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Um mês de protestos e mais de 50 mortos. A que se deve o mal-estar na Colômbia?

As manifestações começaram quando o presidente Iván Duque anunciou um aumento generalizado dos impostos, mas as raízes das mobilizações são mais profundas

Centenas de pessoas se concentram no Monumento dos Heróis em Bogotá (Colômbia), em 15 de maio de 2021.
Centenas de pessoas se concentram no Monumento dos Heróis em Bogotá (Colômbia), em 15 de maio de 2021.Mauricio Dueñas Castañeda (EFE)
Juan Diego Quesada

Miguel segura um hambúrguer gorduroso entre as mãos e dá alguns goles na garrafa de refrigerante de um litro. Tem 23 anos, as sobrancelhas grossas e o olhar cansado. Não tem emprego faz tempo, assim como um de cada quatro jovens colombianos. Levanta o olhar durante alguns segundos e se depara com a imponente estátua de bronze de Simón Bolívar. O herói da pátria cavalga de forma imaginária sobre uma estrutura de pedra. “É o nosso libertador. É o que dizem, eu não sei”, reflete.

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No sábado 15 de maio, no final de uma das manifestações contra o Governo que há um mês paralisam a Colômbia, alguns jovens subiram no pedestal e amarraram uma corda ao redor da escultura. Incentivados pela multidão, puxaram a corda com toda a força durante cinco minutos. Nesse tempo, suas mãos ficaram dormentes ― e eles não conseguiram derrubar a estrutura de 3,2 toneladas. Na base do pedestal, contudo, acenderam um fogo que cristalizou o cimento que sustenta o monumento equestre, que ameaçava se desprender sozinho. A Prefeitura o retirou de forma temporária, por via das dúvidas.

Desde o início, grupos de adolescentes e jovens em idade universitária, como Miguel, se reúnem dia e noite sob a estátua do militar, no norte de Bogotá. Emanuel Argüello, de 21 anos, entra no debate. “Ele [Bolívar] foi um libertador, mas com ânsia de poder, e o poder corrompe as pessoas.” Daniel Barbosa, universitário de 20 anos, é mais explícito: “Ele representa a idolatria e o caudilhismo. É preciso jogar fora tudo isso.” A explosão social que gerou os protestos de rua mais importantes dos últimos 70 anos na Colômbia veio para questionar todo o sistema político e social do país, o presente e o passado.

Tudo começou em 28 de abril deste ano. Naquele dia, as centrais de trabalhadores e as organizações estudantis fizeram uma greve em protesto contra um aumento de impostos promovido pelo presidente Iván Duque para sanar as contas vermelhas do Estado. Duque tentou enviar ao mercado a mensagem de que o Governo continuava solvente. A reação foi multitudinária. Mas ninguém podia prever que um mês depois, tendo já sido retirada a reforma tributária e destituído o ministro que a idealizou, as pessoas continuariam nas ruas e muitas estradas do país permaneceriam bloqueadas, o que paralisou o comércio e a circulação de pessoas em regiões inteiras. Há milhares de feridos pelos enfrentamentos entre a polícia e os manifestantes. E mais de 50 mortos até agora.

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“Os protestos não terminam. Ao contrário: aumentam. Por quê? Muito fácil: por causa da desigualdade, do classismo e do racismo. E falta conexão com a situação de milhões de pessoas no país. Uma explicação simples é que essas pessoas querem chantagear o Governo. Na verdade, elas necessitam ser reconhecidas como cidadãos iguais, como pessoas que participam da construção de soluções urgentes”, afirma Catalina Botero, uma prestigiosa advogada constitucionalista.

Vários fatos ocorridos neste mês explicam por que a intensidade dos protestos recrudesceu em várias ocasiões, justamente quando eles pareciam que estavam a ponto de se extinguir. E todos os fatos têm como pano de fundo os fatores apontados por Botero. Durante os primeiros dias de protestos, vários jovens de bairros pobres de Cali, a terceira cidade mais populosa do país, morreram nas mãos da polícia. A maioria eram rapazes indefesos e desarmados. Os amigos desses jovens, sem emprego nem estudo, se entrincheiraram em seus bairros, onde desde então não há presença do Estado. Eles passam o dia em barricadas, protegidos com escudos caseiros, e dizem estar dispostos a morrer pela causa. Jovens que estavam havia um ano encerrados e amontoados em apartamentos de 40 metros quadrados devido ao confinamento.

Manifestação denuncia a situação na Colômbia na Porta de Alcalá, em Madri, em 15 de maio de 2021.
Manifestação denuncia a situação na Colômbia na Porta de Alcalá, em Madri, em 15 de maio de 2021.Javier López (EFE)

Poucos dias depois, nessa mesma cidade, civis armados num dos bairros mais elegantes, Ciudad Jardín, dispararam contra indígenas que haviam bloqueado a estrada. Oito deles ficaram gravemente feridos. Nenhum desses homens foi detido, embora haja vídeos (alguns gravados por eles mesmos) mostrando seus rostos. Num país onde a violência paramilitar ceifou milhares de vidas, o episódio gerou enorme indignação. Na semana seguinte, uma menor de idade que disse ter sido agredida sexualmente por agentes antidistúrbios ao ser detida numa manifestação, suicidou-se em Popayán, capital do departamento de Cauca. A violência nas ruas dessa cidade aumentou. Em poucos dias, jovens, indígenas e mulheres sofreram, de forma direta, a violência estatal.

O economista Luis Fernando Medina acredita que o modelo de país está em questão. As políticas de livre mercado tão em voga na América Latina nos anos oitenta ― livre comércio, redução do tamanho do Estado, política monetária anti-inflacionária ― iniciaram o processo de construção de um Estado de bem-estar neoliberal que expandiu os serviços sociais, por exemplo. Esse paradigma parece esgotado após um crescimento econômico não tão grande quanto o esperado e que, portanto, tem dificuldade na hora de redistribuir a riqueza. A pandemia fez a Colômbia retroceder uma década na luta contra a pobreza. Mais de 20 milhões de pessoas vivem com menos de 72 euros (cerca de 460 reais) por mês, o limiar oficial. “Há cansaço e esgotamento em relação ao modelo, que este Governo está tentando recuperar. Muitos economistas que antes eram baluartes da ortodoxia veem que já não há como continuar. Existe uma mudança tectônica na opinião pública”, diz Medina pelo telefone.

Em sua opinião, existe a sensação de que as elites já não oferecem soluções satisfatórias para sair desta crise. “O Governo tem sido muito imprudente, e por isso é tão belicista. Sua resposta é continuar com uma retórica de guerra interna, de violência e vendo conspirações em toda parte. É a típica reação de um Governo superado pelos fatos”, afirma o analista, em referência a que Duque e seus ministros culparam a guerrilha de estar por trás dos protestos. Poucos dias após o início das manifestações nas ruas, Duque anunciou que mobilizaria o Exército nas cidades – e a insatisfação apenas aumentou.

Nem todo o país está nas ruas. Jorge Orlando Melo, autor de um livro de culto, Historia Mínima de Colombia, acredita que não há uma manifestação geral ― e esta é uma ideia original ―, e sim protestos de pessoas sem emprego. “A população desempregada ou que tem trabalho informal foi muito atingida pela pandemia. Foi um golpe muito brusco”, diz o historiador.

A resposta que o Governo deu a essas pessoas é que aumentaria a base tributária, ou seja, que mais gente pagaria impostos e que isso ajudaria a redistribuir a riqueza. Segundo Melo, a mensagem não foi entendida. Ele lembra que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, usou uma retórica social-democrata de aumento dos impostos para os ricos, ao passo que Duque anunciou que aumentaria para todos. “Foi uma resposta muito desafiante, muito automática, sem levar em conta a situação do país. O resultado é este”, afirma.

Mais de quatro anos atrás, a Colômbia assinou a paz com as FARC, a guerrilha mais potente da América Latina. Cerca de 13.000 soldados deixaram as armas após meio século de luta. Em Havana, o então presidente Juan Manuel Santos e o líder guerrilheiro Timochenko apertaram as mãos. Ambos vestiam camisas brancas. O país parecia seguir rumo a um futuro de esperança. Mas o Governo de Iván Duque, afilhado político do ex-presidente Álvaro Uribe (que se opôs ao processo de paz), teve receios na hora de aplicar o que foi acordado em Cuba. “O acordo gerou entusiasmo em muitos jovens, mas o Governo não foi capaz de vê-lo e criou problemas no processo. Há um desencanto, uma falta de relato de esperança”, afirma Alejandro Gaviria, reitor da Universidade de los Andes, que desponta como possível candidato de centro-esquerda para as eleições de 2022.

Gaviria considera que a explosão social evidenciou algumas falhas estruturais, como a crise das instituições, dos mecanismos de representação política e dos meios de canalização dos problemas de insatisfação e desigualdade. Diz que deve haver um consenso entre a academia, os partidos políticos e a sociedade civil para evitar que a Colômbia viva um ano obscuro de violência até maio de 2022, data prevista para as eleições.

“Eu vivi 1989, quando na Colômbia quatro pré-candidatos foram assassinados. E sinto algo parecido no ar. É uma sensação de que pode acontecer qualquer coisa. Viemos de 40 anos de redução de homicídios e precisamos proteger o país de uma escalada violenta”, diz Gaviria.

Inclusive no plano simbólico. O antropólogo Carlos Granés não percebe um reflexo antipatriótico na tentativa de derrubar a estátua de Bolívar; seria mais propriamente um ato aleatório e anárquico. “É simplesmente o sinal de um descontentamento muito profundo, mas muito difuso, que se satisfaz derrubando qualquer coisa que estiver de pé”, escreve por e-mail. Na era do mal-estar colombiano, tudo está em questão.

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