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A inflação corrói a renda dos brasileiros, mas ela é mais cruel com quem tem menos

Alta dos preços acumula 10,7% em 12 meses, mas o impacto nos menos favorecidos é dois pontos porcentuais maior do que para os privilegiados

Una mujer observa productos en el mercado Santo Amaro, en São Paulo, Brasil
Mulher observa produtos no mercado de Santo Amaro, em São Paulo, Brasil, em 25 de novembro de 2021 Lela Beltrão
Naiara Galarraga Gortázar

É quinta-feira no fim da manhã e uma feira de produtos frescos em uma rua de Santo Amaro, região de classe média baixa de São Paulo, está quase deserta por culpa de um fenômeno que o Brasil não vivia há um quarto de século: uma inflação que chega aos dois dígitos, sobe a cada mês e ainda não foi contida. O aumento dos preços que percorre o mundo após a chegada da pandemia é sentido em cheio por aqui. Afasta a clientela, obriga a fechar barracas e, em um efeito perverso, aumenta a desigualdade que corrói o país. A inflação atinge com mais dureza o estômago dos brasileiros pobres do que o bolso dos ricos. Uma cliente aqui e outra ali compram um pouco de fruta ou verdura enquanto uma terceira mulher recolhe discretamente o que encontra de aproveitável entre os produtos descartados pelos feirantes.

Dayane Ferreira, de 38 anos, era analista financeira até que a pandemia a deixou sem trabalho, então ela entende um pouco de preços e de inflação. Depois de terminar a compra, apoiada no carrinho da filha, estima que nesta feira os preços de muitos produtos subiram entre 30 e 40%. Sua receita para equilibrar as contas inclui os seguintes ingredientes. Um, comprar menos quantidade dos produtos cujos preços dispararam. “Antes pagávamos entre 9 e 10 reais por meio quilo de café, agora custa 17; o preço do tomate dobrou”, detalha. Dois, procurar todo tipo de oferta e ir onde estiverem. Três, “não desperdiçamos nada. Só compramos o que vamos comer”. Ela está procurando trabalho, até agora sem sucesso. Portanto, nem pensar em viajar ou em qualquer outro luxo que antes podia pagar.

Com aumentos mensais nos últimos 12 meses, o Brasil acumula uma inflação de 10,7%, menor do que a inflação da Venezuela ou da Argentina, mas altíssimo para um país que manteve os preços notavelmente estáveis nas últimas duas décadas — é o dobro da meta do Banco Central. Além disso, esse número médio esconde o impacto muito desigual entre os mais privilegiados, os menos favorecidos e todos os que estão entre eles. Para os mais pobres (que ganham menos de 1.800 reais), a alta dos preços é de 11,39%, como detalha Maria Andreia Lameira no último relatório de conjuntura do Ipea. Por outro lado, para os que ganham mais de 17.000 reais por mês, a inflação é dois pontos porcentuais a menos, 9,32%.

Clientes no mercado de Santo Amaro, em São Paulo, Brasil.
Clientes no mercado de Santo Amaro, em São Paulo, Brasil. Lela Beltrão

Para os mais pobres, os aumentos nas contas de luz, gás, aluguel, e os preços da batata, café ou açúcar os atinge como um míssil supersônico, levando à insegurança alimentar. Todos os dias 19 milhões de brasileiros acordam sem saber como conseguirão ou se conseguirão a próxima refeição.

Em contraste, os aumentos nos produtos essenciais afetam pouco os orçamentos dos ricos. Os aumentos que mais os prejudicam são os da gasolina, das passagens aéreas (agora que voltam a planejar férias, festas de Ano Novo ou até Carnaval) e do transporte do tipo Uber, conforme o relatório do Ipea.

Quem conheceu os tempos da hiperinflação não os esquece. Rosa Lopes Masomoto, de 77 anos, que trabalhou em um banco até se aposentar, é uma delas. “Foram terríveis, piores do que hoje. O poder aquisitivo era pequeno, tínhamos de chegar à feira correndo, antes que mudassem os preços. Era uma loucura, os aumentos eram galopantes”, recorda enquanto procura verduras frescas. As generosas pensões que os brasileiros mais favorecidos da elite recebem amorteceram para eles um golpe que impacta, como sempre, de maneira desproporcional os milhões que ganham a vida no mercado informal. São aquelas senhoras idosas que ficam nas esquinas para vender doces caseiros.

Ou os protagonistas de uma das cenas que mais horrorizou os cidadãos deste país orgulhoso de ter saído do mapa mundial da fome há alguns anos. As pessoas das filas de ossos, aquelas que aguardam em fila para receber os descartes do açougue para matar a fome.

Para milhões de famílias, como a da empresária Jéssica Batista, de 30 anos, a pandemia e a consequente queda de renda obrigou a mudar a dieta alimentar. Ela conta que em sua casa consomem “mais carne branca e menos carne vermelha”, já que a pandemia reduziu a renda familiar à metade. Mais frango e mais porco.

Mercado de Santo Amaro, em São Paulo
Mercado de Santo Amaro, em São Paulo Lela Beltrão

Arnaldo Silva, de 59 anos e 40 como açougueiro, afirma que nunca na vida tinha visto um quilo de contrafilé a 178 reais. É o produto que mais subiu. Parte dos clientes passou a comprar cortes mais baratos, outros desapareceram. No meio da manhã, seu açougue está vazio. Ele diz que as entregas em domicílio são o que os manteve a salvo.

A feira de Santo Amaro está entrando em um círculo perigoso, explica o fruteiro Rogério Fernández, de 53 anos. Sem clientela, as barracas de carne e de peixe fecharam como uma das barracas de fruta, outra de banana, outra de pastéis... “São onze horas e veja como está”, diz, apontando para o vazio deixado pelos outros feirantes. “E daqui a pouco todo mundo vai almoçar e ninguém mais virá aqui”. Seu medo é que, à medida que a oferta diminua, a clientela pare de comprar lá e leve os que ainda sobrevivem à ruína.

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