Niall Ferguson: “Biden vai ganhar. Não vejo um presidente em um buraco tão profundo sendo reeleito”
O prestigioso historiador britânico dá a vitória de ex-vice de Obama como certa, mas considera que ele vai “estragar tudo” porque os democratas “não entenderam por que Trump ganhou”
Brilhante, rebelde e provocador, Niall Ferguson (Glasgow, 1964) é um dos historiadores mais conhecidos e influentes do mundo. Professor de Stanford e Harvard, biógrafo de Kissinger, é autor de 15 livros sobre política externa, história da economia e os imperialismos britânico e norte-americano. De ideias conservadoras, foi muito crítico com a Administração Obama e foi assessor da campanha presidencial do republicano John McCain. Depois de uma viagem a Berlim no verão de 1989, previu a queda do muro de Berlim. Em um congresso em Las Vegas, em 2007, enquanto pesquisava para seu livro A ascensão do dinheiro (2008, mais tarde se tornou uma premiada série de televisão), apostou contra um financista que haveria uma recessão em menos de cinco anos. Ganhou 98.000 dólares (cerca de 585.000 reais). E também alertou, depois que o Reino Unido votou no Brexit, que Donald Trump poderia chegar à Casa Branca. E em uma coluna no The Sunday Times, em janeiro, escreveu: “Preparem-se para uma pandemia de coronavírus”. Nesta conversa com Ferguson para a série de entrevistas que o EL PAÍS está publicando sobre as eleições presidenciais norte-americanas de 3 de novembro, a primeira pergunta é, portanto, obrigatória.
Pergunta. Quem vai ganhar estas eleições?
Resposta. Joe Biden é uma figura muito menos impopular do que Hillary Clinton. A economia está em um buraco e, é claro, o presidente fez um trabalho muito ruim em relação à covid-19. Então, acredito que Joe Biden vai ganhar. E vai ganhar com uma margem ampla o suficiente para que não haja aquela grande crise constitucional que começa a parecer muito emocionante para muitos jornalistas. Odeio chegar a essa conclusão porque há quatro anos foi divertido estar contra a corrente e acertar. Mas como historiador, não consigo ver como um presidente em um buraco tão profundo pode ser reeleito. Mesmo que a pandemia não tivesse acontecido, parece-me que não estaria numa posição particularmente forte. A economia acompanhava, mas estava dopada com esteroides pelos estímulos fiscais e monetários. Trump não será reeleito porque a economia está em péssima situação.
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P. Os eleitores parecem continuar a ter fé em sua gestão econômica...
R. Mas quando se olha mais de perto, há duas razões para ser cético. Primeiro, as margens em Estados como Wisconsin são enormes. Em segundo lugar, os idosos, que estão preocupados com a economia e são cruciais para o Partido Republicano, perderam a fé em Trump, de uma maneira que é totalmente explicável pelo vírus. Isso me parece uma situação letal para um candidato republicano. Sabíamos que ele havia perdido os jovens há muito tempo, mas se você perde os maiores de 65 anos, especialmente em Estados disputados, não vejo como pode sobreviver a isso. Acredito que a margem de Biden no colégio eleitoral será bastante robusta.
P. O que os historiadores do futuro escreverão sobre a presidência de Trump?
R. Primeiro, que o contragolpe populista nos EUA demorou a chegar, considerando-se quantas razões a América média tinha de se sentir prejudicada. E que, quando chegou, Donald Trump desempenhou um papel catártico na articulação de todas as frustrações da América média. Com a globalização, com a China, com a imigração, com as elites liberais. Houve, portanto, certa legitimidade naquela vitória eleitoral em 2016 contra um establishment democrata fundamentalmente complacente. Segundo, o significado histórico de Trump reside no fato de que mudou o curso da política dos EUA em relação à China. Rompeu com um consenso sobre a China que remontava a Kissinger e Nixon. Dirigiu o público norte-americano a um âmbito mental completamente diferente em relação à China, incluindo os democratas. Isso é o mais relevante de sua presidência. A segunda Guerra Fria começou. Os EUA acordaram para o fato de que havia um desafio chinês e que podia fazer algo a respeito.
P. O senhor acredita que os democratas aprenderam alguma lição em quatro anos?
R. Eles não entenderam por que Trump ganhou. E um triste sinal disso é que escolheram Joe Biden como candidato. McCain estava derrotado muito antes de as pessoas começarem a votar, porque os democratas tinham encontrado Barack Obama, que era a personificação da mudança rejuvenescida em que se podia acreditar. Desta vez, os democratas realmente erraram. Encontraram um candidato tão velho e débil que poderia de fato perder. Que isso tenha sido o melhor que puderam encontrar é uma acusação terrível para o establishment democrata. É por isso que esta eleição ainda está no ar, porque a qualquer momento Biden poderia perder a eleição em um debate, em uma atuação desastrosa. Como o almirante Jellicoe perdeu a Primeira Guerra Mundial em uma tarde, Biden poderia perder estas eleições em uma noite. Está decaído. E foi vice-presidente de Barack Obama! A razão pela qual Trump foi eleito é que o segundo mandato de Obama alienou completamente uma enorme proporção de gente que havia votado nele em lugares como Michigan. Isso é o que não aprenderam. As pessoas na Administração Obama acreditam que voltarão ao poder em janeiro. O que me indica que não entenderam por que perderam em 2016.
P. O trumpismo sobreviverá a Trump?
R. O surpreendente em Trump é que seus índices de aprovação pouco mudaram em quatro anos. Está preso em um estreito corredor de popularidade e, portanto, acredito que não haverá um trumpismo duradouro. O trumpismo não é realmente viável como estratégia eleitoral de longo prazo por razões demográficas óbvias. Se sua base nuclear é composta de caras brancos que não foram à universidade, é uma força cada vez menor. Quem vier logo terá que jogar no lixo a estratégia de Trump e trazer algo mais amplo em sua reivindicação.
P. Algo que apele ao cada vez mais importante voto hispânico, por exemplo?
R. Uma das subtramas interessantes deste ano é que os eleitores hispânicos não estão correndo atrás da bandeira de Biden, embora eu não consiga pensar em nada que Trump esteja fazendo para atraí-los. Acredito que os republicanos têm a oportunidade de aumentar seu apoio entre os hispânicos, porque não há muito no movimento Black Lives Matter que atraia os eleitores latinos. O futuro do Partido Republicano passa por atrair mais eleitores hispânicos em um leque de questões sociais em que a coalizão democrata, acredito, é bastante frágil.
P. Como o Partido Republicano se tornou um culto a Trump?
R. Foi como estar em um avião sequestrado. O que aconteceu em 2016 é que Trump arrebatou a indicação do partido. Se penso em 2012, acredito que este país estaria em uma posição muito menos rachada se Obama tivesse sido um presidente de um só mandato e Mitt Romney tivesse sido eleito. Romney não teria sido um presidente perfeito, mas teria evitado a revolução de 2016 entre os eleitores republicanos, e não estaríamos agora em um país tão dividido. Sem o segundo mandato de Obama, é difícil ver como Trump teria sido viável como candidato. Romney continua aí. McCain morreu, tendo sido terrivelmente insultado por Trump, algo que nunca o perdoarei porque eu amava John McCain. O trumpismo ficará relegado à Internet ou à televisão, existirá como uma coisa de entretenimento. O Partido Republicano passará quatro anos se recompondo e será muito ajudado nesse processo pelo fato de que o Governo Biden vai falhar, assim como a Administração Obama.
P. O senhor escreveu que existe um homem que pode transformar a segunda Guerra Fria na Terceira Guerra Mundial, e esse homem é Joe Biden.
R. Observei ao longo de um século de história norte-americana que frequentemente, quando os presidentes democratas são eleitos com uma agenda doméstica importante, acabam se metendo em grandes guerras. Aconteceu com Woodrow Wilson, Franklin D. Roosevelt, Harry Truman, John F. Kennedy e Lyndon Johnson. E quase também com Jimmy Carter, mas evitou entrar em guerra no Afeganistão. Foi apenas no passado recente que os democratas se inclinaram a evitar guerras, nos casos de Bill Clinton e Barack Obama. Poderia ver um cenário em que a Administração Biden chega ao poder pronta para fazer todo tipo de gasto em serviços sociais, educação, aumentar de impostos, fazer essas coisas habituais, e se depara com uma crise em Taiwan. Acredito que a China vai forçar essa questão em algum momento. E o momento inteligente para fazer isso seria logo no início da presidência de Biden. A segunda Guerra Fria é estrutural, não é de uma presidência específica, é uma rivalidade estratégica estrutural como a primeira Guerra Fria, e o principal problema de Biden é que a segunda guerra fria não o deixará tranquilo para fazer sua agenda doméstica. É preciso olhar de perto o que está acontecendo em Taiwan, o que Xi faz para legitimar sua posição e explorar as fragilidades que encontrar.
P. Qual deveria ser a estratégia com a China?
R. Acredito que a Administração Trump não foi tão ruim nessa frente. Eu particularmente não teria usado as tarifas. Mas acredito que em outras questões, como tecnologia, acertou em impedir que a Huawei assumisse o controle das redes de 5G do mundo. Foi acertado pressionar a China por Xinjiang, em Hong Kong e em Taiwan. Em conjunto, minha defesa da Administração Trump seria que acertou ao adotar a linha dura com a China e mudar o curso depois do que tinha sido uma espécie de ponto de vista fatalista de Obama de que não havia nada que você pudesse fazer para deter a China.
P. E sobre o Oriente Médio?
R. Acredito que a Administração Trump também teve muito mais sucesso aqui do que muitos democratas querem acreditar. A política de Obama fracassou porque os iranianos colocaram o acordo nuclear no bolso e continuaram sendo um regime hostil em todos os outros terrenos. Acabar com isso foi a coisa certa a fazer, e agora vemos um novo alinhamento que conecta Israel aos Estados do Golfo e isola cada vez mais o Irã. Portanto, você deve dar alguns pontos à Administração Trump por ter picado a política de Obama e acabado em algo que me parece muito melhor.
P. O que está em jogo nessas eleições?
R. Fico cansado com a insistência a cada quatro anos em que são as eleições mais importantes de nossas vidas. Tornou-se um clichê. Não acredito que a república está em perigo e que Trump se entrincheirará na Casa Branca. Acredito que veremos a clássica história de uma presidência de um só mandato. O que está em jogo é se as normas da política norte-americana podem ser restauradas ou estão permanentemente danificadas pelos últimos, eu diria não quatro, mas oito anos. O que está em jogo é que, se os democratas ganharem, o que acredito que o farão, e se ganharem por muito, o que acredito que podem fazer, podem ficar tentados a pensar que chegou a hora de manipular fundamentalmente o sistema a seu próprio favor. Então as eleições de meio de mandato seriam vencidas pelos republicanos e em 2022 teríamos uma recriação do que aconteceu com Obama em 2010, que exagerou nos primeiros dois anos e depois perdeu o Congresso. O que está em jogo, algo muito mais modesto do que o que muita gente diz, é se os democratas aprenderam alguma coisa nos últimos oito anos. E receio que não.
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