piores inimigos, virtudes. “Percebo um perigo principalmente entre os jovens, e ele é ampliado pelas redes sociais. Eles têm a impressão de que a forma de conseguir mudar as coisas é simplesmente ser o mais crítico possível com outras pessoas. É como se pensassem que tuitando ou criando uma hashtag a respeito de como alguém não fez algo bem ou não usou o verbo correto já poderão ficar tranquilos porque agiram. Isso não é ativismo. Isso é a coisa fácil.”

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A volta do conhecimento

No entanto, parece que há quem se sinta um Martin Luther King depois de criticar o comportamento de outra pessoa (não necessariamente uma celebridade, basta ser um conhecido no Facebook). A psicóloga Leire Villaumbrales acredita que isso se deva a três fatores: “As redes sociais e o WhatsApp podem ter grande alcance e atingir grandes audiências, e com isso saciam a fome de reconhecimento, de que minha opinião seja valorizada, levada em conta e tenha impacto em um grande público. Também oferecem a proteção de estar por trás da tela, às vezes protegido pelo anonimato, diminuindo o medo que às vezes surge na hora de expressar uma opinião. Por último, essa distância também nos impossibilita de ver a reação que nossas palavras provocam na outra pessoa, de ver toda essa linguagem não verbal que nos dá muitas informações sobre o que sente quem está na nossa frente e modula nossas respostas”.

Fatos x opiniões

Embora muitos defendam argumentos como se fossem teoremas irrefutáveis, o próprio Marco Aurélio escrevia em suas Meditações que “a vida é uma opinião”. E sem necessidade de recorrer à filosofia, em uma cena do filme Divertida Mente os personagens (que eram duas emoções e um amigo imaginário que viviam na mente de uma menina) falavam da diferença entre fatos e opiniões quando, de repente, ambos (que eram umas caixinhas) se misturavam e um dos personagens comentava que isso ocorria constantemente. Poucos interiorizaram a mensagem dessa fábula sobre a inteligência emocional. “É importante ter em mente que opinar implica compartilhar um pensamento sobre um assunto, e nisso deve estar implícito que cada opinião é a soma de experiências, crenças, informações e a interpretação a partir de si mesmo. Se eu quiser que aceitem meu ponto de vista, terei de aplicar em mim a mesma fórmula: aceitar não significa concordar, mas levar em conta uma realidade mais global, a opinião de todos. Caso contrário, em vez de aceitar a realidade, nós a envenenamos e, ao mesmo tempo, nos resignamos diante dela, e isso gera maior frustração e mal-estar do que o que tínhamos no início”, explica Sheila Estévez.

As redes sociais e o WhatsApp podem ter grande alcance e atingir grandes audiências, e com isso saciam a fome de reconhecimento. Também oferecem a proteção de estar por trás da tela, diminuindo o medo que às vezes surge na hora de expressar uma opinião
Leire Villaumbrales, psicóloga

O que há por trás daqueles que custam tanto a entender que suas crenças não têm por que ser as mesma dos demais? Frequentemente, imaturidade emocional e pouca tolerância à frustração. “Ao ligar a televisão, não é incomum ver condutas infantis: birras, brigas do tipo ‘é você que é’, raiva porque me disseram que tenho de fazer alguma coisa que não quero fazer, insultos etc.”, explica a psicóloga Leire Villaumbrales. Sheila Estévez acrescenta que “a forma como respondemos a um argumento oposto ao nosso revela se temos baixa tendência à frustração ou se temos a capacidade de transcender a necessidade de ter a razão ou de encontrar o que se ajusta melhor à verdade, coisa que é fruto da maturidade intelectual e emocional. Quem fica bloqueado no próprio argumento age como criança. Querer ter razão é enfatizar o próprio ego, coisa que a maturidade emocional, psicológica e de pensamento transcende em prol da verdade ou razão em si”. Nas redes sociais e grupos de WhatsApp somos testemunhas de discussões tão acaloradas como estéreis: “Muitas vezes, essas conversas estimulam lutas por poder nas quais ganha quem consegue convencer. Parece que respondemos a uma necessidade de que o outro escute e assuma nossa posição como certa —e, portanto, corrija a dele, que é a errada. Quando isso ocorre, estamos descontando a capacidade de análise e de tomada de decisões da outra pessoa. É uma posição muito pouco respeitosa com o fato de que o outro também pode ter verdades igualmente válidas, embora sejam diferentes das nossas, e de certa forma também é uma atitude egocêntrica”, aponta a psicóloga.

Formados com louvor no Google

Se um extraterrestre ou uma Inteligência Artificial sem informações prévias analisasse nossas redes sociais hoje, poderia inferir que só na Espanha há milhões de pessoas doutoradas em doenças infecciosas, gestão de emergências sanitárias e ciências econômicas (e, o que é mais admirável, que muitas vezes a mesma pessoa tem formação e experiência nas três especialidades ao mesmo tempo). O fenômeno que permite que alguns se sintam capacitados a questionar de igual para igual um especialista após uma pesquisa superficial e parcial do assunto que esse especialista estuda há anos não é novo, mas decolou com a Internet e, graças às fake news, entrou em órbita. “Hoje em dia temos muitas informações a um clique de distância”, prossegue Villaumbrales. “É verdade que lemos muito e que podemos formar uma opinião sobre muitos assuntos, e isso nos dá a sensação de ser pequenos especialistas em muitos âmbitos, esquecendo que um especialista tem uma trajetória de anos de estudo que, entre outras coisas, permite que ele contraste a informação fictícia com a real. Nesse sentido, podemos criar uma falsa sensação de controle e de conhecimento.” Estévez assinala que “o grande problema é que todo dia temos mais informações, mas menos conhecimento: misturamos os dados e nesse coquetel cada um capta um sabor, que nem sempre é o mesmo. Como costumo dizer, cada um tem sua leitura do conto, o vilão para alguns é o herói para outros, e assim inflamamos o debate. Ter uma atitude crítica em vez de se posicionar acima dos demais é a melhor fórmula de ficar informado e poder dar uma opinião sustentada pelo conhecimento”.

Sobre a necessidade de julgar

Avaliar o outro é humano e traz benefícios para o grupo. “Desde os nossos pais, que têm um trabalho de vigilância e de ensino de limites e valores, até os professores, que são os encarregados de transmitir ensinamentos regrados e fruto do consenso social, crescemos sendo tutelados ou supervisionados por nosso entorno. Daí vem o fato de que em algum momento todos nos preocupemos com o que os outros opinam de nós e que tenhamos referentes ou modelos a seguir”, explica Sheila Estévez. A vigilância social é fundamental para manter comportamentos civilizados, mas às vezes essa força de grupo provoca exatamente o contrário, como no caso dos profissionais de saúde, funcionários de supermercados e contagiados hostilizados por seus vizinhos. “Nessas ocasiões, vimos ações que tinham a intenção de impor as normas e apelar à moralidade”, observa Villaumbrales. “E faziam isso de um modo muito agressivo, exigente e intransigente. Talvez seja a forma como essas próprias pessoas conseguem acatar as normas, aferrando-se rigidamente à moral e sendo exigentes consigo mesmas.”

Ter uma atitude crítica em vez de se posicionar acima dos demais é a melhor fórmula de ficar informado e poder dar uma opinião sustentada pelo conhecimento
idem

Essa hostilidade realmente dói tanto? Muitos dos hostilizados nem se afetam com ela, mas é indiscutível a inquietação do hostilizador, como no caso de quem critica ferozmente atores e esportistas com carreiras de sucesso. Um aspecto bastante paradoxal dessa observação em alerta constante que causa tanta frustração em quem a faz é que, na maioria das vezes, ninguém as obriga a fazê-la. “Algumas pessoas veem as opiniões dos outros como um convite ao confronto, como se escutassem com um filtro que transforma o que ouvem em ‘eu estou atacando, agora se defenda’, e reagem impulsivamente. Para outras, pode ser um desejo de ser valorizadas como pessoas sábias ou inteligentes. E outras ainda podem sentir a necessidade de demonstrar que o outro está errado. As pessoas que dão sua opinião respondendo a uma sensação de ‘obrigação’ estão, muito provavelmente, reagindo a conflitos internos individuais”, acrescenta Leire Villaumbrales.

Devemos parar de opinar?

A liberdade de expressar nossa opinião não é apenas um direito fundamental reconhecido na Declaração Universal de Direitos Humanos, é também uma nutritiva necessidade psicológica. “Quando opinamos livremente e estando em paz, tendemos a aceitar os argumentos dos outros sem nos sentirmos invadidos por eles. A finalidade de conversar sobre um assunto e deixar que todos opinem nos permite crescer. A informação fundamentada toma corpo e, ao ser elaborada, transforma-se em conhecimento, que é algo maior, mais construído, vai além da ideia inicial, alimentando-se com os argumentos dados por todas as partes”, assinala Estévez. “No entanto, quando a finalidade de opinar é que nos deem a razão, está em jogo o valor subjetivo da justiça, da lealdade, da bondade, da verdade, da generosidade e tantos outros dos quais acreditamos realmente ser donos, ou que pensamos ter por estarmos firmemente convencidos. Nesse caso, trata-se de uma espécie de cegueira ou surdez ao que nos chega de fora, a fim de retroalimentar nosso ego, ou nossa razão, o que, tendo essa finalidade, costuma acabar mal, causando conflitos interpessoais, gerando distância em vez de aproximação.”

As pessoas que dão sua opinião respondendo a uma sensação de ‘obrigação’ estão, muito provavelmente, reagindo a conflitos internos individuais
idem

Especialmente em momentos complicados como o atual, é natural que aflorem emoções como raiva, tristeza, culpa, vergonha e medo. A chave estaria na forma de administrá-las e em ouvir o outro. “É normal reagir emocionalmente a algo que interfere em nosso modo de vida. A chave, do meu ponto de vista, está na intensidade e na forma dessas reações. O limite entre a saudável participação popular e a necessidade patológica de impor opiniões está na capacidade de ouvir, respeitar e negociar. E na capacidade de poder colocar minhas emoções a serviço de uma relação respeitosa com o outro. Até mesmo a irritação e a raiva”, conclui Villaumbrales.

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