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Invisíveis, órfãos da covid-19 encaram a pandemia da dor e do desamparo

Estimativa do Imperial College aponta que 5 milhões de pessoas perderam seus pais em todo o mundo na crise sanitária, número que no Brasil é incerto devido a lacunas nos dados oficiais. CPI deve propor pensão a crianças e jovens

Mayra Pires Lima, de 38 anos, ao lado da sobrinha Evelyn, de 15 anos. Elas seguram as fotos, roupas e brinquedos do casal de bebês Gabriel e Sophia. As crianças ficaram órfãs após a morte da mãe por covid-19. Mayra ficou com a guarda de todos os sobrinhos.
Mayra Pires Lima, de 38 anos, ao lado da sobrinha Evelyn, de 15 anos. Elas seguram as fotos, roupas e brinquedos do casal de bebês Gabriel e Sophia. As crianças ficaram órfãs após a morte da mãe por covid-19. Mayra ficou com a guarda de todos os sobrinhos.Bruno Kelly

Mariza Lima, de 36 anos, dava aulas para crianças da educação infantil de Careiro Castanho, cidade de cerca de 38.000 pessoas na região metropolitana de Manaus, quando a covid-19 chegou ao Brasil. Mãe de uma adolescente de 15 anos e de uma menina de 9, ela estava no início de uma gestação de gêmeos naquele fevereiro de 2020. Enquanto a vida crescia na barriga de Mariza, com Gabriel e Sophia disputando espaço, a cadeia de transmissão do coronavírus seguia ocorrendo pelo país, sem ser interrompida.

Pela idade e sobrepeso, e diante da alta de infecções por uma doença ainda pouco conhecida, Mariza foi chamada pela irmã, enfermeira, para passar os quatro últimos meses da gestação na capital, onde seria socorrida mais facilmente caso necessário. Mas a pandemia, que havia sinalizado ligeira melhora na época, voltou a ficar desenfreada como resultado das aglomerações no fim do ano. Em 12 de janeiro, quando seus bebês estavam com dois meses devida, a educadora apresentou sintomas —uma semana depois de sua irmã, Mayra Pires Lima, de 38 anos, ter sido diagnosticada com o coronavírus. O Brasil via aterrorizado o colapso no sistema de saúde do Amazonas: faltavam vagas nas UTIs e oxigênio para suprimir a falta de ar que a covid-19 causava. Após três dias em uma poltrona e 10 em uma enfermaria, Mariza foi transferida para a UTI quando abriu vaga, em 22 de janeiro. Morreu em 10 de fevereiro, deixando quatro filhos, inúmeros alunos e uma família devastada.

O drama dos órfãos na pandemia causou emoção na última segunda-feira (18), quando familiares de vítimas de covid-19 foram à CPI da Pandemia, no Senado, contar suas histórias. A enfermeira Mayra estava entre eles.

“Tive que levar minha irmã para o pronto-socorro onde um amigo médico trabalhava porque era o único lugar que ainda aceitava pacientes”, contou. A falta de cuidado intensivo foi, para Mayra, o motivo de a irmã não ter recebido o atendimento necessário para superar a doença. “Não foi falta de oxigênio que matou minha irmã. Isso colaborou. Mas o que a matou foi a demora no acesso ao leito de UTI. Ela precisava imediatamente, mas ficou 10 dias na enfermaria agonizando”, relembra em entrevista ao EL PAÍS.

Com a morte da irmã, ela assumiu a guarda dos sobrinhos. Mayra, que só tinha um filho de 12 anos, passou a ser a responsável por mais quatro crianças de uma hora para outra. Conta com doações para ajudar a cobrir os gastos das 10 latas de leite por mês, que custam mais de 500 reais mensais, fora as cerca de 40 fraldas por semana, outros 200 reais por mês, segundo Mayra. Para gastar menos e ficar mais próxima à família, a responsabilidade sobre as crianças também a fez decidir mudar de endereço: vai sair de Manaus para Careiro Castanho, onde os bebês já estão, aguardando a mudança de Mayra prevista para a semana que vem. A guarda já foi oficializada, mas Mayra planeja entrar com processo para incluir o próprio nome na certidão das crianças, mantendo o dos pais biológicos “porque isso faz parte da história”.

Mayra segura foto dos bebês Gabriel e Sophia, filhos de sua irmã Mariza, que morreu de covid-19 neste ano. Mayra ficou com a guarda deles.
Mayra segura foto dos bebês Gabriel e Sophia, filhos de sua irmã Mariza, que morreu de covid-19 neste ano. Mayra ficou com a guarda deles.Bruno Kelly

Vítimas invisíveis

Os órfãos da covid-19 são considerados vítimas invisíveis da pandemia devido à falta de dados sobre quantas crianças estão nesta condição no Brasil. Esses casos não chegam a impactar nos números do Sistema Nacional de Adoção (SNA) porque dificilmente as crianças saem das famílias de origem e vão para abrigos. A maioria é acolhida por familiares.

Os dados do Conselho Nacional de Justiça apontam até uma queda no número de crianças e adolescentes no SNA durante a pandemia. Em 2020, eram 33.969 crianças e adolescentes acolhidos em instituições, 5.040 disponíveis para adoção. Em 2021 eram 29.312 crianças acolhidas, 4.216 disponíveis para adoção, até setembro deste ano.

Mas um estudo global feito pelo Imperial College, do Reino Unido, e publicado na revista científica The Lancet em julho, deu pistas sobre a gravidade do problema. A metodologia permitiu criar uma calculadora dos órfãos da pandemia. Em outubro, os dados foram atualizados e divulgados em um seminário virtual.

Estima-se que 5 milhões de crianças e adolescentes (até 18 anos) em todo o mundo tenham perdido pai, mãe, ambos ou ainda algum avô ou avó responsável por sua criação, desde março de 2020. “Infelizmente, o aumento de casos e mortes resulta em aumento no número de órfãos. A pandemia invisível da orfandade no mundo terá um sério impacto a longo prazo nas crianças das próximas gerações”, afirmou Juliette Unwin, pesquisadora da Escola de Saúde do Imperial College e coautora da pesquisa, durante o evento.

No Brasil, a ferramenta do Imperial College aponta que 168.500 crianças e adolescentes perderam pai ou mãe na pandemia até 12 de outubro. O número sobe para 194.200 se forem considerados os avós que tinham a guarda da criança. Outro dado disponível, da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), aponta que 12.211 crianças de até seis anos de idade ficaram órfãs desde março de 2020 até 24 de setembro deste ano. São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Ceará e Paraná são os Estados que lideram a lista de pais e mães que morreram de covid-19 no período, segundo as informações disponibilizadas por cartórios.

“Há uma invisibilidade dos dados”, afirma Renato Simões, coordenador-executivo da Associação Vida e Justiça, que luta pelos direitos de familiares e pessoas que tiveram coronavírus. “Uma primeira iniciativa é encontrar quantas são e quem são as crianças órfãs da covid-19, porque os dados oficiais não nos permitem ter essa transparência. É difícil até quantificar a classe e raça das vítimas, porque os dados não são notificados, quanto mais se eles deixaram filhos”, critica.

Ainda que os números demonstrem com clareza o tamanho da tragédia sobre crianças e adolescentes pela morte dos pais na pandemia, eles não poderiam traduzir os dramas particulares de cada família. Pedro Hartung, advogado e coordenador do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, lembra que a perda de um ente familiar impacta também na renda e coloca em risco a segurança alimentar. “Há ainda o impacto na saúde mental, especialmente em relação ao luto, que nem sempre é vivido plenamente por causa dos protocolos que foram estabelecidos por causa da pandemia”, afirma. A psicóloga Mayra Aiello, cofundadora do Instituto Doulas de Adoção Brasil, reforça o dano psicológico. “A morte destes pais é perder a referência da vida. O que essas crianças e adolescentes conheciam como estrutura, para suas vidas e desenvolvimento, se esvai. A partir disso, um novo adulto assume a função. E isso precisa de um tempo de readaptação”, explica.

O luto silenciado para cuidar da irmã

A perda do pai e da mãe com um intervalo de apenas duas semanas, em julho deste ano, tirou o chão de Giovanna Gomes Mendes da Silva, de 20 anos recém-completados. Ela perdeu as duas figuras de maior referência na sua formação. Perdeu, também, as fontes de renda familiar, e se viu impelida a assumir responsabilidades. Vestibulanda, deixou de lado o sonho de cursar Medicina, trancou o cursinho, se matriculou em Odontologia —curso para o qual tinha obtido nota suficiente para aprovação—, e começou a faculdade no segundo semestre deste ano. Assumiu, também, a guarda da irmã, de 11 anos.

Ela também esteve na CPI da Pandemia apresentando seu relato. Emocionou até o intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras), que chorou enquanto traduzia sua declaração e foi substituído por outro colega.

“Eu costumo dizer que a gente vivia uma vida de alegria com momentos de tristeza. Mas hoje a gente vive uma vida triste, com uma ou outra coisa que deixa a gente alegre. A minha mãe era a minha mãe, mãe da Juliana e também mãe de muitas crianças porque ela era articuladora de uma rede que cuida pelos direitos das crianças. Então, por muito tempo, ela lutou por muitas histórias. Esta perda extrapolou a do convívio familiar”, contou Giovanna aos senadores, com a voz embargada pela emoção.

“Eu, meus pais e minha irmã éramos muito unidos. Onde eles estavam, a gente estava junto. Quando meus pais faleceram, a gente perdeu as pessoas que a gente mais amava. Eu vi que precisava da minha irmã e ela precisava de mim, eu me apoiei nela e ela se apoiou em mim. A partir dali, vi que eu não poderia ficar mais sem ela, assim como ela não poderia ficar sem mim. Então decidi que queria ficar com a guarda dela para ter a garantia de que ela estaria comigo o tempo todo”, dizia a jovem quando o intérprete se emocionou.

Os pais de Giovanna eram do grupo de risco e ainda não haviam tomado a segunda dose da vacina. As denúncias de atraso nas compras de doses, levantadas pela CPI, trouxeram ainda mais dor e indignação para a jovem. A mãe havia passado pelo transplante de rim e era imunossuprimida. O pai estava lidando com um câncer. Ela conta que eles devem ter se contaminado ao buscar atendimento de saúde. Agora, ela e a irmã vivem com os avós em São Luís (MA). O plano é se reorganizar para voltar a morar no apartamento dos pais, com a irmã, assim que for possível. “A gente está vivendo nossa vida, tentando seguir. Acho que não temos que ficar relembrando, para não ficarmos muito presos na dor. E queremos sair logo da dor para ir para a parte do amor e saudade”, conta ao EL PAÍS.

Pensão para os órfãos da covid-19

O relatório da CPI da Pandemia prevê unificar projetos de leis que tramitam no Senado e na Câmara para propor uma pensão aos órfãos da covid-19. “É essencial que haja uma compensação mínima ao grande número de óbitos no país —uma circunstância resultante, em larga medida, das omissões e ações de agentes públicos em favor da ampliação do contágio pela covid-19 no território nacional”, diz o documento. Os valores não estão claros no relatório final da CPI, mas os textos da Câmara e Senado estipulam desde meio salário mínimo por criança até 1.500 reais mensais até que atinjam a maioridade.

Nos Estados, o Maranhão aprovou o Auxílio Cuidar. Serão 500 reais ao mês até a maioridade civil (21 anos). Em Pernambuco, foi sancionado o Benefício Continuado Pernambuco Protege, com pagamento de 550 reais até atingir a maioridade. Se entrar na universidade, o benefício pode ser estendido até os 24 anos. Em São Paulo, o Governo anunciou o pagamento de seis parcelas de 300 reais para famílias em situação de vulnerabilidade que perderam um familiar para a covid-19.

“As famílias que recebem a tutela da criança não estavam se preparando para acolher novos membros”, justifica Renato Simões, da Associação Vida e Justiça. “É de uma hora para outra que surgem as crianças. Esses casos são muito comuns de você precisar de apoio financeiro para comprar fralda, leite em pó e comida.”

Simões defende a importância da pensão, mas reforça a necessidade de instituir uma rede de proteção de direitos para essas crianças e adolescentes, incluindo conselhos tutelares, conselhos de direitos, políticas de saúde mental pela falta de luto e políticas de monitoramento educacional e social. “Nós acreditamos que a sociedade brasileira vai demorar anos, décadas, para promover uma reparação. Porque não é reparação para as vítimas mais sensíveis da pandemia. É reparação para o povo brasileiro”, defende.

Enquanto isso, Giovanna segue com uma campanha de doações, aberta em uma página da internet. Já Mayra diz que recebe apoio de amigos e parentes mais próximos por meio de doações via Pix.

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