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Boris Johnson prepara os britânicos para um Brexit duro no final do ano

Primeiro-ministro britânico alerta Bruxelas de que a data limite para negociar é 15 de outubro

O primeiro-ministro do Reino Unido Boris Johnson durante um discurso em Londres, no dia 1 de setembro.
O primeiro-ministro do Reino Unido Boris Johnson durante um discurso em Londres, no dia 1 de setembro.Toby Melville (Reuters)
Rafa de Miguel

Boris Johnson afastou temporariamente o olhar da crise sanitária do coronavírus para se concentrar novamente na razão de ser de sua carreira política: o Brexit. Em um comunicado preparado para captar a atenção da imprensa no final do domingo, antes de começar uma semana crucial nas negociações entre Londres e Bruxelas, o primeiro-ministro alertou a UE – mas, principalmente, os britânicos – de que a possibilidade de uma ruptura brusca dos laços econômicos, comerciais e jurídicos entre o Reino unido e a Europa a partir de 31 de dezembro começa a se tornar o desenlace definitivo. “É preciso que concluamos um acordo com nossos amigos europeus antes do Conselho Europeu de 15 de outubro”, afirma Johnson. “Se não for assim, não vejo a possibilidade de que exista um acordo de livre comércio entre nós, e ambos deveremos aceitá-lo e passar a outra coisa”.

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Downing Street e a Comissão Europeia estão de acordo de que essa data, o 15 de outubro, é o prazo limite. É o único modo de que haja tempo para que os documentos finais sejam finalizados, se traduzam a todas as línguas da UE e possam ser aprovados pelos parlamentos nacionais, o Parlamento Europeu e o britânico antes do final do ano. O restante do comunicado de Johnson poderia soar a uma nova jogada das que Londres tentou colocar na mesa durante três anos de negociações, especialmente na última fase. Mas nessa ocasião, todos os atores reconhecem que o Governo de Johnson começa a mostrar sem rodeios suas verdadeiras cartas, e que já não dissimula seu objetivo final de abandonar com os menores laços possíveis sua relação com a UE. “Teremos então um acordo comercial com a UE como o que a Austrália tem. E quero ser absolutamente claro sobre isso, como disse desde o começo: será um bom resultado para o Reino Unido”. Um claro sinal da vontade de Johnson de continuar adiante com esse plano foi a contratação do ex-primeiro-ministro australiano Tony Abbott como assessor comercial de seu Governo. As duras críticas, não só da oposição como de muitos deputados conservadores, ao passado misógino e autoritário de Abbott não mudaram a vontade de Johnson de contar com esse novo aliado.

O que Johnson oculta em suas palavras é que a Austrália não tem nenhum acordo comercial com a UE. Tem algo chamado “acordo de reconhecimento mútuo”, que se limita a aceitar reciprocamente uma série de controles de qualidade em suas trocas para evitar custosos trâmites técnicos e administrativos. As negociações para se chegar a um tratado sem objeções, que é o que Camberra realmente deseja, estão paradas a anos pela dificuldade política e prática que exigem. A Austrália deve se submeter aos impostos e cotas da UE que Johnson prometeu constantemente aos britânicos que o Reino Unido não teria. Ou seja, chegado o caso, as únicas regras que regeriam as relações nos dois lados do canal da Mancha seriam as da Organização Mundial do Comércio.

O Brexit se transformou em uma realidade política em 31 de janeiro, mas começou à época um período de transição que deixou em suspenso a ruptura dos laços econômicos, comerciais e jurídicos. Para efeitos práticos, nada iria mudar até 31 de dezembro de 2020. Londres e Bruxelas tinham praticamente um ano para negociar um bom tratado comercial. Logo veio a pandemia, e as conversas ficaram congeladas durante vários meses, ainda que o Governo de Johnson não tenha feito o menor esforço para pedir uma prorrogação e simplesmente deixou que o calendário continuasse avançando. Somente em meados de junho o primeiro-ministro britânico somou sua voz às dos presidentes das três instituições comunitárias (Ursula Von der Leyen, Charles Michel e David Sassoli) e se comprometeu a dar um novo impulso às conversas. Imediatamente se demonstrou que os avanços seriam escassos, se não inexistentes.

Se em um primeiro momento a atenção se centrou em chegar a um novo e complicado acordo de pesca, e deu a impressão de que esse assunto seria o principal obstáculo, logo se percebeu que o verdadeiro obstáculo era outro assunto muito menos manejável: as ajudas estatais à indústria nacional. A UE perseguiu o tempo todo o chamado level playing field, que seria traduzido como uma nivelação das regras do jogo. Se Londres queria acesso livre (sem impostos e cotas) ao mercado europeu, devia se comprometer que suas leis em matéria trabalhista, ambiental, de proteção aos consumidores e de impulso financeiro público à indústria nacional fossem semelhantes às da UE, para evitar uma vantagem competitiva injusta. O argumento de Johnson, durante todo esse tempo, foi o de assegurar que o Reino Unido já é tão rígido, se não mais, do que Bruxelas em todas essas matérias, e que a decisão final deveria residir na boa fé e na confiança mútua.

A armadilha, suspeitou Bruxelas, estava no quarto ponto. Se desde a era de Margaret Thatcher o Reino Unido foi resistente a proteger suas empresas com dinheiro público (suas ajudas não chegavam sequer à metade da média do restante dos países comunitários), a nova visão que Johnson e seu estrategista-chefe, Dominic Cummings, têm para o Reino Unido passa por um investimento público descomunal na nova revolução tecnológica. E se negam a ter as mãos atadas com Bruxelas.  “Qualquer relação econômica e comercial – entre economias tão próximas e interconectadas como as nossas – deve incluir mecanismos robustos e críveis para evitar distorções no comércio e vantagens competitivas injustas. E isso é particularmente importante na área das ajudas estatais, onde o potencial para provocar distorções competitivas com o uso de subsídios é muito importante”, deixou claro o principal negociador europeu, o francês Michel Barnier, em seu discurso de 2 de setembro no Instituto de Assuntos Europeus e Internacionais de Dublin.

Johnson não joga a toalha definitivamente, pelo menos em seu pronunciamento oficial. Afirma que não há prazo para se chegar a um acordo, e que Londres continuará trabalhando nisso durante o mês de setembro. Mas os fatos contradizem suas palavras. Como adiantou o Financial Times, Downing Street já trabalha em uma nova lei que tiraria força jurídica vinculante em trechos fundamentais do Acordo de Retirada assinado com Bruxelas, especialmente no que se refere à Irlanda do Norte e às ajudas estatais. E o primeiro-ministro dá como certo que, nos próximos meses, Londres estará disposto a “acomodar assuntos sensíveis e práticos como a regulamentação de voos comerciais, o transporte por caminhão, a cooperação científica (...), mas sem um acordo comercial”. E a interpretação geral coincide que o tom e a mensagem de Downing Street soam nessa ocasião menos a simples bravata do que a uma decisão consumada que os britânicos devem começar a digerir. E que, por isso, soa melhor em termos de comunicação pública um “acordo à australiana” do que um Brexit puro e duro.

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