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União Europeia e Reino Unido selam um acordo comercial histórico para a era pós-Brexit

Os negociadores dedicaram toda a madrugada desta quinta-feira a revisar os detalhes das 2.000 páginas de texto. Boris Johnson pede a seus ministros que ajudem a “vender o acordo”

O negociador europeu do Brexit Michel Barnier, à direita, e seu homólogo britânico David Frost, em março passado. No vídeo, transmissão ao vivo do encontro de Von der Leyen e Barnier.
O negociador europeu do Brexit Michel Barnier, à direita, e seu homólogo britânico David Frost, em março passado. No vídeo, transmissão ao vivo do encontro de Von der Leyen e Barnier.OLIVIER HOSLET / POOL (EFE)

O Reino Unido e a União Europeia se afastaram do precipício quando estavam quase com os dois pés na ponta. Sete dias depois do fim do período de transição acordado no início do ano, e de que Brexit passasse de uma decisão política a uma realidade jurídica com todas as suas consequências, as equipes de negociação lideradas por Michel Barnier (UE) e David Frost (Reino Unido) conseguiram fechar nesta quinta-feira o acordo comercial que vai regular as relações entre a ilha e o continente nos próximos anos. O futuro acesso e cotas para pescadores da UE nas águas britânicas foi até o final o obstáculo mais difícil. O texto deverá entrar em vigor provisoriamente em 1º de janeiro, pois já está claro que o Parlamento Europeu não poderá ratificá-lo antes do final de 2020.

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O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, pode tentar convocar a Câmara dos Comuns em 30 de dezembro, mas primeiro precisará se certificar de que tem do seu lado os parlamentares eurocéticos que anseiam por um rompimento claro e sem condições com a União Europeia. De acordo com alguns meios de comunicação conservadores britânicos, Johnson ligou para seus ministros na noite de quarta-feira para pedir-lhes que o ajudem a “vender um acordo” que “respeita a soberania tanto do Reino Unido como da UE”. O desastre vivido nas últimas horas, com milhares de caminhoneiros sem poder deixar o porto britânico de Dover, depois que a França fechou a passagem por 48 horas para evitar a propagação da nova cepa do coronavírus, foi um alerta do que teria significado um Brexit difícil e um incentivo para finalmente encerrarem o processo de negociação.

O acordo mantém praticamente intacta a relação comercial entre as duas margens do Canal da Mancha, um enorme fluxo que movimenta mercadorias no valor de mais de 500 bilhões de euros por ano (3,2 trilhões de reais). Se o texto for aceito pelos 27 Governos da UE, o tratado poderá entrar em vigor provisoriamente em 1º de janeiro, marcando o início de uma nova era nas relações do continente com o Reino Unido após 47 anos de difícil coexistência na União. Depois de deixar o clube em 31 de janeiro, o ex-integrante abandona agora definitivamente o mercado interno e a união aduaneira. Será mantida uma abertura total e recíproca dos mercados. As empresas britânicas terão acesso ilimitado e permanente a um mercado de 450 milhões de pessoas. E as empresas europeias poderão continuar a negociar com o Reino Unido nas mesmas condições que as atuais, o que mantém aberto um mercado ao qual destinam 18% das suas exportações extracomunitárias.

O fim da transição complicará os contatos comerciais, pois serão introduzidas obrigações alfandegárias e fiscais. Mas o acordo alcançado nesta quinta-feira evita a aplicação de tarifas e cotas de importação, o que facilitará as trocas comerciais e, sobretudo, permitirá manter a integração das cadeias produtivas que em setores como o automotivo e o aeronáutico se entrelaçam dos dois lados do Canal da Mancha.

Ambas as partes esperam turbulências nos próximos meses, por isso negociaram mecanismos de monitoramento mútuo e potencial retaliação em caso de quebra do acordo. A possível concorrência desleal do Reino Unido preocupava a UE. Johnson venceu a eleição com a promessa de inundar o empobrecido norte da Inglaterra com investimentos em infraestrutura e tecnologia. Bruxelas temia que Londres se lançasse a subsidiar publicamente empresas nacionais, reduzisse os impostos ou rebaixasse sua regulamentação do mercado de trabalho, meio ambiente ou em matéria de direitos do consumidor para dar às próprias empresas uma vantagem competitiva.

O último obstáculo da negociação, porém, girou em torno de um setor tão tradicional como a pesca. Depois do Brexit, Londres pretendia impedir a entrada da frota pesqueira continental nas águas de influência britânica (até 200 milhas), regiões onde pescadores europeus operam há centenas de anos. Foi uma negociação em que se barganharam números, porcentagens e espécies. E anos de transição suficientes para a indústria pesqueira europeia se adaptar aos cortes futuros. O Governo francês pressionou em defesa de seus pescadores. Johnson tinha que se sair bem diante da indústria escocesa, a mais poderosa do Reino Unido neste setor, em um momento em que as aspirações de independência voltaram a ganhar força.

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O processo para os próximos dias parece mais fácil do lado da UE, embora não possam ser descartadas eventuais surpresas. O tratado deve ser revisado pelo comitê de representantes permanentes dos 27 membros em Bruxelas, em nível de embaixadores. O sinal verde diplomático terá que ser confirmado pelos 27 Governos nas capitais. E o Parlamento Europeu poderia convocar uma reunião dos presidentes dos grupos parlamentares para darem seu primeiro parecer sobre o texto. Está descartada a possibilidade de ratificação parlamentar antes do final do ano, por isso Bruxelas tem procurado alternativas legais que não deixem nenhuma lacuna, para evitar um possível caos fronteiriço ou aduaneiro. A fórmula com mais chances será a aplicação provisória do tratado, que poderá ser decidida pelos 27 países membros. Ou, pelo menos, dos capítulos do texto que permitem preservar um tráfego comercial fluido a partir de 1º de janeiro.

European Research Group (Grupo de Pesquisa Europeu, que reúne dezenas de parlamentares conservadores eurocéticos) já anunciou que seu comitê de direção e seus especialistas estão prontos para começar a revisar os detalhes do texto acordado assim que chegar às suas mãos. Foi este grupo de pressão que manobrou para impedir o acordo que a anterior primeira-ministra, Theresa May, havia fechado com Bruxelas. E acabaram causando sua renúncia e a chegada de Boris Johnson ao poder. O primeiro-ministro deve agora embarcar na tarefa de convencê-los de que o novo acordo é uma vitória para o Reino Unido e a possibilidade de concluir finalmente, quatro anos após o referendo, a longa jornada do Brexit.

Com o país imerso em uma crise econômica e de saúde colossal, parece não haver apetite para novas escaramuças dentro do partido governista. E a oposição trabalhista, encabeçada por seu novo líder, Keir Starmer, também quer deixar para trás o debate europeu, que dividiu suas fileiras tanto quanto as dos conservadores. Mesmo que haja previsíveis abstenções ou votos contra, Starmer está confiante em que sua bancada parlamentar respalde o texto. Algumas fontes parlamentares indicam que o Governo poderia convocar os deputados no dia 30 de dezembro para uma sessão extraordinária da Câmara dos Comuns que ratificaria, quase ao final do período de transição, o novo acordo. E Johnson conseguiria fechar um ano que tem sido desastroso para ele com uma vitória que os tabloides conservadores já comemoraram com grande estardalhaço em suas primeiras edições nesta quinta-feira.

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