O “terraplanismo econômico” busca dominar a responsabilidade social
Apesar da mobilização da sociedade para atenuar a situação calamitosa na qual foi atirada uma parcela enorme da população, só com políticas públicas será possível dar segurança aos brasileiros
O Brasil está diante de um enorme retrocesso social, com milhões de pessoas devolvidas às condições de pobreza, miséria, fome, insegurança alimentar, vivendo nas ruas. São fruto do desemprego e informalidades estruturais, aumentados pela situação de pandemia e pela descontinuidade, insegurança e valores irrisórios dos auxílios emergenciais. Apesar da mobilização da sociedade para contribuir de diferentes formas para atenuar momentaneamente a situação calamitosa na qual foi atirada uma parcela enorme da população, só com políticas públicas será possível dar segurança aos brasileiros por meio de direitos sociais que se realizam com a consolidação de um vigoroso sistema público de proteção social. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 os direitos sociais de assistência, saúde e previdência vêm se consolidando por meio de sistemas de políticas sociais que visam a universalização da cobertura. Na saúde, o SUS, e na assistência, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), são sistemas complexos com competências compartilhadas entre a União, Estados e municípios, organizando uma rede hierarquizada de instituições descentralizadas e com enorme capilaridade, atingindo todo o território nacional. Esses sistemas, na atual situação de pandemia demonstraram ser imprescindíveis, desempenhando inúmeras funções no acolhimento, prevenção, proteção, tratamento e recuperação. Ficou evidente que precisam ser melhor apoiados, aprimorados e ampliados.
Causa espanto que, ao contrário do esperado, tramite no Congresso Nacional o projeto de lei (PL nº 5.343/2020) de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) que, a título de uma Lei de Responsabilidade Social, elaborada por economistas vinculados ao mercado financeiro ―alegando a necessidade de redução da pobreza e da cobertura da população em situação de trabalho informal―, termine por implicar no desmonte do SUAS. Além disso, pretende impor a centralização e controle do sistema de informações do cadastro de beneficiários da proteção social, a transferência de renda entre os menos pobres para os mais pobres e, pasmem, o direcionamento dos recursos públicos da assistência social para o mercado financeiro e sua aplicação em títulos da dívida pública. Por essas razões, é um projeto que deve ser rejeitado, pois é um retrocesso em relação aos direitos de cidadania e ao sistema de proteção social.
Tal proposta é fruto de estudo realizado por um grupo de economistas defensores do Teto de Gastos que pretendem resolver o problema da miséria e da insegurança sem aumentar o gasto público nem tributar os mais ricos. Com base em dados estatísticos, o documento rejeita as políticas de transferência de renda e o modelo de renda básica universal como alternativas para reduzir o caráter volátil da renda dos mais pobres. Para os signatários da proposta, há um problema de eficiência no sistema de proteção social, já que o aumento do gasto não converge diretamente para maior redução da pobreza. Portanto, desconsidera os avanços alcançados pelas políticas redistributivas já implementadas no país que contribuíram para redução da pobreza e desigualdades. Políticas públicas constitucionalizadas como o salário-família, o abono salarial e o seguro defeso são concebidas como insuficientes na retração da pobreza e da desigualdade. Nesse sentido, a proposta é atrasada em vários aspectos.
Ausência de estratégia de desenvolvimento nacional
Embora se preocupe corretamente com a alta informalidade, trata-a como definitiva, ao afirmar que a proteção social via assistência social aos trabalhadores informais é o “caminho mais promissor que a estratégia de inclusão por meio de estímulos à formalização e consequente inserção nos mecanismos de proteção ao trabalhador formal”. Nesse sentido, o PL adere perfeitamente à ausência de qualquer plano ou estratégia de desenvolvimento nacional, suplantando o debate em torno da defesa, expansão e proteção do trabalho formal no país. Trata a informalidade sob o viés exclusivo da volatilidade de renda, sem considerar os problemas estruturais que a geram em contextos de mudanças no perfil do trabalho e sua incidência em um país de capitalismo periférico como o Brasil.
Da forma como é concebido, além de contrair os gastos com o proposto Benefício de Renda Mínima (BRM), que deve ficar circunscrito ao Teto de Gastos Públicos (Emenda Constitucional N.95/2016), o projeto viabilizará a canalização de recursos das políticas sociais para alimentar o apetite voraz dos bancos e instituições financeiras por meio de uma poupança forçada para estudantes do ensino médio e outra para as famílias (Poupança Seguro Família). Neste primeiro quesito, a proposta instaura a lógica meritocrática para acesso à poupança para jovens e crianças, usando o critério de desempenho em olimpíadas de conhecimento e afirmando que os jovens evadem do ensino médio e superior por “subestimar os retornos” (sic) do investimento. Ignora as desigualdades de acesso à educação e as assimetrias de condições educacionais que são marcantes no cenário nacional. Fundamentalmente, negligencia o fato de que a evasão escolar dos jovens pobres é desencadeada pela necessidade premente de inserção no mercado de trabalho (precarizado) para ajudar no sustento de suas famílias. Quanto à Poupança Seguro Família, o dinheiro somente poderá ser sacado se o beneficiário estiver com a renda abaixo do limite estipulado. Decerto que isto conduzirá ao incremento da lógica rentista de ganhos de curto prazo, especulação financeira e concentração da renda.
Reforço do “efeito preguiça”
O fato é que a pobreza não é exclusivamente monetária e envolve um conjunto de carências que requerem a presença, continuidade e regularidade de serviços e garantias como acesso à saúde, à educação e à moradia. A proposta do PL se ancora em um amplo repertório moral sobre a pobreza e os pobres, quando privilegia um arcabouço técnico com o objetivo de controlar a renda dos pobres e evitar que se aproveitem dos benefícios, quando reconhece a volatilidade da renda, mas supõe que será possível controlá-la pela revelação da renda pelos necessitados. O que vai se criar é a volatilidade dos benefícios, gerando incertezas e podendo mesmo gerar o efeito contrário de garantia. Lembre-se aqui que o efeito positivo da transferência de renda está diretamente relacionado à sua regularidade. Veja-se que o critério não é o de necessidades mínimas, mas de renda mínima. Assim, se o vulnerável deixa de revelar parte da sua renda, sobre a qual não tem nenhuma garantia amanhã ou mês que vem, ele é o pobre fraudador, o que já foi refutado por inúmeros estudos sobre o Bolsa Família. De forma implícita reforça-se o “efeito preguiça”, que associa a provisão de políticas sociais ao desestímulo ao trabalho, noção que remete à clássica Reforma da Lei dos Pobres inglesa de 1834 e que já deveria ter sido superada.
Seguindo essa concepção, o Cadastro Único é reduzido, na proposta, a mero instrumento tecnocrático de controle da renda, quando sua inovação foi exatamente não ser só um registro, mas um mecanismo de acompanhamento e atuação da assistência social sobre o conjunto de necessidades sociais dos vulneráveis. A ausência, na proposta, de qualquer menção ao SUAS, SUS e Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) ―sistemas já consolidados de enfrentamento às necessidades sociais―, parece a assunção de que não há mais o que fazer além de transferir parcos valores aos pobres.
Ao unificar os quatro benefícios do Programa Bolsa Família em apenas um, o novo Benefício de Renda Mínima (BRM) não contará com aporte de recursos adicionais, o que aponta para a permanência do grau de desproteção social existente. A proposta também não considera a tendência de aumento das situações de vulnerabilidade e exclusão social no contexto pós-pandemia ou a correção de valores pela inflação. Em vez de ampliar o acesso à renda, a proposta o reduz, ao restringir o Benefício de Prestação Continuada (BPC). A sanha contra o BPC não para nunca e remonta às reformas neoliberais da década de 1990. Ele é considerado de valor alto, embora seja o mínimo constitucional de um salário. Os estudos registram seu alto impacto positivo na vida dos idosos, das pessoas com deficiência e suas famílias e, sabe-se, o corte de renda para sua concessão já é baixíssimo e que ele já é um benefício altamente regulado.
É imperativo agir com celeridade e urgência para o financiamento do Estado Social, revertendo as constantes investidas de focalização extrema das políticas públicas de amparo aos mais vulneráveis, de incremento de seu caráter residual-liberal e de dilaceração de políticas constitucionalizadas, como o abono salarial, seguro-desemprego, salário família, seguro defeso e o BPC. Em 1965, em plena ditadura militar (1964-1985), Celso Furtado publicou um texto no qual refletia sobre os entraves políticos ao desenvolvimento econômico, assim como os obstáculos impostos pelas elites político-econômicas e oligárquicas à reforma progressiva do arranjo tributário brasileiro para o financiamento das políticas públicas. Esta é a grande questão que deve ser seriamente enfrentada no cenário de agravamento da pandemia, de crescimento do desemprego, de recrudescimento da extrema pobreza e a subsequente desintegração do tecido social.
Aumento da fome
Economistas como André Lara Resende vêm promovendo uma profunda revisão dos cânones ortodoxos que aprisionam as políticas públicas à dinâmica da financeirização global. Segundo o autor, o Estado fixa a taxa de juros e emite dívida em sua própria moeda, o que é indispensável para o financiamento dos investimentos em infraestrutura e bem-estar social. Quando o gasto público é para salvar o sistema financeiro, como ocorreu com a crise financeira sistêmica internacional de 2008, o Banco Central foi autorizado a emitir moeda e creditar os recursos diretamente nos bancos, sem aumento da dívida pública, para que não houvesse questionamento da sociedade. Entretanto, uma vez que o gasto público tenha como objetivo investir em saúde, bem-estar, educação saneamento, segurança e meio ambiente, é imperativo que não se emita moeda, mas sim dívida, o que facilita as constantes pressões dos signatários da disciplina fiscal. O Brasil vive um cenário excepcional com a pandemia global, o que requer a implementação de medidas igualmente excepcionais e a reativação do papel do Estado para robustecer o colchão de proteção social, pois o flagelo da insegurança alimentar e da fome já é uma realidade na mesa das famílias mais vulneráveis.
Dados recentes da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) evidenciam que, em 2020, a fome afetou 19 milhões de brasileiros, que abarcam as 116,8 milhões de pessoas acometidas por algum grau de insegurança alimentar nos últimos meses do ano passado, o que representa 55,2% dos domicílios. Segundo a FGV Social, entre agosto de 2020 e fevereiro de 2021, o número de pobres triplicou de 9,5 milhões para 27 milhões. Soma-se a isso o encarecimento dos alimentos e o consequente agravamento da fome.
A abordagem liberal e simplificadora da política pública encabeçada pelo PL desconsidera o caráter volátil e instável do mercado de trabalho brasileiro. Muitos trabalhadores estão empregados nos serviços, comércio, pequenas empresas, possuem baixa escolaridade e têm remuneração inferior ao salário-mínimo. Em segundo lugar, estabelece cisões políticas artificiais entre a população vulnerável, pobre e miserável, contrariando a integração social de cunho solidário enquanto atributo do Estado de Bem-Estar Social. No contexto atual de profundas e irreversíveis mudanças tecnológicas, desemprego crescente e informalidade, o emprego formal e com carteira assinada constitui um atributo de luxo, o que tem impactos severos na arrecadação da Previdência Social, no mercado doméstico de consumo de massas, nos processos produtivos e na dinâmica econômica. Reconhecendo esse fato, a proposta do PL alinha-se aos ditames do pensamento neoliberal propondo soluções residuais, desvinculadas dos parâmetros mínimos constitucionais e desconformes a qualquer concepção robusta de direitos sociais.
Cabe registrar a insistência de setores bem informados da sociedade brasileira em criar fórmulas para resolver a quadratura do círculo, encaixar o combate à pobreza em medidas draconianas de austeridade fiscal. Nos termos do economista José Luis Oreiro, o Brasil insiste na agenda do “terraplanismo econômico”, pois os resultados das políticas de austeridade foram pífios até aqui. A EC95, a reforma trabalhista, a terceirização e a reforma da previdência social vêm destruindo o arcabouço da proteção social sem demonstrar qualquer impacto no crescimento econômico e na redução das desigualdades. Responsabilidade social significa reconhecer a magnitude dos nossos problemas sociais, usar e aprimorar a estrutura institucional de que dispomos e superar nosso dilema histórico de negação da cidadania. A engenharia inovadora no Brasil deve ser na direção da progressividade tributária bem como na redistribuição da riqueza gerada por todos os brasileiros, e não na completa destruição do (subfinanciado) sistema de proteção social, que a duras penas foi edificado com a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Em suma, a proposta assume a informalidade como uma situação dada e não indica ações que transformem a expansão do mercado informal; fortalece a especulação financeira e, consequentemente, a concentração de riqueza; reforça uma concepção de pobreza restrita à insuficiência de renda e desvaloriza a importância dos serviços públicos, além de fomentar juízos morais sobre os pobres e fortalecer a perspectiva meritocrática, desconsiderando as desigualdades de acesso aos bens públicos e condições de vida que caracterizam a realidade brasileira. Portanto, a “responsabilidade social” proposta para o Brasil de hoje é o desmonte do SUAS.
Texto de autoria do Grupo de Pesquisa “Futuros da Proteção Social” do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), assinado por Sonia Fleury (coordenadora); Lenaura Lobato, Luciene Burlandy, Monica Senna, , Carlos Eduardo Santos Pinho, Arnaldo Lanzara, Fernanda Pernasetti, Ronaldo Teodoro e Virginia Fava (pesquisadores).
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.