Mil e uma maneiras de falar português, o idioma dos sonhos de 260 milhões de pessoas
O Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, reabre as portas após o incêndio de 2015, e propõe uma viagem pelas origens e atualizações do idioma presente em quase todos os continentes
Nos lares de Goa, na Índia, ou Macao, nas escolas do Timor Leste, nas ruas de Angola e Moçambique, nas praias do Brasil e em em tantos outros lugares ressoa a cadência —por vezes mais aberta, em outras, mais anasalada— do português, uma das poucas línguas do mundo que é oficial em algum país de quase todos os continentes, com exceção da Antártida e Oceania. Não à toa, o documentarista Victor Lopes abre seu filme Língua: vidas em português (2001) com a seguinte constatação poética: “Todas as noites, 260 milhões de pessoas sonham em português”. Essa vasta e diversa comunidade de lusófonos está contemplada no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, que finalmente reabre as portas neste fim de semana depois de ficar fechado desde 2015, quando um incêndio destruiu parte de sua estrutura. Uma reabertura que traz esperança na sobrevivência do patrimônio cultural brasileiro dias depois de que as chamas ameaçaram outro precioso acervo do país, o da Cinemateca Brasileira.
Pensado como um espaço interativo para todos os públicos, especialmente em um país desigual como poucos, o Museu pretende estimular os visitantes a refletir sobre algo tão cotidiano quanto o idioma, conforme explica a curadora Isa Grinspum, responsável pela coleção permanente da instituição. “O Museu quer trazer a complexidade e a riqueza da língua que falamos todos os dias. Os brasileiros têm um complexo de inferioridade histórico, gigante, que nos leva a crer que somos menos devido a nossa formação de Portugal, de África, de origem indígena...E é o contrário. É a singularidade desses encontros que só nós tivemos que produziu coisas maravilhosas na literatura, na música, no cinema, no dia a dia”, comentava Grinspum ao EL PAÍS dias antes da reinauguração.
O Museu da Língua Portuguesa localiza-se em um belo edifício no coração do degradado centro de São Paulo: a Estação da Luz, um dos primeiros lugares onde escutavam a sonoridade do português os imigrantes que o Brasil atraiu da Europa ou da Ásia para substituir a força de trabalho dos africanos escravizados e, num esforço político racista e higienista, embranquecer a população. Com a restauração do prédio, uma passarela conecta diretamente o saguão da estação com o Museu, permitindo que os milhares de trabalhadores que todos os dias passam por ali possam fruir, mesmo que por poucos minutos, de um pedaço do que a instituição tem a oferecer.
Ao lado de mapas interativos que reconstroem e ilustram a origem do português e as relações de parentesco indo-europeias que foram seu berço, junto com outras famílias linguísticas, vários painéis mostram fragmentos de textos acadêmicos e populares, poemas, anúncios, provérbios etc.
Com o objetivo de documentar a imensa variedade regional e sociocultural do português brasileiro, os gestores do museu enviaram emissários por todo o país para coletar quase 200 sotaques, testemunhos em vídeo retratados e reproduzidos em tamanho natural. Lá estão os indígenas de diferentes etnias da Amazônia, o pastor evangélico, a mãe de santo do Candomblé, o pipoqueiro de alguma cidade interiorana do Sul, a professora, o estudante, a prostituta. “Absolutamente todos os brasileiros são autores de sua língua”, ressalta a curadora do Museu da Língua Portuguesa, propondo a eliminação das hierarquias em um país onde a desigualdade, em todos os níveis, é onipresente. A ideia é que qualquer visitante encontre seu próprio português refletido na instituição cultural, que foi criada em 2006 pelo Governo de São Paulo em parceria com a Fundação Roberto Marinho.
Língua viva
Foi o escritor Mia Couto quem disse que o português é um idioma que tem a capacidade de modificar seu próprio corpo. Assim como o objeto sobre o qual se debruça, o Museu da Língua Portuguesa também tem a vocação de ser uma entidade viva, que se atualiza à medida em que surgem novos sotaques, vocabulários e neologismos.
Quando o fogo forçou o fechamento de suas portas, os debates sobre a linguagem de gênero neutro começavam a ganhar terreno no Brasil. Hoje, todas, todos e todes têm sua forma de falar, escrever e criar refletidas na instituição. Junto com o tupinambá (idioma da etnia homônima) e outras das mais de 180 línguas indígenas ainda vivas no país, também está presente, em formato palavra e som, o pajubá, um dialeto da comunidade LGBTQIA+ —falado principalmente por mulheres trans—, que se mescla ao idioma luso com vocabulário iorubá para criar parte da identidade cultural de uma população que vive constantemente sob ameaça.
Embora o idioma se atualize graças à criatividade de seus falantes, o que o torna, inclusive, uma arma de resistência, o português como identidade comum em um território tão vasto como o brasileiro foi forjado “a ferro e fogo”, explica Grinspum. “Os jesuítas pegaram o tupi, que se falava no litoral, e a partir dele, para facilitar a colonização, criaram a chamada língua indígena geral, que é falada até hoje em alguns cantos da Amazônia”. Essa língua é conhecida como nheengatu e pode ser ouvida também em regiões fronteiriças da Colômbia e a Venezuela.
Foi esse processo de imposição violenta da língua que deu origem a um português diferente do falado na velha metrópole. Um português abrasileirado que, inclusive, soa mais amigável aos ouvidos estrangeiros. A curadora do Museu da Língua Portuguesa atribui essa maior facilidade de compreensão ao legado dos africanos escravizados trazidos à força a este lado do Atlântico: “É devido à influência das línguas africanas, especialmente o banto, que são mais vocais, de vogal aberta e (pronúncia) mais lenta”. E assim, finalmente o Brasil pode pôr fim à saudade ―palavra tão nossa, tão única do idioma― do espaço dedicado exclusivamente a manter vivas todas as formas de se falar português.
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