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Alckmin deixa ostracismo, vira figura cobiçada e bagunça xadrez eleitoral

O tucano, prestes a se desfiliar do PSDB depois de o partido ter lançado João Doria à condição de presidenciável, considera ser vice na chapa do ex-presidente Lula

Geraldo Alckmin
O ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin em evento com sindicalistas na quarta-feira, em São Paulo.Divulgação (STILASP)

O ex-governador paulista Geraldo Alckmin desceu do banco de passageiro do Corolla preto conduzido por um motorista vestindo camisa jeans enquanto um ajudante de ordens, procurando disfarçar o blazer descosturado, saiu pela porta de trás dando uma varredura rápida na pequena garagem de um prédio de três andares no Belenzinho, zona leste da capital. Era o primeiro compromisso do tucano naquela manhã da última quarta-feira. Ao lado de sindicalistas, que minutos antes fizeram o desjejum com coxinhas, pães e biscoitos de polvilho dispostos em bandejas de isopor, Alckmin estava ali para descerrar a placa de inauguração da nova sede do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Laticínios e Alimentação de São Paulo, em homenagem a um funcionário conhecido por “Menino de Xambrê”, como destacava um ornamento que foge ao padrão estético a que se acostumou o governador em suas andanças por corredores palacianos.

Por trás da agenda aparentemente insípida, a presença de Alckmin no evento é um indisfarçável passo estratégico para ajudar na costura política que pode resultar numa dobradinha impensável até semanas atrás. O tucano, prestes a se desfiliar do PSDB depois de o partido ter lançado o governador João Doria à condição de presidenciável, tem considerado a possibilidade de ser candidato a vice na chapa presidencial liderada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os dois estão conversando, se encontram reservadamente, aparam arestas, elogiam um ao outro. Diante dos sindicalistas organicamente ligados a Lula e animados com a possível aliança entre PT e PSDB, a despeito de fraturas internas nas duas siglas, Alckmin demonstrou o quanto não está para brincadeira. E tirou do bolso do paletó de microfibra azul marinho uma passagem histórica como demonstração de fé: “Alexandre, o Grande, às vésperas de partir para conquistar a Ásia, distribuiu todos os seus bens. Alguém perguntou a ele: “Mas o que restou para ti?”, no que ele respondeu: “A esperança!”.

O petista e o tucano parecem ter afinado o discurso. Naquela mesma manhã de quarta-feira, a cerca de quatro quilômetros do Belenzinho, Lula participava no bairro da Liberdade do encerramento de um congresso da Força Sindical. “Estamos entrando numa luta que será decisiva para o futuro deste país”. Em sintonia, ambos ainda discursaram sobre a necessidade de controle do processo inflacionário, lamentaram a queda do Brasil no ranking das potências econômicas, pregaram a necessidade de fortalecimento da democracia, além de políticas para redução de impostos e geração de empregos. Cada um a seu modo. Enquanto Alckmin sorria timidamente de lábios cerrados a cada intervenção de sindicalistas para que considerasse o posto de candidato de candidato a vice de Lula, o petista, do outro lado da cidade, arrancava aplausos efusivos dizendo-se disposto a tentar o que for preciso para tirar Jair Bolsonaro da Presidência. O ex-presidente não citou o nome do ex-governador, nem o tucano evocou Lula, ainda que os dois continuem tratando de que maneira —e se— será possível de fato uma aliança.

Num encontro reservado no último fim de semana, Lula e Alckmin, também ao lado de sindicalistas, traçaram o cenário a partir de uma possível dobradinha. Colocaram no papel quem ganha e quem perde, mas principalmente qual a potencialidade de votos de um e de outro quando andam de braços dados. Ao fim do encontro, num apartamento de luxo em frente ao vale do estádio do Pacaembu, o petista jogou para a torcida, no caso, os companheiros da área sindical: “Continuem incentivando [essa aliança]. E a turma já começou a disparar e-mails, memorandos e bilhetinhos para preparar a base em todo o país. Para o EL PAÍS, Paulo Pereira da Silva, ex-presidente da Força Sindical, disse que a categoria está de mangas arregaçadas. “Vamos trabalhar no que for possível para o Lula retornar, seja com quem for”, disse.

A reportagem acompanhou a agenda de Alckmin com sindicalistas no Belenzinho, mas se deparou com a clássica postura escorregadia para evitar pegadinhas que possam prejudicar as negociações. “Vamos conversar uma outra hora”, disse ele, que saía dali direto para uma reunião em que trataria da pauta que o coloca no centro do debate eleitoral.

Em cada encontro, Alckmin tem elevado o tom contra as políticas do Governo federal, o que faz aumentar as suspeitas de que pode, de fato, ceder aos convites de Lula na disputa pela sucessão do presidente Bolsonaro. Em público, se mostra disposto a lançar-se numa plataforma mais nacional: “O futuro a Deus pertence, mas conte com a gente para que todos tenham emprego, saúde e educação”, disse ele enquanto ocupava a mesa da diretoria do sindicato.

O ex-governador tem se reunido com empresários, religiosos e integrantes de entidades da sociedade civil, assim como consulta Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente tem pedido cautela ao colega tucano, ir com calma antes de, quem sabe, bater o martelo em relação à aliança com Lula. Segundo fontes ouvidas pelo EL PAÍS, no entanto, não houve uma resistência deflagrada à ideia por parte do ex-presidente, uma espécie de fiador das decisões do PSDB e que, publicamente, se demonstra um apoiador da candidatura de Doria à Presidência.

Após um período de ostracismo de Alckmin desde que deixou o Palácio dos Bandeirantes, em 2018, a investida do PT faz com que o tucano coloque o nariz para respirar num turbulento mar da política nacional. Nesse cenário, é hoje uma espécie de noiva cobiçada, não só pelo partido de Lula, mas por siglas interessadas no dividendo eleitoral dessa composição em todo o país. Alckmin encerra 2021 com uma musculatura há tempos ignorada por parte da direção de seu partido. “Ele volta pro jogo por cima, depois de tanto desprazer dentro do partido”, diz um aliado que prefere o anonimato para não jogar ainda mais combustível na fogueira de vaidades que acendeu dentro do PSDB. “Tem muita gente que ignorou o Alckmin no PSDB e agora tenta agradá-lo a todo custo. Mas foi o próprio partido que o ignorou quando decidiu lançar Rodrigo Garcia [vice de Doria] a candidato ao Governo de São Paulo. Foi uma traição”, reitera.

A manobra para a entrada de Garcia na disputa foi orquestrada por Doria, em mais um episódio que deve se estender em novas temporadas da série estrelada pelo padrinho e pelo afilhado político que não falam mais a mesma língua.

Lula e Alckmin se cumprimentam antes de debate em 2006, quando disputaram a presidência.
Lula e Alckmin se cumprimentam antes de debate em 2006, quando disputaram a presidência. EFE

O ex-governador pretende mudar de partido até o fim da semana que vem, e pode ir para PSD ou PSB, segundo bolsas de apostas que trazem até o nome do Solidariedade, legenda presidida por Paulinho da Força. O namoro em clima de relacionamento aberto com o ex-presidente Lula se dá paralelamente à separação litigiosa de Alckmin com os tucanos, que tentam frear qualquer movimento para impedir. Tirar o PT e o PSDB de campos antagônicos é tido como uma pá de cal nas projeções eleitorais do partido. Há quem avalie uma migração de pelo menos sete pontos percentuais a favor da candidatura de Lula caso Alckmin embarque na dobradinha, o que aumentaria as chances de o petista fechar a fatura possivelmente no primeiro turno. Como efeito colateral, joga um balde de água fria nas pretensões de Doria.

Para isso, há dentro do partido quem tenha rasgado o pacto de não agressão comum entre os tucanos, principalmente antes da chegada do atual governador. Doria protagonizou, sem papas na língua, embates públicos não só com Alckmin, mas com outros dirigentes, como Alberto Goldman, morto em 2019, e Aécio Neves. Alguns tucanos defendem jogar no ventilador as diferenças no campo pessoal e político entre Alckmin e Lula. Lembram que o ex-governador chegou a dizer que a ideia cogitada por Lula de voltar ao Governo em 2018 — após impeachment de Dilma Rousseff e antes de o petista ser preso pela operação Lava Jato — foi vista pelo próprio tucano como uma “volta à cena do crime”, referindo-se às acusações que Lula enfrentou nas denúncias do mensalão e do petrolão.

Ao EL PAÍS, João Doria reforça o que os tucanos enxergam como incoerência na aliança entre Lula e Alckmin. “Eu respeito Geraldo Alckmin, que tem uma trajetória íntegra, é um homem correto. Mas estou em campo oposto a Lula. Eu quero distância de Lula, um populista. Aliás, entrei na política com a motivação de combater o governo corrupto instalado no país”, disse ele, assinando embaixo uma tese corrente no partido, de que Alckmin, se levar adiante o projeto de ser vice Lula, joga por terra discurso de outrora de que não compactuava com corrupção.

O movimento de Alckmin, se concretizado, não só coloca obstáculo aos objetivos de seu afilhado político, como bagunça o tabuleiro eleitoral ao impor rearranjos nos palanques estaduais. A briga em São Paulo, por exemplo, requer um jogo de cintura na hora de escolher quem estará ou não na disputa ao Palácio dos Bandeirantes. Pelos prognósticos atuais —o que na política muda dia após dia—, o PSB aparece como o ambiente mais atraente.

O cortejo tem sido incessante. Também ex-governador de São Paulo, Márcio França é presidente estadual do partido e pré-candidato ao Governo paulista. Tem dito, no entanto, estar disposto a fazer concessão em nome da filiação do tucano ao partido. Caso o namoro com Lula não avance para um casamento, Alckmin avalia candidatar-se mais uma vez ao Bandeirantes. “Estendemos um tapete vermelho para o Alckmin, e o PSB estará ao seu lado em qualquer decisão que ele tome”, diz França, presidente estadual do partido que abraça uma possível filiação de Alckmin a seu partido. Se assim for, a decisão indiretamente afetará Doria, de quem França perdeu a eleição para o Governo de São Paulo em 2018 numa disputa recheadas de ataques.

O que não falta é complexidade nessa “mistura de Brasil com Egito”, como satirizou um tucano ao falar da aliança do PT com o PSDB. É que, pela primeira vez, será permitida nas eleições a formação de federações partidárias. O mecanismo autoriza a união de siglas na disputa eleitoral, tal qual ocorria com coligações partidárias. Com isso, o grupo político consegue mais tempo de TV e a união ganha força na hora do cálculo do quociente eleitoral. Acontece que, ao mesmo tempo, cria barreiras nas intenções de cada ator ou partido político. É que as legendas que fizerem parte de uma federação só poderão lançar um único candidato nas eleições estaduais, e isso pode criar obstáculos nessa negociação entre Alckmin e Lula, uma vez que partidos como PT e PSB seriam entusiastas de uma federação ao mesmo tempo em que têm interesses particulares nos Estados.

Se for criada uma federação ano que vem e Alckmin não optar pela candidatura a vice para disputar o Governo de São Paulo pelo PSB, o ex-prefeito Fernando Haddad (PT) terá de rediscutir sua posição como pré-candidato em São Paulo. França já disse que abriria mão a favor de Alckmin, ao que Haddad tem resistido peremptoriamente. Para ganhar terreno nessa disputa com o tucano, tem incentivado a aliança Lula/Alckmin. Foi Haddad quem organizou o último encontro entre os dois, na casa de Gabriel Chalita, que fez carreira política no MDB.

Enquanto isso, Alckmin também acompanha a distância a movimentação do PSDB. O encontro de Doria com o ex-juiz Sergio Moro na última quinta-feira provocou uma pressão de aliados para que o ex-governador defina o quanto antes seu projeto político. Na tentativa de furar a bolha entre Lula e Bolsonaro, Doria procura alianças para fortalecer uma terceira via, desde que seu nome esteja na cabeça de chapa. Moro atendeu ao convite para um encontro, registrado pela imprensa, mas em suas andanças tem subido o tom contra o ex-presidente e o atual mandatário, como forma de ele também tentar emergir como nome para 2022.

Relação desgastada

Alckmin já avisou a interlocutores que há tempos não encontra mais espaço para continuar no PSDB, partido que ajudou a fundar em 1988, depois de deixar o hoje MDB. A gota-d’água fez o copo transbordar há duas semanas, com a vitória de Doria nas prévias. Se antes os dois eram padrinho e afilhado —em 2016, o ex-governador foi contra todo o partido e, sozinho, bancou a candidatura de Doria à Prefeitura paulistana—, a amizade azedou de vez em 2018, quando Doria ganhou fôlego e passou a fazer campanha para que ele mesmo fosse o candidato presidencial do PSDB, tentando furar a fila que tinha Alckmin como o candidato natural. Um ano antes, Doria já havia tentado escantear Alckmin na corrida pela presidência do partido. Foi uma forma de tentar viabilizar sua própria candidatura à sucessão do então presidente Michel Temer, vice que assumiu o lugar de Dilma Rousseff num mandato tampão após a presidente ser afastada dois anos antes do fim de sua gestão.

Alckmin reagiu fortemente contra Doria, a ponto de deixar a sobriedade de lado num encontro entre as lideranças tucanas, quando chamou o afilhado político de “traidor”. Com o PSDB em frangalhos, a candidatura de Alckmin não decolou. Saiu do pleito com apenas 4,76% da preferência do eleitor. Doze anos antes, em sua primeira tentativa de ser presidente, chegou ao segundo turno contra Lula. No entanto, viu à época 14% dos seus eleitores migrarem o voto para o petista entre o primeiro e o segundo turno, perdendo a eleição.

A partir de 2018, com a ascensão de Doria no partido, Alckmin amargou uma presença tímida no PSDB, de modo que abriu fronteiras na área acadêmica e até na televisão. Médico de formação com especialidade em anestesia geral, o ex-governador do Estado mais rico do país passou a dar aula na faculdade Uninove sobre gestão na área de saúde, além de ter assumido um quadro no programa de Ronnie Von, cantor da Jovem Guarda que apresentava um show de variedade na TV Gazeta, com alcance na região paulista. Nas redes sociais, com o mote “o Geraldo tá on”, mostra sua rotina, que vai de almoço no restaurante popular “Bom Prato”, com refeições a 1 real, fotos com a esposa, dona Lu, homenagem ao filho Thomaz, morto em 2015, encontros com eleitores e bastante de sua agenda quando era governador de São Paulo

Tido como um político apático, embora reconhecido pela estratégia bem-sucedida de comer pelas bordas, Alckmin tem reforçado a costura de sua pré-candidatura sem estardalhaço. Faz ao estilo mineiro, ainda que tenha nascido em Pindamonhangaba, interior de São Paulo. Quase todos os dias toma um café preto e come um pão na chapa numa padaria simples perto de sua casa, antes de seguir para os compromissos. Quase sempre apenas com o motorista e o ajudante de ordem, sem a presença de grandes líderes do PSDB. Nem por isso deixou de manter a agenda, que por vezes incluía moradores de comunidades carentes na periferia da capital paulistana.

Naquela mesma manhã de quarta-feira, em que Alckmin e Lula focaram a agenda em encontros com sindicalistas, ambos pareciam sincronizados para além das promessas e críticas “a tudo que está aí”. No bairro da Liberdade, Lula já havia evocado a retórica de que vai entrar na disputa com energia dos 30 anos e tesão dos 20. Alckmin permitiu-se ao despojamento, bem menos comum se comparado à sucessão de piadas que Lula entorna em seus discursos. Diante de dois homens calvos que com ele compunham a mesa, o tucano olhou para um lado, olhou para o outro, e brincou: “É sempre bom lembrar que é dos carecas que elas gostam mais”.

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