O perverso ecossistema que viabilizou a política de morte de Bolsonaro na pandemia
CPI diz que o Governo federal poderia ter prevenido a morte de 120.000 pessoas com medidas simples, mas optou pro apostar na imunidade de rebanho. Papel das Forças Armadas foi reduzido no relatório
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O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia desenha o perverso ecossistema de ação do Governo Bolsonaro que levou à morte mais de 600.000 brasileiros vítimas da covid-19. E define também os contornos de uma opção ideológica: colocar a economia à frente da responsabilidade do Estado de preservar vidas. A aparente desorganização do Governo federal à frente da gestão da crise sanitária teve como pano de fundo a estratégia de desincentivar a adoção de medidas não farmacológicas, como o uso de máscaras, para apostar na imunidade de rebanho ―termo originado no controle de infecção entre animais com vacinação. A crença era de que a disseminação livre do vírus faria com que mais pessoas fossem naturalmente imunizadas. Enquanto isso não acontecesse, fórmulas mágicas como a cloroquina, por meio do chamado tratamento preventivo, dariam esperança de cura à população. “Se a imunidade de rebanho era o fim a ser perseguido, a cloroquina era o método. Essas ações, somadas ao atraso das vacinas, teriam como resultado muito provável a propagação da covid-19″, destaca a CPI.
O documento apresentado nesta quarta-feira mostra que a estratégia do Governo aconteceu à sombra da razão científica, capitaneada pelo presidente Jair Bolsonaro e seu gabinete paralelo de aconselhamento, formado por políticos, médicos e empresários, que prestavam orientações e participavam de decisões sobre a políticas públicas.
O Brasil pagou muito caro por isso. “Se medidas não farmacológicas tivessem sido aplicadas de forma sistemática no país, poderiam ter reduzido os níveis de transmissão da covid-19 em cerca de 40%, o que significa que 120.000 vidas poderiam ter sido salvas até o final de março de 2021″, disse o senador Renan Calheiros (MDB-AL) durante a leitura do texto final da comissão. Para o relator, o Governo adotou uma “estratégia macabra” ao defender a imunidade de rebanho e não priorizar a compra de vacinas, o que tornou o país uma “necrópole aterradora” conduzida pela “catedral da morte”.
No plano de ação do Governo federal, coube ao presidente o papel de garoto propaganda da política de morte. O relatório ressalta que, repetidamente, Bolsonaro “incentivou a população a não seguir a política de distanciamento social, opôs-se de maneira reiterada ao uso de máscaras, convocou, promoveu e participou de aglomerações e procurou desqualificar as vacinas contra a covid-19″. A ação de Bolsonaro estava “atrelada à ideia de que o contágio natural induziria à imunidade coletiva”, visando uma retomada rápida das atividades econômicas que acabaram sendo paralisadas no início da crise sanitária, em março do ano passado, por ação dos governadores.
A conclusão do relatório é que o presidente foi o principal responsável pela propagação da ideia de tratamento precoce. “Em tempos normais, seria apenas um exemplo de desprezível charlatanismo pseudocientífico. Contudo, em meio a uma pandemia global, colaborou para gerar uma monstruosa tragédia, na qual alguns milhares de brasileiros foram sacrificados”, afirma o texto.
Em nome da proteção e preservação da economia, o Governo usou até mesmo campanhas publicitárias. O relatório afirma que a Secretaria de Comunicação (Secom) elaborou um vídeo intitulado “O Brasil não pode parar”, em momento em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o próprio Ministério da Saúde recomendavam a adoção de medidas de distanciamento social. O vídeo teve sua distribuição proibida pelo ministro do STF, Luís Roberto Barroso. mas segundo o ex-secretário de comunicação Fábio Wajngarten, a peça foi divulgada acidentalmente, pois não estaria aprovada ainda.
O gabinete paralelo
Dois ex-ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, confirmaram em depoimento à CPI que acreditavam que o presidente era orientado por pessoas de fora do serviço oficial do Governo, tamanha a discrepância entre as orientações técnicas dadas pela pasta e as ações do Executivo. Os apoiadores do gabinete paralelo serviam para dar teorias alternativas às defendidas pelos cientistas, mais alinhadas com os valores do presidente. É o caso do deputado e médico Osmar Terra, um divulgador da tese da imunidade de rebanho dentro do Governo, fato confirmado pelo ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e pelo ex-chanceler Ernesto Araújo. Ao ser ouvido pela CPI, Terra amenizou o tom de seu ativismo e afirmou que a imunidade de rebanho nunca foi uma estratégia por si só. “A imunidade de rebanho é uma constatação de como termina uma pandemia. É isso, está em todos os livros. Não é... Não sou eu que inventei esse termo; isso está em todos os livros”, disse.
Outra conselheira do gabinete paralelo de Bolsonaro é a médica oncologista Nise Yamaguchi, apontada como a principal defensora da cloroquina e da hidroxicloroquina. Sua influência foi tanta, que chegou ao ponto de o Governo tentar mudar a bula de orientação do medicamento, prevendo o tratamento precoce da covid-19. A medida só não foi adiante porque o presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, recusou a ideia, como ele próprio confirmou em seu depoimento à CPI. Yamaguchi disse que se reuniu com Bolsonaro pessoalmente apenas uma vez, no início da pandemia, em abril 2020. Segundo ela, foi o presidente que introduziu o tema dos tratamentos precoces. “Ele queria saber o que tinha de dados científicos da hidroxicloroquina. E eu fiz essa reunião a seguir com o Conselho Federal de Medicina para caracterizar o que tinha de científico (...) O que eu disse para ele é que os médicos estavam divididos”, afirmou à época. A médica defendeu o tratamento precoce, que teria sido prejudicado por uma “conspiração política”.
Sem nenhuma comprovação científica, o medicamento contra malária foi defendido diversas vezes por Bolsonaro ―ele mesmo atribuiu à cloroquina sua cura da covid-19. “Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina [CFM]. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso off-label”, afirmou o presidente, em trecho destacado pelo relatório.
O papel do Exército
O Governo federal deixou a cargo do laboratório do Exército a produção em larga escala do medicamento para atender o aumento da demanda, criada e alimentada pelo próprio presidente. “Produzir esperança a milhões de corações aflitos com o avanço e os impactos da doença no Brasil e no Mundo”. Esta foi a justificativa utilizada pelas Forças Armadas para explicar sua atuação frente ao Tribunal de Contas da União (TCU), conforme detalha o relatório da CPI. O TCU investiga possível superfaturamento na aquisição de insumos para produção de cloroquina. O texto da CPI aponta que os insumos adquiridos pelo Exército custavam, em 2019, 488 reais o quilo, porém, foram adquiridos por 1.304 reais o quilo em 2020. O Exército diz que produziu os medicamentos a pedido do Ministério da Saúde, mas a pasta afirma que nunca fez o pedido.
Contudo, o papel das Forças Armadas de fiadoras da política federal de distribuição de cloroquina teve sua importância reduzida pelo relatório CPI. A estratégia dos parlamentares é focar em atores que utilizaram de forma direta a cloroquina e outros medicamentos de eficácia não comprovada, como a ivermectina e a azitromicina, na distribuição dos chamados kit covid para tratamento precoce. É o caso de Nise Yamaguchi e dos médicos do plano de saúde Prevent Sênior, acusados por fazer testes em cobaias humanas sem aprovação dos órgãos competentes para tentar legitimar as teorias do Governo.
“As evidências contra a Prevent Senior gritam: práticas incompatíveis com quaisquer padrões éticos acabaram por se tornar a regra. Foram tantas as barbaridades, que cabe perguntar: que experimentos a empresa não fez em seus clientes?”, destacou o relatório. À CPI, advogada dos médicos que denunciaram o plano de saúde, Bruna Morato, relatou que houve uma confluência de interesses entre a operadora privada de planos de saúde e o Governo federal, por meio do chamado gabinete paralelo. “A economia não podia parar, e o que eles tinham que fazer era isto: conceder esperança para que as pessoas saíssem às ruas. E essa esperança tinha um nome: hidroxicloroquina”, disse a advogada.
A CPI conclui que a Prevent Senior fez parte do “pacto” de Bolsonaro, definido como uma “associação sinistra na cúpula do Governo brasileiro, que, sob o lema ‘O Brasil não pode parar’, resultou na morte de milhares de brasileiros”, diz o texto. Porém tenta evitar erros do passado ―talvez tendo na memória a destruição das empresas de infraestrutura com a Lava Jato― e afirma que “é preciso distinguir entre a empresa e os seus dirigentes”, a fim de não prejudicar os milhares de brasileiros que dependem do serviço privado de saúde.
O relatório destaca ainda o papel colaboracionista do Conselho Federal de Medicina com as políticas do Governo Bolsonaro. O texto lembra que um parecer emitido pelo Conselho isentando médicos que receitassem cloroquina ou hidroxocloroquina durante o período de excepcionalidade da pandemia de infração ética, se tornou “um escudo para gestores públicos ou privados”. A operadora de planos privados Hapvida, por exemplo, que utilizou esse argumento para se eximir de responsabilidades a respeito da prescrição do chamado kit covid. A CPI classificou como “temerária, criminosa e antiética” a publicação do parecer e afirma que é necessário apurar a responsabilidade do presidente do CFM, Mauro Luiz de Britto Ribeiro.
Cerco legal contras as medidas de prevenção
O documento da CPI explica ainda que o Governo não ficou só na disputa de narrativa para tentar fazer valer seu plano negacionista. Partiu para o embate judicial com a edição do Decreto nº 10.344, de 8 de maio de 2020, que incluiu entre os serviços essenciais a serem mantidos durante a pandemia aqueles prestados por “salões de beleza, barbearias, academias de esporte de todas as modalidades”, desde que obedecidas as determinações do Ministério da Saúde. O decreto não foi assinado pelo ministro da Saúde, Nelson Teich e acabou sendo ignorado por Estados e municípios. O presidente vetou ainda vários dispositivos de uma lei que tratavam do uso de máscaras e da assepsia das mãos com álcool em gel em espaços públicos e privados, bem como a obrigação do Governo de veicular campanhas publicitárias de interesse público que informassem a necessidade do uso de máscaras de proteção individual.
Em contrapartida, durante suas falas no famoso “cercadinho” para apoiadores, o presidente minimizou a gravidade da covid-19, colocou em dúvida a eficácia do uso de máscaras, além de ter condenado prefeitos, governadores e até mesmo o Supremo Tribunal Federal pelas ações em busca de proteger a população.
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