Investigação sobre incêndio no CT do Flamengo se arrasta e atrasa denúncia contra responsáveis
Tragédia que matou 10 garotos no Ninho do Urubu completa um ano enquanto famílias ainda vivem angústia de esperar conclusão do inquérito para processar o clube por indenizações
No fim da manhã daquele 8 de fevereiro, o caminhoneiro Wedson Cândido sentiu as vistas escurecerem ao receber a ligação do sobrinho Werley, jogador do Vasco, confirmando que seu filho, Pablo Henrique, de 14 anos, estava entre os 10 garotos mortos pelo incêndio no Ninho do Urubu. “Faz um ano que minha vida virou de cabeça pra baixo”, conta o pai, que, por causa das crises de insônia e ansiedade, foi obrigado a parar de dirigir. “Entreguei um menino saudável, cheio de sonhos, lá no centro de treinamento. E o Flamengo devolveu meu filho dentro de um caixão fechado.”
Depois do insucesso na negociação por indenizações, a família de Wedson aguarda a conclusão do inquérito pela Polícia Civil para ingressar com ações judiciais contra o clube por danos morais e pensão. “É complicado, pra gente que é pobre, ter esperança na Justiça deste país. Mas, como os dirigentes parecem não se importar com a nossa dor, esse é o caminho que nos resta”, diz o caminhoneiro. A polícia, entretanto, ainda não estabeleceu prazo para entregar os laudos definitivos sobre a tragédia. Na primeira versão do documento, procedeu o indiciamento de oito pessoas por homicídio doloso (quando se assume o risco de matar), incluindo dois engenheiros do Flamengo e o ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello.
Por outro lado, o Ministério Público devolveu duas vezes o inquérito à polícia, solicitando a realização de novas investigações. Os promotores pediram a checagem de dados sobre a empresa que fabricava os contêineres onde os garotos estavam alojados (NHJ) e sobre a responsável pela manutenção do ar condicionado (Colman), aparelho que teria desencadeado o incêndio. O MP também solicitou à autoridade policial para levantar informações com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ) sobre os critérios de concessão do Certificado de Clube Formador, a fim de avaliar eventual necessidade de corresponsabilizar as entidades que credenciaram como seguras a estrutura das categorias de base do Flamengo.
O prazo para entrega do inquérito venceu nesta semana, mas o MP espera recebê-lo até o fim de fevereiro para oferecer a denúncia. As autoridades argumentam que a “complexidade das investigações” arrasta o encaminhamento à Justiça. Porém, em tragédias de maior proporção, a polícia conseguiu concluir trabalhos periciais com mais rapidez. Às vésperas de completar um ano do crime socioambiental de Brumadinho, seis funcionários da Vale e da empresa de auditoria TÜV SÜD foram indiciados por homicídio doloso de 270 pessoas após o desmembramento da investigação. No caso da boate Kiss, citado por dirigentes do Flamengo como um dos parâmetros para o cálculo das indenizações que pretendem pagar aos familiares das vítimas, o inquérito que indiciou 16 investigados foi concluído em menos de dois meses do incêndio, ocorrido em janeiro de 2013. No entanto, apenas quatro acabaram denunciados pelo MP gaúcho, e o início do julgamento está previsto para março.
Advogados das famílias em desacordo com o Flamengo reclamam da morosidade não só da investigação como também do andamento de ações cautelares na Justiça. Ainda em fevereiro, duas semanas depois do incêndio, o Ministério Público do Trabalho (MPT) solicitou o bloqueio de 100 milhões de reais nas contas do clube para garantir o pagamento das indenizações. Diante de recursos impetrados pelo departamento jurídico rubro-negro, o processo foi julgado somente em outubro, com ganho de causa para o Flamengo, que não reconhece MP e Defensoria Pública como possíveis mediadores de acordos indenizatórios. O recurso do MPT contra a decisão chegou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) no fim de janeiro e não tem prazo para ser apreciado.
Em outro processo, a Justiça determinou que o Flamengo pagasse pensão mensal de 10.000 reais às famílias de garotos mortos e feridos no incêndio enquanto durar o imbróglio sobre indenizações. Até receber a ordem judicial, em dezembro, o clube, que também recorre da decisão, pagava 5.000 reais por mês a cada família. Segundo o TJRJ, os trâmites processuais estão dentro do “prazo razoável” por envolver um caso complexo. Por sua vez, o Flamengo, que temia o impacto negativo gerado pela tragédia em seus contratos de patrocínio, obteve a liberação para voltar a receber crianças e adolescentes no Ninho do Urubu dois meses depois do incêndio. Também em abril, o clube anunciou o banco BS2 como novo patrocinador principal, que desembolsa 15 milhões de reais por ano para estampar sua marca na camisa do time.
No mesmo dia do incêndio, Defensoria e MP criaram uma força-tarefa para propor acordo de reparação ao Flamengo, em moldes semelhantes ao Programa de Indenização aplicado ao acidente da Air France, em 2009, que levava 228 pessoas a bordo e, em menos de dois anos, indenizou 58 famílias de vítimas em acordos extrajudiciais. Pela proposta, o clube pagaria 2 milhões de reais a cada família e uma pensão de 10.000 reais mensais até a data em que as vítimas completassem 45 anos. Dirigentes rejeitaram a proposição coletiva e preferiram conduzir negociações individuais. Até agora, fecharam acordo com as famílias dos 16 jogadores sobreviventes e de quatro garotos que morreram no incêndio. Em uma delas, apenas o pai, que é separado da mãe, aceitou a proposta.
“O valor sugerido ao Flamengo era consensual. Em um primeiro momento, todas as famílias manifestaram intenção de aderir ao acordo”, explica a subdefensora Paloma Lamego. “Essa seria a via de resolução rápida, que evitaria prolongar o sofrimento dos familiares em luto. Mas, como não houve concordância do clube, o impasse deve se estender à Justiça, onde o tempo de resposta costuma ser bem mais longo.” Em pronunciamento emitido na TV oficial do Flamengo, no último sábado, o presidente Rodolfo Landim afirmou que a instituição considera o incêndio um “acidente” e definiu um teto para o pagamento de indenizações, mantido em sigilo com base nos valores já aceitos por algumas famílias. “A gente vai estar sempre aberto a fazer esse tipo de acordo, dentro dos limites estabelecidos.”
Landim também falou sobre a dispensa de cinco atletas sobreviventes do incêndio, em janeiro deste ano. “Esse critério foi pura e simplesmente técnico. A gente entende que, ao sair daqui [Ninho do Urubu], eles estão muito mais preparados para a vida do que quando chegaram.” Em mensagem publicada no Instagram, o meia Felipe Cardoso, de 16 anos, protestou contra a insensibilidade de dirigentes do clube que o dispensaram. “Aprendi mais uma dura lição da vida em busca deste sonho ao ser liberado pelo Flamengo, por telefone. A dor foi gigante em meu peito. Após refletir muito, cheguei à conclusão de que somos apenas números para muitos.”
De acordo com o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil, as instalações rubro-negras atingidas pelas chamas não dispunham do Certificado de Aprovação, que atesta o cumprimento de normas básicas de segurança. O local, que passou por reforma de 23 milhões de reais e inaugurou um módulo para jogadores do time principal em 2018, estava em processo de regularização de documentos para obter o certificado. A Prefeitura do Rio informou que a área incendiada, descrita pelo clube como estacionamento no último projeto remetido às autoridades, não constava como edificação de dormitório no licenciamento municipal nem tinha alvará de funcionamento. O clube foi multado 31 vezes por manter o CT aberto de forma irregular. Garotos com idades entre 14 e 17 anos ficavam alojados em uma estrutura provisória de contêineres, onde o fogo teria começado.
Assim como a de Wedson, outras famílias aguardam o inquérito para dar entrada em processos contra o Flamengo. Cansada de esperar, Rosana de Souza, mãe de Rykelmo, volante que morreu aos 16 anos no incêndio, foi a primeira a acionar a Justiça, em agosto. Cristiano Esmério, pai do goleiro Christian, já se conforma com a perspectiva de uma longa batalha nos tribunais, magoado pela falta de acordo e contato com dirigentes rubro-negros. “Nunca recebi sequer uma ligação ou um pedido de desculpas do Flamengo”, diz Esmério. “A rotina do clube continua normalmente, mas eu vivo essa agonia de acompanhar laudo, inquérito, investigação… Nada vai trazer meu filho de volta. Só espero que a Justiça não deixe uma tragédia tão cruel ficar esquecida.”