O auxílio que revoluciona a vida no Ceará não salva da rua em São Paulo
Renda dos beneficiários cresceu, em média, 34%, mas em algumas áreas do Nordeste pode até dobrar. Raquel ampliou a casa no interior cearense com quatro meses do benefício, mas Jocelino só paga as contas enquanto vive numa barraca nas ruas da capital paulista
Há muitos Brasis sendo impactados pelo auxílio emergencial do Governo Bolsonaro nos últimos meses. O mesmo programa que não consegue garantir o aluguel do cearense Jocelino na megalópole São Paulo permitiu que sua conterrânea, a agricultora Patrícia, instalasse wi-fi pela primeira vez e que Raquel enfim conseguisse dinheiro para ampliar sua casa na zona rural de uma pequena cidade do interior do Ceará. A história desses três cearenses durante a pandemia retrata um enorme abismo que paira sobre os vários significados que o benefício pode assumir no extenso e desigual território brasileiro.
Criado para mitigar os efeitos da pandemia do coronavírus, o programa já beneficiou de alguma maneira metade das famílias do país e chegou a 67 milhões de pessoas. Num balanço geral, a renda média dos beneficiários está até melhor agora do que antes da crise sanitária: engordou cerca de um terço (34%), segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas com os dados mais recentes da Pnad-Covid. Mas essa melhoria não é linear. Os efeitos positivos do auxílio do Governo são mais fortes em Estados do Norte e Nordeste. Enquanto em São Paulo o benefício fez crescer, em média, 54% da renda dos beneficiários, no Ceará o ganho foi muito maior, de até 110%. Os dados foram levantados pelo pesquisador Lauro Gonzalez, que rechaça a ideia de que o auxílio seja uma política excessiva. “O que vemos é como o país é pobre e muito desigual”, analisa.
Em São Paulo, o auxílio não garante o aluguel
No fim de março deste ano, a crise gerada pelo coronavírus levou embora o emprego de carteira assinada de Jocelino da Silva Lima, de 47 anos, que trabalhava em uma prestadora de serviços de limpeza em São Paulo. Sem renda, o cearense, natural de Fortaleza, se viu obrigado a devolver em abril a quitinete que alugava, por 600 reais, na região central, e se viu na necessidade de viver nas ruas da capital com apenas três mudas de roupas dentro de uma sacola vermelha. “É uma situação muito triste, durmo aonde dá. Às vezes, no papelão no Vale do Anhangabaú. Tento vagas em albergues também. A minha vida se tornou procurar diariamente um lugar para dormir”, conta Jocelino entre uma garfada e outra na marmita de arroz e frango, que foi buscar na quadra dos Sindicato dos Bancários, onde o Movimento Estadual da População em situação de Rua está servindo diariamente almoço e café da manhã.
Nem mesmo os 600 reais do auxílio emergencial, que começou a receber a partir de abril, foram suficientes para ajudá-lo a sair da situação de rua. “Quando recebi a primeira parcela, pensei em tentar voltar a alugar um lugar, mas o dinheiro iria embora só no aluguel. Teriam outras contas e a comida. A gente também não sabe até quando o Governo vai continuar a pagar, eles já falaram que vão diminuir, então fica ainda mais difícil conseguir”, diz.
O auxílio emergencial, criado originalmente para durar três meses (tendo como base os meses de abril, maio e junho) e depois prorrogado por duas parcelas (julho e agosto), deve ser estendido até o fim do ano. O valor do benefício, no entanto, deve ser reduzido. O ministro da Economia, Paulo Guedes, defendia uma mudança de 600 reais para 200 reais nos últimos meses da ajuda, mas o presidente pressiona por um valor maior, de pelo menos 300 reais. Segundo cálculo feito por Gonzales, da FGV, caso o benefício seja reduzido a parcelas de 300 reais, o ganho de renda dos beneficiários seria, em média, de apenas 1%. “Mas várias categorias registrariam perdas relevantes, como cabeleireiros (-17%), motoristas de aplicativos e comerciantes donos de bar (-12%)”, afirma.
Nos últimos dias, a área econômica do Governo também tem buscado um consenso para viabilizar o programa Renda Brasil, que pretende ser o novo Bolsa Família. Bolsonaro disse, na semana passada, que aguarda outro desenho do novo benefício já que não estava de acordo com o projeto de Guedes de acabar com o abono salarial para bancar parte do Renda Brasil. Sem espaço no orçamento, integrantes da pasta já admitem que o valor do programa pode ficar abaixo dos 300 reais almejados pelo presidente para lançar a marca social de seu governo.
Sem saber até quando seguirá desempregado e nem o futuro exato do benefício e do Renda Brasil, Jocelino tem guardado um pouco do dinheiro do auxílio e só utilizado em emergências, como em noites muito frias, em que paga uma pensão de 12 reais para passar a noite. No fim da manhã da última quinta-feira (27), em que os termômetros registravam temperaturas baixas na capital, Jocelino estava um pouco mais tranquilo. Com alegria tirou da carteira um pequeno papel amarelo, um recibo, em que dizia que ele já tinha vaga garantida em um albergue. Precisava chegar ao local às 18h. “Isso é um alívio”. O cearense explica que os três filhos que moram em Fortaleza não fazem ideia de que ele está sem um teto para morar. “Eles já são casados, têm a vida deles e já passam aperto. Não posso pedir ajuda para quem já está tentando sobreviver”, diz.
Quase toda a sua alimentação é proveniente de doações. “De tarde, como lá no chá do padre [Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras)] e ainda cortei meu cabelo. Uso os banheiros de lá também. A gente precisa estar sempre arrumadinho”, diz. O maior problema, segundo Jocelino, é procurar um emprego quando não se tem um endereço fixo. “Existe uma discriminação grande. Se eu disser que moro na rua, não me aceitam”, diz ele. “Comecei a dar um endereço de um conhecido. Mas quase não acho vaga na pandemia. Sem emprego, como vou conseguir um lugar fixo para morar?”, diz.
Enquanto batalha para sair de duras estatísticas como a da fila do desemprego, que já atinge mais de 12 milhões de pessoas do país, e dos moradores de rua da capital de São Paulo ― que somaram mais de 24.000 em 2019 ― Jocelino acorda todos os dias com a esperança de tempos melhores. “Acho que a pandemia é como uma chuva que vai passar. E logo eu vou me empregar. Tem que ter paciência. Tudo só precisa voltar ao normal, e olha que meu normal também era viver apertado”.
Ter wi-fi pela primeira vez e comprar fruta no mercado
A quase 3.000 quilômetros da metrópole paulista, a vida da agricultora Patrícia Nataline de Oliveira, de 31 anos, sempre foi marcada pela ausência até do básico. Antes da pandemia, ela, o marido e dois filhos viviam com menos de 400 reais por mês, juntando a venda do que sobrava da roça, bicos de faxina e os 250 reais do programa Bolsa Família. Patrícia vive em uma comunidade rural de Aracoiaba ―uma cidade do interior do Ceará de cerca de 25.000 habitantes onde um quinto da população depende de programas de transferência de renda e cujas principais fontes de trabalho se resumem ao pequeno comércio interno e algumas fábricas de roupas. Não paga aluguel, mas também não tem muitas saídas pra trabalhar por conta própria e “fazer dinheiro”.
Patrícia nunca pensou que sua vida pudesse mudar tão rápido por uma ação de Governo, mas, há quatro meses, experimenta o inimaginável. Graças ao auxílio emergencial de 1.200 reais, a renda familiar triplicou mesmo quando a plantação arrefeceu pela chegada da seca e os bicos minguaram com o distanciamento social da pandemia. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que o programa emergencial tem um impacto positivo maior nos domicílios mais pobres do Brasil, cuja renda média agora é 124% (ou maior que o dobro) da renda habitual pré-crise. Os efeitos que Patrícia tem sentido são ainda mais positivos que a média com este perfil.
“O agricultor sempre foi esquecido e teve que saber correr atrás do seu pra viver, aí veio essa pandemia e fizeram esse auxílio, que ajudou. O Governo agora tá cumprindo a obrigação de melhorar nossa vida”, analisa Patrícia, que já se preparava para voltar ao fogão à lenha quando passou a receber o auxílio e conseguiu manter o fogão a gás mesmo com o botijão tão caro, a 80 reais. Ela também instalou pela primeira vez uma rede Wifi em casa ― onde não pegava sequer o sinal de celular ― para que ela e os filhos continuassem acompanhando as aulas da escola pública, agora transmitidas pelo Whatsapp. “E fruta sempre foi mais difícil a gente comer nessa época do ano porque não chove, a terra seca e não dá nada no que a gente já tem plantado, mas agora a gente tá tomando muito suco porque [com o auxílio] consegue comprar as frutas no mercado”, conta.
Patrícia mora com o marido e dois filhos em uma casa sem água encanada. Para tomar banho e fazer a limpeza doméstica precisa carregar baldes do açude da comunidade em carros de mão ou pegar a água da cisterna ao lado de casa, que deveria ser usada só para beber. Sem chuva desde junho, a cisterna já está quase seca. O valor do auxílio também ajuda na compra de máscaras e álcool em gel para se proteger num lugar afastado da cidade que só tem médico no posto da comunidade uma vez por mês.
Da janela de casa, Patrícia zapeia notícias pelo telefone celular. Acompanha cada novidade sobre o possível fim do auxílio e a provável transição do Bolsa Família para o Renda Brasil. “Tem gente que diz que estão dando dinheiro pra gente não ter que trabalhar mais e que a gente não contribui pro país. Não é assim. Se eu não tenho dinheiro, nem vivo nem pago imposto. Eu recebo esse dinheiro, mas ele volta pro país”, diz. Ela está preocupada com a indefinição de Bolsonaro sobre o programa que afeta diretamente sua vida. “Não dá pra escrever o que o presidente Bolsonaro diz porque toda hora muda. Aí a gente está sem saber como vai ser. Se voltar pro valor antigo, vai ficar pior do que era antes. Seja lá o presidente que for, a gente precisa ter o que comer”, argumenta.
“Quatro meses de auxílio serviram para ampliar a casa”
O auxílio emergencial provocou um boom de novos recursos na cidade. E não demorou para o mercado local reagir e aumentar os preços ― desde a comida até materiais de construção. “Os valores das coisas não vão voltar ao que era antes da noite pro dia. Aumentou o preço da comida. Até o tijolo e o cimento aumentou”, diz a agricultora Antônia Raquel Rodrigues, de 33 anos, que também mora em uma comunidade rural da cidade. Grávida do segundo filho no início da crise, ela viu sua renda mensal de 150 reais do Bolsa Família ir a 1.200 reais com o auxílio emergencial. Usou o dinheiro principalmente para ampliar a casa, já que a família crescia. O vão único onde vivia com o filho de seis anos ganhou um quarto, uma sala, um banheiro e uma cozinha. “Pra mim quatro meses de auxílio serviram pra ampliar a minha casa. Eu construí isso que vai ficar como um patrimônio, mesmo não estando toda terminada ainda”, diz.
O tempo para concluir o reboco e a pintura externa vai depender das discussões em curso bem longe dali, em Brasília. E Raquel está preocupada com a demora de Bolsonaro para desenhar seu novo programa que visa substituir o Bolsa Família. “Toda hora passa na cabeça uma nuvem de como vai ser isso. Como vai ser esse Renda Brasil?”, questiona ela. “O Governo vai ter que dar uma solução. Mesmo que fique em 300 reais, colocando na balança, tem que ver se vai ficar a mesma coisa dos 150 reais do Bolsa Família porque os valores das coisas estão subindo”, cobra.
Tanto Raquel quanto Patrícia evitam atribuir a melhoria de vida dos últimos meses pessoalmente ao presidente Bolsonaro, cuja popularidade tem crescido na região Nordeste, onde o auxílio tem melhorado a vida dos mais pobres e elevado seu poder de compra. Elas comemoram a quantia maior que o “Bolsa Família do Lula”, mas querem ações duradouras ao mesmo tempo em que temem um efeito colateral: o de ficarem em breve com um poder de compra ainda menor que o da pré-crise. Só falam dos políticos que protagonizam a polarização política brasileira quando são questionadas pela reportagem.
“Não votei no Bolsonaro, mas não tenho nada contra ele. Só acho que o presidente poderia fazer mais pra nossa vida melhorar. Talvez tivesse sido melhor, em vez de mandar esse dinheiro todo de uma vez, ter feito de um jeito pra mais gente melhorar de vida e por mais tempo, né?”, opina Raquel. As duas agricultoras estão muito atentas a cada nova notícia sobre o futuro do auxílio, mas dizem mal conhecerem figuras como Damares ou Fabrício Queiroz. “Sei que essa Damares é uma ministra e que Queiroz pode estar envolvido com alguma história de roubo, que é só o que tem na política. Eu já ouvi falar, mas nunca pensei em procurar conhecer quem são”, diz Patricia. “Bolsonaro eu sei que ele promete e volta a palavra atrás. Ele muda da água pro vinho, como diz o ditado”, conclui.
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