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O outro lado de Mary Poppins

A estreia do filme ‘O Retorno de Mary Poppins’ convida à releitura dos inquietantes livros originais de P. L. Travers, repletos de misticismo e do humor de sua excêntrica autora

Patricia Gosálvez
Mary Poppins, em ilustração original de Mary Sheppard.
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Mary Poppins não é Julie Andrews. Dá medo. É magra, circunspecta, tem pés grandes e se acha muito mais bonita do que realmente é. Lança olhares “fulminantes”, “ferozes”, capazes de “mergulhar no mais profundo das pessoas e ver o que [estão] pensando”. Tem intenção dissimulada, mas sorri pouco e de forma enigmática; bufa e resfolega aborrecida, faz isso sem parar. Gosta de ter a última palavra: uma versão mais ou menos zombeteira de “ai, cale-se”. E é prima segunda, por parte de mãe, da cobra-real, “o ser mais sábio e terrível de todos nós”, segundo o urso pardo.

Tudo isso, e todo o contrário, é a Mary Poppins que Pamela Lyndon Travers (Maryborough, Austrália, 1899-1996) urdiu em oito livros, publicados ao longo de seis décadas, entre meados dos anos trinta e final dos anos oitenta. Travers foi também uma mulher de contrastes: esotérica, teimosa, bissexual, gozadora, depressiva e fabulosa. A leitura de seus livros, com ou sem crianças ao redor, é uma descoberta inquietante para as nossas gerações, que cresceram com a versão da Disney de 1964, um filme “praticamente perfeito em tudo” que Travers vilipendiou muitas vezes em público. Os estúdios Disney estreiam agora a sequência cinematográfica, O Retorno de Mary Poppins. Tão previsível quanto a rima de suas empoladas canções (estupefação com esplendor), o novo filme poderia ser resumido com um poppinesco “bobagem!” (“nonsense!”). No entanto, a enésima encarnação da babá mágica era inevitável; porque ela é feita do material dos mitos, que voltam, diferentes, quando o vento muda.

Musa, bruxa, deusa

“Mary Poppins é uma mistura de musa grega e fada celta”, diz a pesquisadora María Tausiet

Como J.M. Barrie e Lewis Carroll fizeram com Peter Pan e Alice, P. L. Travers teceu um arquétipo ligado a seu tempo que, porém, sentimos que sempre esteve ali porque... sempre esteve. “Parece uma mulher superficial, um tanto frívola, mas encarna uma grande quantidade de mitos clássicos e fontes folclórico-religiosas”, explica María Tausiet, especialista em história cultural, crenças, religião e bruxaria. Tausiet publicou há pouco o primeiro ensaio em espanhol que explora as raízes mitológicas da personagem: Mary Poppins: Magia, Leyenda, Mito (Mary Poppins: magia, lenda, mito). Ao abranger mil e uma referências de forma amena e erudita, o livro é uma aproximação perfeita para se aprofundar nesse universo sem exagerar. Poppins (cujo nome sugere uma aparição (“she pops in”, diz Tausiet) já foi comparada com uma bruxa, uma fada madrinha, a deusa hindu Kali e até com a Virgem Maria. Para Tausiet, é uma musa: “Não é um anjo nem um demônio, uma santa ou uma bruxa, muito menos um fantasma. Ela se parece mais com uma musa grega, por sua personalidade inspiradora, ou com uma fada da tradição celta, pelo trabalho de mentora que exerce com as crianças sob seu cuidado”, diz a pesquisadora no livro.

Capa de 'Mary Poppins, magia, lenda, mito'.
Capa de 'Mary Poppins, magia, lenda, mito'.

O ensaio “conecta” (o verbo que Travers usava para explicar que não inventava nada) passagens do livro com suas fontes. Assim, a sacola da qual tira uma poltrona ou uma cama dobrável remete a relatos de viagem de Júlio Verne e Stevenson, mas também aos tapetes mágicos e ao princípio taoísta de “o vazio está cheio”. A fita métrica e o termômetro com os quais avalia os meninos (e que dão resultados como “mal-humorado e nervoso” ou “completamente mimada”) não são apenas uma invenção genial: desde os tempos de Plínio, o Velho, até a frenologia, o “diagnóstico simbólico” foi usado para tentar curar doenças e feitiços de todo tipo”. O mais admirável de Travers, segundo Tausiet, é sua “capacidade de conectar o mito e a experiência pessoal”. “Entender os mitos (lendas, contos, textos poéticos e religiosos) reconhecendo-os em você mesmo dá um sentido tanto à vida como à literatura.”

Em Poppins convivem o unheimliche (o estranho-familiar) freudiano e as relíquias cristãs, as lendas medievais, Blake, Wordsworth, a filosofia Zen e todos os astros celestes. Claro que é fácil se embrenhar assim com quase qualquer narração – o Olimpo pulp dos super-heróis, o iogue que vive dentro de cada Jedi –, mas nos livros de Travers esses ecos são estrondosos porque ela era uma pessoa entregue à causa. Tinha obsessão pelo inefável. Andava

de braços dados com W. B. Yeats, George William Russell (o poeta Æ) era seu mentor, e frequentava os círculos teosóficos. Viveu dois verões com os índios navajos e estudou com um mestre zen no Japão. Escreveu incansavelmente sobre religiões, filosofia oriental e tradição folclórica, sobretudo na revista Parábola, que ajudou a fundar: seu livro What the Bee Knows, de 1989, reúne muitos desses ensaios. Foi seguidora do guru armênio Gurdjieff (assim como do arquiteto Frank Lloyd Wright e da atriz Katherine Mansfield), de cuja presença escreveu: “As máscaras se arrancavam sem piedade. Sob a rigorosa benevolência de seu olhar, todos estavam nus.” Do mesmo jeito que acontece quando “os olhos azuis que parecem examinar tudo” da famosa babá olham para você.

Travers, a autora, foi mulher de contrastes: esotérica, bissexual, gozadora, depressiva e fabulosa

Travers nunca se viu como uma criadora, e sim como uma ave que incuba, dentro de uma ancestral genealogia de narradores. Contava ela que Mary Poppins lhe apareceu durante uma doença pouco antes de escrever o livro. Disse-lhe “anote”, e ela se limitou a fazê-lo. Não era certo: mais de 10 anos antes, Travers já havia escrito para um jornal australiano vários contos que aparecem nos livros, inclusive um em que uma babá chamada Mary Poppins passa uma noitada dentro do quadro de um artista de rua. Dominava tão bem os mitos que criou um para recontar sua própria vida.

Pamela Lyndon Travers, por volta de 1924.
Pamela Lyndon Travers, por volta de 1924.Bridgeman / ACI

A galinha que incubava

P. L. Travers não é Emma Thompson. A atriz britânica a interpretou (como uma solteirona rabugenta) no filme biográfico Walt nos Bastidores de Mary Poppins (2013), que narra a espinhosa relação mantida durante décadas pela autora e Walt Disney sobre a versão cinematográfica. O filme é baseado, como quase tudo o que trata sobre Travers, na extenuantemente minuciosa biografia Mary Poppins, She Wrote, publicada pela jornalista australiana Valerie Lawson. Suas 400 páginas percorrem 96 anos de máscaras: Travers, sempre enigmática no plano pessoal (intratável se o entrevistador a pressionava), fabulou uma e outra vez sua vida. Entretanto, contraditória até o final, aos 90 anos vendeu seu arquivo pessoal, perfeitamente catalogado, a uma biblioteca australiana para que qualquer pessoa pudesse consultar.

Chamava-se Helen Lyndon Goff e não era britânica, como disse muitas vezes a jornais e amigos. Era a filha do emigrante londrino Travers Goff, um humilde funcionário de um banco da Austrália rural; não de um irlandês que administrava uma plantação de açúcar, como gostava de contar – e como acabou escrevendo o The New York Times em seu obituário. O elemento definidor de sua infância foi a morte de seu adorado pai, alcoolizado, quando ela tinha sete anos. De sua infância australiana tirou o desejo de ter tido outra (como tantos autores infantis) e uma multidão de detalhes: do guarda-chuva com forma de papagaio de uma criada até o “um, dois” (“spit, spot”) da tia autoritária e responsável que salvou sua mãe viúva e suas duas irmãs da indigência. Quando pôde, foi embora para a Irlanda para ser poeta e conhecer os ídolos literários que seu pai lhe recitava quando criança. “Era enigmática, temperamental, leal, carinhosa, inspiradora, complicada e, algumas vezes, exasperante”, conta por e-mail o escritor britânico Brian Sibley, que foi seu amigo durante anos e com quem trabalhou numa sequência cinematográfica que nunca chegou a ser filmada por causa de problemas de produção e casting, incluindo a ideia louquíssima de que Michael Jackson interpretasse o irmão do limpa-chaminés (Dick Van Dyke). “Ao contrário do que se pensa, ela não gostava tanto do filme original”, afirma Sibley. “Era importante para ela defender a integridade de sua personagem, mas ela também era pragmática. Sabia muito bem que Walt Disney tinha ajudado a prolongar a vida de seus livros e apreciava a renda que obtinha com o filme” (até então, o mais bem-sucedido do estúdio).

Capa de ‘Mary Poppins’ (Alianza).
Capa de ‘Mary Poppins’ (Alianza).

Livre e em constante busca espiritual, mas também hipocondríaca e com episódios de depressão. Feminista? Ela estava em outra onda, mas fez uma babá indomável, que nunca se justificava nem pedia licença, tornar-se uma personagem imortal. Travers viveu durante uma década com outra mulher e perdeu a cabeça por causa do belo e mulherengo poeta Francis MacNamara. Aos 40, quando decidiu adotar um filho sozinha, contrariando o conselho de todos que a conheciam, separou dois gêmeos, escolhendo com qual deles ficaria após consultar um astrólogo californiano. O gêmeo que adotou, Camillus (neto do biógrafo de Yeats, Joe Hones), cresceu pensando que seu pai havia morrido nos trópicos. O gêmeo que ficou na fazenda de seus avós (com o restante da prole que seus boêmios pais lhes haviam deixado), decidiu irromper aos 17 ante seu irmão. Aquilo não terminou bem. Camillus, já adulto, aparece em vários documentários culpando sua mãe por duas infâncias destruídas (que levaram a duas vidas marcadas pelo ressentimento e o álcool). “Aqui tenho um pedacinho da Irlanda que posso ver crescer num vaso”, diz ele, cinicamente, sobre por que sua mãe o adotou. Em outra ocasião, começa a chorar recordando o quanto ele e Travers se amavam e pede uma taça diante da câmera.

Já idosa, Travers revelou um episódio que para ela respondia à eterna pergunta: de onde veio Mary Poppins? Uma noite, sua mãe foi embora de casa dizendo que se jogaria no rio. Aos 11, ela era a filha mais velha. Sentou com as irmãs em frente à lareira e, envoltas num edredom, contou a elas um conto sobre um cavalinho branco. Horas depois, a mãe finalmente regressou, encharcada, mas viva. A filha tinha encontrado sua voz narradora.

Cartaz de ‘O Retorno de Mary Poppins’.
Cartaz de ‘O Retorno de Mary Poppins’.

Um xamã doméstico

Mary Poppins certamente não é Emily Blunt. A sequência O Retorno de Mary Poppins imagina a babá voltando à Rua da Cerejeira quando as crianças são grandes. A Disney já havia proposto a Travers nos anos oitenta. Ela rejeitou o projeto, explica o escritor Brian Sibley, dizendo que só sabia de Mary Poppins o que aparecia em seus livros (outra contradição: ela se gabava de ter querido assiná-los como “Anônimo”, mas era extremamente controladora de sua obra). Embora a premissa da continuação não seja ruim (é como Peter Pan voltando quando Wendy já é mãe para levar sua filha à Terra do Nunca), todo o resto fracassa. A Disney usa o velho truque da Disney, matar a mãe, para dar profundidade ao assunto, e utiliza a magia em última instância como solução a um desengano, que é como se em outro caminho de Iluminação – pavimentado com tijolos amarelos –, Dorothy tivesse usado os sapatinhos de rubi para descolar um apartamento para a Tia Em no Kansas. A Mary Poppins de Travers é mágica sem dúvida, mas não como um anúncio de Natal, e sim como os mitos que expressam o mistério, sinistro e luminoso, do mundo. Suas aventuras provocam assombro e inquietação.

Trailer de ‘O Retorno de Mary Poppins’.

A sequência do filme é uma ocasião perdida, porque a Mary Poppins original tem muito a dizer aqui e agora. Suas incursões com as crianças ao Outro Lado acontecem cotidianamente na bagunçada casa dos Banks da Londres do período entre guerras e são uma ode à balbúrdia carnavalesca que subverte e libera. Visitam um estranho parente que vive (literalmente) de cabeça para baixo na segunda segunda-feira do mês para ganhar perspectiva, uma confeiteira idosa que lhes oferece as pontas dos dedos para comer e um zoológico onde os humanos estão enjaulados e os animais falam... outras vezes, dançam com os astros para se unirem ao cosmos.

Na era da hiperpaternidade, é um alívio que a babá faça tudo o que você faz mal sem se alterar

Poppins é a xamã que abre a porta da percepção e guia pela “Fenda” – oferecendo segurança, mas sem dar explicações – e, quando necessário, tira os meninos da viagem ruim que ela mesma provocou. Logo após conhecê-los, quando a senhora Banks não está olhando, ela lhes dá um misterioso xarope que tem o gosto que cada um mais aprecia. Michael não quer tomar o remédio, mas entende que é “impossível olhar para Mary Poppins e desobedecê-la”. “Havia nela algo estranho e assombroso, algo que dava medo e, ao mesmo tempo, era profundamente emocionante.” À medida que cresce, o menino se torna um autêntico devoto e acaba gritando para a sua mãe: “Mary Poppins é a única pessoa que amo neste mundo!” No final do segundo livro, a babá mágica vai embora montada num cavalo de um carrossel que gira como um dervixe (monge muçulmano) pelo universo (impossível não ver Gurdjieff e as danças sagradas flutuando por aí). Vários personagens se despedem dela, não sem antes perguntar se ela não estará pensando em montar também as crianças no carrossel astral. “Só darão algumas voltas”, responde a babá, melindrosa. Mas o leitor fica em dúvida se ela os levará ou não. É bem capaz.

Capa de ‘Mary Poppins Comes Back’.
Capa de ‘Mary Poppins Comes Back’.

No entanto, além das referências místicas, a magia (e a graça) dessa guru de sapatos lustrosos e faceiro chapéu de palha é que não só acompanha os pequenos em suas viagens transcendentais e psicodélicas (que às vezes ficam um pouco maçantes demais). O melhor dos livros, o elemento mais divertido, é como Poppins guia as crianças por Este Lado. Pela tediosa sucessão de protocolos infantis: lavar o rosto, vestir a roupa, organizar a casa, comer tudo, não incomodar os mais velhos… E faz isso sem consideração, sem um pouco de açúcar, com uma tenaz mistura de rigor e permissividade, de ameaça e recompensa. Na era da hiperpaternidade responsável, é um alívio que a babá que todos amam faça tudo o que você faz mal sem se alterar.

Mary Poppins é um xamã caseiro, um hilariante guru da criação politicamente incorreta, que, de quebra, ensina os meninos a ironizar, a cuidar das aparências e, ao mesmo tempo, desconfiar delas. Com Poppins eles aprendem a escutar as idosas e a mentir aos pais, a ser educados sempre e hipócritas quando é necessário e a não dar explicações, sobretudo, daquilo que não as tem.

Não escrevo para crianças

Maurice Sendak, autor de Where The Wild Things Are (onde vivem os montros), estava sendo entrevistado na TV e estavam lhe fazendo as típicas perguntas irrelevantes. Gosta de crianças? Tem filhos? P. L. Travers assistia à cena em sua casa e começou a gritar para a tela. "Você foi um menino, diga isso a eles!" Claro: após uma pausa, Sendak disse. "Fui um menino." A história é contada por Travers num texto publicado no The New York Times em 1978, intitulado Nunca escrevi para crianças. Até então, explica a autora, ela havia esgrimido a citação de Beatrix Potter ("Escrevo para me dar o prazer") e a ideia de C. S. Lewis de que a literatura infantil é uma literatura ruim. A autora de Mary Poppins sempre renegou o rótulo (não para ela, mas em geral) e a adaptação do conteúdo ao público mais jovem. Era uma amante do folclore, da fábula e dos contos de fadas. "Poderia-se dizer que os contos de fadas são os mitos precipitando-se num tempo e num lugar", escrever Travers em seu discurso Only Connect (apenas conectar), de 1966, para a Biblioteca do Congresso dos EUA (impossível não pensar no pouso feérico de Poppins sobre a Londres do período entre guerras): "Por exemplo, se este copo de água é o mito e eu o bebo, a última gota – ou os sedimentos de uma taça de vinho – seria o conto de fadas. A gota está feita da mesma coisa, todo o essencial está ali; é pequena, mas perfeita. Não está minimizada, não está feita para que as crianças a possam digerir."

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