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As macroinvestigações sobre pedofilia na Igreja Católica no mundo: milhares de vítimas e poucos condenados

Estados Unidos, Austrália, Irlanda, Bélgica, Alemanha e agora a França vêm revelando a magnitude de crimes sepultados por décadas de silêncio

Pederastia Iglesia catolica
Jean-Marc Sauvé, à esquerda, entrega cópias do relatório sobre pedofilia ao bispo Eric de Moulins-Beaufort, presidente da Conferência Episcopal da França, na terça-feira em Paris.THOMAS COEX (AFP)

A última investigação sobre vítimas de abusos sexuais na Igreja francesa voltou a escandalizar o mundo. A Comissão Independente sobre Abusos na Igreja Católica (Ciase) revelou na terça-feira que pelo menos 216.000 menores foram vítimas de pedofilia no seio da Igreja Católica francesa nos últimos 70 anos, uma cifra que chega a 330.000 vítimas se forem incluídos os abusos cometidos por leigos ligados à instituição: professores, catequistas e dirigentes de movimentos juvenis.

Na França, foi a Conferência Episcopal que decidiu encarregar a uma comissão independente a tarefa de investigar possíveis casos de pedofilia desde 1950. Na Espanha, foi publicada no final de junho uma investigação de três universidades – a Universidade Aberta da Catalunha, a Universidade de Barcelona e a Universidade do País Basco − cuja principal conclusão é que as autoridades religiosas na Espanha evitaram até agora investigar “a fundo” esse problema. Uma atitude que não parece ter mudado, apesar da pressão da opinião pública, e que se refletiu nas afirmações feitas pelo porta-voz da Conferência Episcopal Espanhola (CEE), Luis Argüello, em 30 de setembro, quando admitiu que elas não têm uma atitude “proativa”. Ou seja, eles dizem que se alguma vítima se dirigir aos bispos, vão atendê-la, mas não farão nada para saber a verdade. Nem revisar arquivos, nem contabilizar casos, nem estabelecer indenizações, nem realizar uma investigação em larga escala do passado.

Na Espanha, a única contagem de vítimas é a feita pelo EL PAÍS, na ausência de dados oficiais e da Igreja. Enquanto permanece essa opacidade sobre os casos ocorridos na Espanha, ao longo das últimas duas décadas ocorreram macroinvestigações em diversos países do mundo. Algumas foram promovidas pelo Parlamento, como ocorreu na Bélgica; outras, pela Conferência Episcopal e por dioceses específicas, como na Alemanha; em outros casos, como ocorreu nos Estados Unidos, a primeira grande iniciativa que deu frutos foi conduzida pela equipe de investigação do jornal The Boston Globe. Vieram à tona dados, nomes de vítimas e de abusadores que só permitem entrever a magnitude de um problema que persiste e sobre o qual ainda é comum o silêncio, assim como a impunidade dos agressores.

Estados Unidos

O ano de 2002 marca um antes e um depois para os abusos sexuais cometidos por religiosos dentro da Igreja Católica nos Estados Unidos. Naquele ano, o jornal The Boston Globe revelou, depois de uma árdua investigação, um arrepiante padrão de abusos sexuais cometidos durante décadas dentro da famosa arquidiocese católica dessa cidade e mostrou como a hierarquia tinha protegido os perpetradores ocultando seus crimes. O poderoso arcebispo de Boston, o cardeal Bernard Law, foi forçado a abandonar seu cargo após ser acusado de encobrir um dos maiores escândalos de pedofilia da Igreja Católica. Law morreu em Roma no final de 2017 sem jamais prestar depoimento ante um tribunal americano.

O escândalo da Arquidiocese de Boston fez com que, em 2004, a Universidade de Justiça Criminal John Jay, de Nova York, abrisse uma investigação que concluiu que, entre 1950 e 2002, um total de 10.667 pessoas nos EUA tinham acusado 4.392 clérigos de abusos sexuais de menores, o que equivalia a mais de 4% do pessoal religioso. No entanto, apenas 252 deles foram condenados e 100 acabaram presos. O que a Igreja Católica tem feito nos EUA é acertar acordos milionários com as vítimas de abusos para evitar os tribunais, pagando mais de 3 bilhões de dólares (16 bilhões de reais) em indenizações, o que já deixou dezenas de dioceses na bancarrota. Para muitas associações de vítimas, esses pagamentos ajudaram a Igreja a escapar da Justiça.

Em 2018, a investigação de um grande júri da Pensilvânia expôs abusos contra mais de mil menores cometidos por mais de 300 religiosos ao longo de sete décadas − e revelou que desde 1963, no mínimo, o Vaticano sabia de alguns desses casos e se mostrou tolerante. As 1.356 páginas do relatório da Pensilvânia continham descrições arrepiantes e exemplos gritantes de impunidade. Por exemplo, na diocese de Erie, um padre confessou ter cometido, nos anos oitenta, estupros anais e orais contra pelo menos 15 meninos, um deles de apenas sete anos.

cardenal Theodore McCarrick en el Vaticano
Foto de arquivo de 2003 do cardeal Theodore McCarrick no Vaticano.PAOLO COCCO (AFP)

Um dos maiores obstáculos para a ação da Justiça são as leis de prescrição de crimes. Em outros casos, os autores dos horrores já estão mortos. A grande exceção foi conhecida no final de julho, quando o ex-cardeal americano Theodore McCarrick foi acusado de abusar sexualmente de um jovem de 16 anos em 1974. McCarrick, hoje com 91 anos, tornou-se assim o primeiro integrante de alto escalão da Igreja Católica nos EUA a enfrentar um processo criminal por esse tipo de acusações.

Em 2018, a Congregação para a Doutrina da Fé, o órgão que julga esses casos dentro da Igreja Católica, considerou McCarrick culpado de abusos contra menores e adultos, com o agravante de abuso de poder, e por isso o reduziu ao estado laico, a pena mais dura prevista na lei canônica. O ex-cardeal é o religioso de maior hierarquia na história recente da Igreja Católica a receber essa punição. No próximo dia 28, ele deverá comparecer novamente ao tribunal de Boston que o acusa de abuso sexual.

Austrália

Em 2013, o Governo australiano estabeleceu uma Comissão Real − uma investigação pública oficial − para investigar o abuso sexual de menores em instituições como a Igreja Católica, organismos estatais, escolas, clubes esportivos e organizações de caridade. Depois de cinco anos e milhares de entrevistas, a comissão publicou os resultados em dezembro do 2017. Foram cometidos crimes contra cerca de 4.400 menores com idades entre 10 e 11 anos, em média. Segundo suas conclusões, cerca de 1.800 sacerdotes e irmãos religiosos foram acusados de abuso sexual entre 1950 e 2015, o que abrange 7% do total de sacerdotes católicos na Austrália. Em algumas dioceses, essa porcentagem chega a 15%. Segundo a Comissão Real, essas acusações de abuso sexual nunca foram investigadas, muito pelo contrário: as vítimas foram ignoradas ou até punidas, e os acusados foram transferidos para novas comunidades que não tinham nenhum conhecimento de seu passado.

Os escândalos de pedofilia acabaram envolvendo o rosto mais conhecido da Igreja Católica australiana, o cardeal George Pell, que também foi tesoureiro do Vaticano. Em dezembro de 2018, um júri considerou o cardeal Pell culpado de abuso sexual de menores. Seus advogados recorreram da sentença e, em abril de 2020, o Supremo Tribunal anulou a condenação e decretou a liberdade do cardeal, que havia passado 400 dias na prisão.

O Governo australiano aceitou a maioria das recomendações publicadas pela comissão sobre os abusos sexuais. A mais importante foi o estabelecimento de um programa voluntário para indenizar as vítimas de abuso. A Igreja Católica aderiu ao programa para evitar uma enxurrada de processos legais e aceitou indenizar as vítimas com um valor máximo de 150.000 dólares australianos (600 mil reais). Em um gesto simbólico sem precedentes, em outubro do 2018 o Governo australiano pediu perdão a todas as vítimas de pedofilia em instituições religiosas e estatais. “Eu acredito em vocês, nós acreditamos em vocês, seu país acredita em vocês”, disse o primeiro-ministro Scott Morrison no Parlamento. Centenas de vítimas e seus familiares foram convidados a presenciar o pedido de desculpa nacional. “Hoje a Austrália enfrenta um trauma, uma abominação escondida em plena luz do dia durante muito tempo. Enfrentamos uma pergunta horrível demais para perguntar, e ainda mais para responder: por que os meninos e meninas da nossa nação não foram amados, apoiados e protegidos?”, acrescentou Morrison.

Irlanda

As primeiras acusações de abusos sexuais no seio da Igreja da Irlanda começaram a vir à tona nos anos oitenta e chocaram uma sociedade que, assim como em outros países de forte tradição católica, exigiu justiça. Desde o escândalo do sacerdote de Belfast Brendan Smith, que abusou sexualmente de mais de 140 crianças durante 40 anos, as autoridades irlandesas − e a Igreja, inicialmente hesitante, mas depois consciente de que estava em jogo sua própria sobrevivência − iniciaram investigações e criaram organismos específicos para combater esse problema. A Comissão para a Investigação dos Abusos Infantis, estabelecida no ano 2000, documentou os casos de estupro e assédio sexual, juntamente com os de exploração do trabalho infantil, de centenas de menores no seio das instituições católicas. O Relatório Ferns − resultado de uma investigação interna da diocese de Dublin e do Serviço de Proteção do Menor − revelou, cinco anos depois, 100 acusações de abusos entre 1962 e 2002.

O Relatório Murphy, feito pela juíza Yvonne Murphy, examinou 320 acusações e identificou publicamente os responsáveis por encobrir fatos extremamente graves. Finalmente, a Instituição Histórica para a Investigação dos Abusos examinou os escândalos ocorridos na Irlanda do Norte entre 1922 e 1995 e denunciou os sacerdotes e leigos responsáveis por abusar de menores. Recomendou indenizações financeiras, memoriais e pedidos públicos de desculpas aos sobreviventes. Poucas dessas recomendações foram seguidas. Mais de 1.300 sacerdotes irlandeses foram acusados de abusos de menores, mas apenas 82 deles foram condenados pela Justiça, segundo a organização Bishop Accountability. A diretora dessa associação, Barrett Doyle, atribui essa defasagem, no país que foi o primeiro a expor os abusos, a uma “perigosa combinação” entre o secretismo ainda existente na hierarquia católica e as leis civis em defesa da privacidade e contra a difamação, que jogam a favor dos que cometeram os abusos.

Bélgica

O escândalo de um bispo pedófilo foi a faísca que fez cair pela primeira vez o véu da escuridão na Bélgica e levou à abertura de macroinvestigações sobre os abusos sexuais cometidos por clérigos. Ocorreu em 2010, quando se descobriu que o então prelado superior da diocese de Bruges, Roger Vangheluwe, tinha abusado de dois sobrinhos durante anos. Em poucas semanas, a Comissão para o Tratamento de Queixas de Abuso Sexual em uma Relação Pastoral iniciou uma investigação cujas conclusões foram devastadoras: reuniu os relatos dolorosos de 424 vítimas, constatou que o suicídio de 13 abusados e outras 6 tentativas frustradas de tirar a própria vida. Ao todo, conseguiu identificar 320 agressores, na maioria sacerdotes ou religiosos já falecidos que tinham cometido seus crimes entre os anos 1950 e 1980. Um magistrado mandou examinar e confiscar os documentos das denúncias reunidos por essa comissão da verdade, que acabou fechando de forma abrupta.

Diante do tamanho do escândalo, o Parlamento belga abriu uma investigação sobre os abusos e criou um centro de arbitragem independente para receber mais denúncias de pedofilia; enquanto isso, a Igreja criou 10 pontos de contato para colher depoimentos e indenizar as vítimas. O centro de arbitragem, que funcionou de 2012 a 2015, recebeu 628 denúncias. Através dos pontos de contato, dois dos quais continuam abertos, foram identificadas outras 553 denúncias até 2020, segundo o site da Igreja belga, que publica relatórios anuais. São ao todo 1.181 denúncias em um país de 11,5 milhões de habitantes.

Depois de ser analisadas, 937 denúncias foram aceitas ou consideradas suficientemente graves para garantir o direito a uma indenização financeira. Até 2019, as vítimas tinham recebido ao todo de 4,6 milhões de euros (29 milhões de reais), uma média de 5.356 euros (quase 35.000 reais) para cada uma. Conforme a gravidade e duração dos abusos, os valores fixados variaram entre 5.000 e 25.000 euros (32.000 e 160.000 reais). As indenizações estão a cargo da fundação Dignity, uma entidade que representa a Igreja nos procedimentos de arbitragem e compensação.

Alemanha

Na Alemanha, as investigações sobre abusos cometidos por integrantes da Igreja católica foram feitas a pedido da Conferência Episcopal ou de algumas dioceses. Um primeiro relatório, divulgado em setembro de 2018, revelou que 3.677 crianças ou adolescentes foram vítimas de abuso sexual por parte de 1.670 membros do clero. O trabalho, realizado por pesquisadores de três universidades por solicitação do órgão dos bispos alemães, concluiu que apenas 38% dos abusadores foram submetidos a algum tipo de procedimento para dirimir sua culpa e que, na maioria desses casos, enfrentaram apenas processos disciplinares de pouca importância. O relatório causou um terremoto na Igreja Católica alemã. Depois que a revista Der Spiegel publicou um adiantamento do conteúdo do documento, o porta-voz da Igreja disse que a instituição estava “consternada e envergonhada”.

Imagem de um encontro em fevereiro de 2020 entre o papa Francisco e o arcebispo alemão Reinhard Marx.
Imagem de um encontro em fevereiro de 2020 entre o papa Francisco e o arcebispo alemão Reinhard Marx.HANDOUT (AFP)

Além de calcular o número de vítimas e de abusadores após consultar documentos em várias dioceses do país, os autores do estudo descreveram um sistema de encobrimento que se prolongou durante 68 anos − os abusos documentados vão de 1946 a 2014. Como não tiveram acesso a todos os arquivos relevantes, os pesquisadores alertaram que o número de vítimas provavelmente era maior. Cerca de metade das vítimas tinha menos de 13 anos.

A diocese de Colônia, a mais poderosa e rica da Igreja Católica alemã, encomendou seu próprio informe anos depois. Sua versão definitiva foi publicada em março. Um escritório de advocacia de Colônia analisou documentos e fez dezenas de entrevistas até confirmar a existência de pelo menos 314 vítimas e 2.020 supostos autores de abusos entre 1975 e 2018.

O escândalo dos abusos do clero não diminui no país. Em junho, o cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique e um dos prelados mais conhecidos da Alemanha, apresentou sua renúncia ao Papa em uma carta aberta na qual reconheceu sua “corresponsabilidade” e também o “fracasso institucional” da Igreja Católica. Francisco não aceitou sua renúncia e lhe pediu, também em uma carta tornada pública, que continuasse trabalhando para reformar a instituição. O papa pediu que seja “divulgada a realidade dos abusos e de como a Igreja atuou”. Outras diocese alemãs iniciaram suas próprias investigações. Além disso, a Conferência Episcopal estabeleceu no ano passado indenizações de até 50.000 euros (quase 320.000 reais) para vítimas de pedofilia, bem mais do que o máximo de 5.000 euros que havia pago até então.

Informações de Yolanda Monge (Washington), Anna Jover (Auckland), Rafa de Miguel (Londres), Guillermo Abril (Bruxelas) e Elena Sevillano (Berlim).

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