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“Pessoas comuns foram piores com as bruxas do que a Inquisição”, diz historiadora

María Tausiet expõe uma realidade de misoginia e machismo que hoje se reflete em insultos proferidos contra uma deputada espanhola

A historiadora María Tausiet nesta quarta-feira em Madri.
A historiadora María Tausiet nesta quarta-feira em Madri.Jaime Villanueva
Berna González Harbour

Há palavras, há insultos e também há fatos. Realidades. Por isso, em meio ao incêndio que um político do partido ultradireitista espanhol Vox provocou ao chamar uma deputada socialista de “bruxa”, apelando às fogueiras do passado, é o caso de perguntar a quem entende do assunto. E essa pessoa é María Tausiet, historiadora aragonesa com uma dezena de livros sobre bruxaria, superstições, crenças e até a figura de Mary Poppins. Conversar com ela é mergulhar em uma área que sempre pertenceu mais ao âmbito dos mitos do que dos tratados históricos que estão por aí e que ela abriu para pesquisar. Tausiet analisou dezenas de processos e centenas e centenas de páginas.

Pergunta. Que surpresas encontrou na sua busca?

Resposta. A principal é que a justiça laica foi a mais cruel. A partir do caso de Zugarramurdi [escandaloso pelas invenções que reuniu, em 1610], a Inquisição deixou de perseguir a bruxaria em grande escala, ao ver que eram imaginações ou mentiras. Onde verdadeiramente houve perseguição foi nas pequenas localidades, em que representantes dos povoados se voltavam contra qualquer moradora ou forasteira que pudessem culpar por seus males – fosse a infertilidade, as colheitas ruins, a impotência ou a morte de um filho. Muitas jovens que dormiam na mesma cama que seus bebês, às vezes bêbadas, podiam chegar a esmagá-los. Na manhã seguinte diziam que a morte da criança havia sido culpa de uma vizinha com fama de bruxa. O clichê das bruxas assassinas de crianças passou ao folclore e às históricas infantis.

P. Por que você escolheu a bruxaria?

R. A primeira vez que encontrei documentos sobre bruxaria foi classificando papéis no Arquivo Diocesano de Zaragoza, que estavam praticamente intocados desde o século XV, em caixas, e alguns até se desfaziam ao serem retirados. Lá havia muitos processos criminais e comecei a me entusiasmar por esse mundo que, embora sombrio, está bem documentado, com suas testemunhas a favor e contra. Através deles pude me aproximar das vidas de muitas mulheres anônimas.

P. E o que é uma bruxa?

R. A bruxa adquiria poderes ao copular com o diabo, segundo o mito criado na época de maior caça de bruxas, nos séculos XVI e XVII. No caso do homem, supõe-se que o bruxo fez um pacto com o diabo, mais racional, é outra dimensão. Mas a bruxa teve relações sexuais com ele, atribui-se a ela algo físico e carnal, e não intelectual. Era algo brutal. Costumavam ser qualificadas de bruxas as mulheres incômodas, as consideradas “inúteis”, em uma misoginia extrema de rejeitar as mulheres idosas porque já não “serviam” para o sexo nem para ter filhos; as desprotegidas, como viúvas, solitárias, pobres e inválidas. De modo que as bruxas eram mulheres comuns às quais convinha culpar por qualquer desgraça, bodes expiatórios.

P. Então o povo foi pior que a Igreja?

R. A maior violência vinha de pessoas comuns. Descobri um caso em Tosos, na região de Aragão, onde a Justiça episcopal acabou processando não a suposta bruxa, e sim os que a acusavam, porque era uma simples forasteira que tinha aberto um comércio que competia com o de uma mulher local. Era 1812, havia chegado o Iluminismo, que significa educação, e as coisas tinham começado a mudar. Entretanto, o comportamento que vimos outro dia no Parlamento espanhol significa a vigência de escuridões anteriores ao Iluminismo.

P. Por que ainda se insulta uma mulher chamando-a de “bruxa”?

R. Pela vigência da sociedade patriarcal. Existe inclusive o clichê de que todas as mulheres são bruxas, ou seja, perigosas. Bruxa equivalia a mulher malvada, enquanto “bruxo” tinha outras conotações mais positivas, relacionadas com a magia. Naquela época, era a pior acusação que podia ser feita a uma mulher, pelo risco que acarretava. Hoje não se considera um delito, mas continua sendo um insulto muito difamatório, eu diria que o insulto sexista e misógino por excelência.

P. O que falta saber sobre as mulheres na Idade Média?

R. Quase tudo, pois a maioria dos documentos que nos chegaram reflete a visão masculina. Estudar as acusações de bruxaria nos ajuda a compreender o ponto de vista das mulheres.

P. Há o risco de uma nova Inquisição?

R. Prefiro ser otimista. Apesar de casos como este [do Parlamento espanhol], acredito que o respeito às mulheres, ou pelo menos a consciência das faltas de respeito, seja cada dia maior e avance num ritmo muito acelerado, que é o que necessitamos para compensar tantos séculos de barbárie e abuso.

Tausiet estuda agora o papel das mulheres no Iluminismo como pesquisadora do projeto CIRGEN, da Universidade de Valência. Sem bruxaria, mas, como vemos, com os mesmos fantasmas do passado.

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