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O vírus deteve sua ascensão. Agora a ultradireita europeia procura sua vacina política

Partidos radicais não conseguem capitalizar a inquietação da população na Itália e Alemanha, enquanto na França o Reagrupamento Nacional se mantém como alternativa

O líder da Liga, Matteo Salvini, durante um comício em 4 de julho em Roma. TIZIANA FABI
O líder da Liga, Matteo Salvini, durante um comício em 4 de julho em Roma. TIZIANA FABITIZIANA FABI (AFP)

A direita populista europeia teve sorte desigual em suas estratégias diante da crise do coronavírus. Na Itália, o líder da Liga, Matteo Salvini, desconcertado pela queda nas pesquisas e o crescimento de sua colega e rival, Giorgia Meloni, agora se proclama desesperadamente o herdeiro do comunista Berlinguer. O partido ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD) também cai nas pesquisas e não consegue obter crédito de suas críticas à gestão governamental da pandemia e dos ataques à chanceler, Angela Merkel. Enquanto isso, na França, a líder da extrema-direita francesa, Marine Le Pen, resiste como principal rival de Emmanuel Macron apesar dos resultados medíocres nas eleições locais.

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A estratégia funcionava até agora de maneira sorrateira e permitia ao partido crescer em locais insólitos. Mas na quinta-feira, uma mudança ao centro de Roma e a tentação de invocar o passado, serviu de poderoso símbolo para o que o líder da Liga, Matteo Salvini, trama em plena queda nas pesquisas. O partido acaba de mudar sua sede romana à Via delle Botteghe Oscure, a rua que historicamente abrigou a casa do Partido Comunista Italiano (PCI), a somente dois passos do local em que foi encontrado em maio de 1978 o cadáver do à época líder da Democracia Cristã, Aldo Moro. Um enclave carregado de peso político que Salvini quis frisar ainda mais com uma nova pirueta transformista: “Nós somos os herdeiros dos valores da esquerda de [Enrico] Berlinguer”, afirmou em referência ao histórico secretário-geral do PCI e fundador do chamado eurocomunismo.

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A frase ― algo como se Bolsonaro pretendesse ser herdeiro do líder comunista Luís Carlos Prestes ― provocou o esperado estupor entre os líderes da esquerda. O último secretário do PCI, Achille Ochetto, não conseguiu se conter e respondeu que seria “como comparar Cristo com Barrabás”. Mas também entre muitos dos militantes da Liga e dirigentes do partido, acostumados a usar a palavra comunista como um insulto. “Simplesmente mencionou alguns valores”, foi defendido por um colega de bancada no Senado. A tentativa de apropriação de Salvini, na verdade, reincide desajeitadamente na estratégia eleitoral do político ultradireitista para captar o voto dos trabalhadores e das vítimas da crise econômica em que a Itália já está entrando (a queda do PIB prevista pelo Fundo Monetário Internacional é de 12,8% neste ano). A ministra do Interior, Luciana Lamorgese, anunciou no mesmo dia que o país enfrentará “um risco evidente de tensões sociais no outono”. Um cenário em que o líder da Liga se movimenta com facilidade e para o qual já toma posições.

A pandemia castigou severamente a Liga, confusa no terreno científico e desarmada em um período em que 35.000 pessoas morreram e medo já vinha naturalmente sem a necessidade de invocá-lo. O partido perdeu mais de 10 pontos em somente quatro meses (a última pesquisa da empresa Ipsos mostra que continuaria ganhando com 25,5% dos votos). O Partido Democrata (PD) está mais próximo do que nunca (20%) e as previsões não são boas, diz o cientista político Piero Ignazi. “A Liga sofrerá muito no outono. Se o Executivo conseguir armar uma proposta crível e articular as ajudas europeias, Salvini será marginalizado”. Também na Europa, em que alguns de seus aliados como o Alternativa para a Alemanha perdem fôlego e pedem, como o holandês Geert Wilders, que a Itália não receba um euro sequer do fundo de recuperação da pandemia.

O principal problema, entretanto, vem de sua coalizão. Giorgia Meloni, líder do Irmãos da Itália, subiu os mesmos pontos que ele perdeu (tem 16,4% de intenções de voto) e é a política mais bem avaliada após o primeiro-ministro, Giuseppe Conte (erguido pelo Movimento 5 Estrelas). Procedente dos rescaldos do pós-fascista Movimento Social Italiano, seu partido apostou desde o começo por conquistar um voto popular e propor fortes políticas públicas. Salvini já sabe que não pode crescer por esse flanco à direita.

O interesse da Liga no voto operário não é novo, frisa uma histórica deputada do partido. “Sempre dissemos que nosso partido superou o eixo esquerda-direita. E precisamos crescer nas duas direções”. E a realidade indica que na Itália não existe nenhum partido que tenha conseguido evitar a promiscuidade com as elites e conquistar esse descontentamento das classes médias empobrecidas. “O PD foi mais liberal do que socialdemocrata”, analisa Ignazi. Muitos dos grandes cinturões vermelhos do país, como Sesto San Giovanni (Lombardia) e Terni (Úmbria), inexpugnáveis bastiões da esquerda durante décadas, são hoje os novos laboratórios políticos da Liga. Mas o estreito vínculo da velha Liga Norte com os empresários e as políticas liberais do norte prejudicou algumas vezes uma operação da qual o Irmãos da Itália agora tira vantagem. Após o verão, com uma crise que complicará a subsistência de milhares de famílias ― a Cáritas fala de um aumento de 114% de pessoas que necessitam da entidade ― será um campo de batalha irrenunciável à direita.

A estratégia de captação do descontentamento operário e dos desempregados por parte da ultradireita começou nas eleições da França de 2002. Os resultados do à época Frente Nacional no cinturão vermelho de Marselha foram um golpe para a esquerda e, entre outras coisas, permitiram que Jean-Marie Le Pen fosse ao segundo turno. Pouco depois, sua filha Marine sustentou o fenômeno e inaugurou um novo período político que sempre esteve ligado ao aumento da imigração e que Salvini importou à Itália para reformar a velha Liga Norte. Sete anos depois dessa transformação, o ex-ministro do Interior precisa dar um passo adiante e construir um eleitorado sólido que mantenha sua ameaçada liderança na coalizão de centro-direita. Ainda que precise invocar velhos inimigos de seu partido.

Le Pen resiste como principal rival de Macron

Marine Le Pen, líder da extrema-direita francesa, resiste. O coronavírus assolou a França, o Governo multiplicou os erros, o país se confinou, a economia entrou na maior recessão em décadas e o balanço de mortos supera os 30.000. Mas tudo continua igual para o partido que Le Pen lidera, o Reagrupamento Nacional (RN). A crise não lhe serviu nas recentes eleições municipais para implantar-se no território francês, nem para que ela melhorasse sua credibilidade como líder com capacidade de gestão. E, entretanto, preserva a condição de principal rival de Emmanuel Macron na luta pela presidência da República.

Marine Le Pen, na Assembleia Nacional em 8 de julho.
Marine Le Pen, na Assembleia Nacional em 8 de julho. GONZALO FUENTES (Reuters)

Ao contrário de outros países, em que a crise teve um custo aos líderes e partidos da direita populista, na França eles parecem imunes. Não lhes beneficia e não lhes prejudica. “Na França não se constata um impacto positivo e negativo”, afirma Jean-Yves Camus, diretor do Observatório das radicalidades políticas na Fundação Jean Jaurès. Camus frisa que as eleições municipais, cujo segundo turno foi realizado em 28 de junho, “não oferecem um termômetro exato do que pode conquistar” o partido de Le Pen.

Um motivo é que o RN apresentou menos candidaturas nessas eleições municipais do que nas anteriores, em 2014. O outro é que a participação foi tão baixa ― 58,4% de abstenção ― e o contexto da pandemia tão atípico que, de acordo com Camus, “nada pode ser extrapolado sobre as eleições regionais previstas para o próximo ano e menos ainda para as presidenciais de 2022”.

As pesquisas sobre as eleições presidenciais não variaram com o coronavírus. Uma publicada em junho pelo Ifop-Fiducial, por exemplo, colocaram Le Pen e Macron como vencedores no primeiro turno com 28% dos votos aproximadamente. Para os dois é uma melhora em relação a 2017, quando a líder ultradireitista obteve 21% e o atual mandatário 24% no primeiro turno. No segundo turno de 2022, de acordo com a pesquisa, Le Pen teria 45% de votos e Macron seria reeleito com 55%. A distância diminui em relação a três anos atrás, quando ela obteve 34% e ele 66%, mas o atual presidente continua sendo o favorito.

O RN joga eleitoralmente em dois campos diferentes. As eleições locais ― tanto as municipais como as legislativas, em que os deputados são eleitos em dois turnos em pequenas circunscrições ― costumam ser desastrosas para eles.

O partido de Le Pen sequer tem grupo parlamentar na Assembleia Nacional e só controla uma dezena de municípios dos 35.000 da França. Nas últimas eleições municipais, a vitória em Perpignan ― como 120.000 habitantes, a maior cidade nas mãos da extrema-direita desde os anos noventa ― não foi suficiente para esconder o resultado medíocre no conjunto do país: 827 conselheiros municipais, 671 a menos do que em 2014.

Nas eleições nacionais, é diferente. O RN venceu as eleições de 2019 superando o partido A República em Marcha de Macron, o que permite a Le Pen dizer que são “o maior partido da França”. Antes, nas presidenciais de 2017, Le Pen superou os dez milhões de votos. Os dois resultados a colocam como a única candidata em condições de ser uma alternativa ao presidente.

Tudo pode mudar nos próximos dois anos, e a onda verde nas municipais sugere que existe um espaço no ecologismo social de onde pode surgir um líder que desafie o poderio Macron-Le Pen. Mas hoje a política francesa gira em torno dos dois.

Um problema para Le Pen é a existência de um teto de vidro que lhe impede de percorrer os metros para derrotar um candidato moderado. A chamada frente republicana ― a união de todos contra o RN ― a cada dia mostra novas rachaduras, a última em Perpignan, mas continua dificultando o acesso da extrema-direita ao poder.

Outro problema é sua personalidade, antipática para muitos franceses: sempre está na parte de baixo das pesquisas de popularidade. E uma marca pessoal associada à de seu pai, o velho líder ultradireitista Jean-Marie Le Pen, apesar de se distanciar dele e apesar dos esforços para melhorá-la.

Le Pen carrega uma imagem de incompetência reforçada por seu desastroso debate contra Macron em 2017. Sua falta de preparo irritou seus próprios partidários. O vírus pode amplificar esse defeito da presidenta do RN, a voz mais crítica aos erros do Governo durante a pandemia.

“Muitos franceses têm sérias dúvidas sobre a capacidade do Reagrupamento Nacional para ser um gestor tranquilo, sério e capaz”, diz o cientista político Pascal Perrineau. E as eleições municipais, em sua opinião, não são um bom sinal: “O RN está há tanto tempo prometendo que se transformará em um ator político respeitável arraigado nos territórios, e não consegue, de modo que começa a se instalar uma certa sensação de desgaste”.

Alternativa para a Alemanha cai com o vírus

Quando a chanceler Angela Merkel decidiu se submeter a uma quarentena voluntária, em 22 de março, após estar em contato dois dias antes com um médico infectado por coronavírus, destacou que respeitaria as recomendações sanitárias apesar da dificuldade do confinamento, porque lhe impediria o contato direto com seus ministros.

Nesse mesmo dia, o deputado do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) no Parlamento regional da Baviera, Andreas Winhart, divulgou a notícia no Twitter com uma mensagem venenosa: “Bom, seria melhor atrás das grades. Mas é um bom começo”. Seu colega Jens Maier, membro do Bundestag, comentou a mensagem da quarentena de Merkel em tom semelhante: “Ou já está sob prisão domiciliar?”, escreveu o deputado federal do AfD.

Os dois políticos do AfD apagaram logo depois suas mensagens no Twitter, mas a ação deixou a descoberto a estratégia seguida pelo partido desde o começo da crise do coronavírus: Um ataque frontal à chanceler, ao Governo federal e a todos os políticos e organizações que fizeram parte da gestão da pandemia, com o objetivo de capitalizar a crise econômica e social que causou a emergência.

Foi um erro de cálculo que lhe fez perder mais de quatro pontos nas pesquisas que medem a intenção de voto, um termômetro que também revelou que a gestão da crise impulsionou Merkel e seu partido, o CDU. Tanto que a chanceler é agora a política mais popular e respeitada do país e seu partido poderá obter 40% dos votos se as eleições fossem hoje, um aumento de 12 pontos em somente três meses.

Como destaca o cientista político berlinense Oskar Niedermayer, em tempos de crise a população tende a confiar nos partidos que assumem responsabilidades, algo que a grande coalizão de conservadores e socialdemocratas soube fazer. O AfD, por sua vez, se dedicou desde o começo a colocar em dúvida a periculosidade do vírus, questionou as medidas para deter contágios e esteve na crista da onda da infodemia, a difusão de notícias falsas.

Simpatizantes de AfD
Simpatizantes do AfD, em 29 de abril na Saxônia. D. GABBERT (GETTY) (dpa/picture alliance via Getty I)

O AfD soube capitalizar as preocupações da população diante da chegada de centenas de milhares de refugiados em 2015 e entrar no Parlamento federal em 2017 com mais de 12% dos votos, mas não pôde tirar vantagem da crise do coronavírus: afundou nas pesquisas. Na sexta-feira, a rede de televisão ZDF divulgou uma pesquisa em que o AfD só obteria 9%. Em janeiro ainda era de 14%.

No passado recente, o AfD se beneficiou do descontentamento com a grande coalizão, principalmente pela crise dos refugiados. Mas quando a pandemia surgiu, os líderes do partido, além de questionar as medidas do Governo federal, recorreram à difusão de teorias da conspiração e tentaram, sem sucesso, culpar os imigrantes pelo avanço do vírus, em um momento em que a população olhava ansiosa às autoridades e sua reação.

O partido, além disso, lida internamente com sua ala mais radical, Der Flügel, submetida à vigilância das autoridades desde março pela denúncia dos serviços secretos de que seu discurso vai contra os valores constitucionais.

E a minimização e até a banalização da pandemia por parte dos políticos do AfD encontrou pouca resposta e ceticismo na maioria das vezes. “As pessoas veem as fotos da Itália, Espanha e os EUA e ficam felizes por viver na Alemanha e que seu Governo é capaz de protegê-las”, resumiu o cientista político Lothar Probst no jornal Handelsblatt.

O deputado federal Hansjörg Müller utilizou o YouTube para denunciar uma suposta manipulação das estatísticas sobre os falecidos pelo vírus (a Alemanha registrou 198.556 positivos e 9.060 mortos, segundo dados oficiais do sábado), e Georg Pazderski, líder do partido em Berlim, foi mais longe e acusou os jovens e ecologistas que participaram das manifestações do Fridays for Future de ser os responsáveis pela propagação, ainda que estes tenham sido os primeiros a cancelar os encontros.

No final de abril, o partido apresentou um plano de cinco pontos centrado no apoio às famílias com filhos e trabalhadores autônomos, um pacote de resgate ao turismo, conexões rápidas à Internet e à segurança dos fornecimentos de alimentos. Mas o plano foi visto como uma cópia mal feita do pedido e já implementado pelos partidos tradicionais.

A última proposta do AfD destinada a capitalizar um eventual descontentamento com as medidas sanitárias ainda vigentes também não foi bem-sucedida. O copresidente do partido, Tino Chupalla, propôs abolir a obrigação de usar máscaras nas lojas e supermercados ao considerar que seu uso prejudica o comércio varejista. As autoridades continuam defendendo a utilização de máscaras e a maioria da população se declara partidária de seu uso.

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