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Duas crianças yanomami mortas, sugadas por uma draga da exploração ilegal de minério

Dois meninos, de 4 e de 7 anos, morreram afogados, ao que tudo indica, por ação do maquinário usado para garimpo enquanto brincavam às margens de um rio em Roraima, denunciam indígenas

Em vídeo, Junior Yanomami participa de busca à criança junto com o Corpo de Bombeiros.Vídeo: CONDISI-YY (REPRODUÇÃO)
Beatriz Jucá

No dia 12 de outubro, dois meninos yanomami, de 4 e 7 anos, usavam um pedaço de plástico como se fosse uma prancha enquanto brincavam nas margens do Rio Parima, em Roraima. Na comunidade Macuxi Yano, as crianças aprendem cedo a nadar e sobreviver ao rio. Mas a brincadeira daquele dia terminou em uma tragédia: os dois meninos teriam sido sugados pelo maquinário usado por garimpeiros ilegais na região e depois arrastados pela correnteza, conforme denuncia o Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana. Ambos morreram afogados.

O corpo de um deles foi encontrado no dia seguinte em uma busca feita pelos próprios indígenas, mas o segundo só foi achado dois dias depois pelo Corpo de Bombeiros, acionado pela comunidade. A morte das crianças, apontam lideranças yanomami, é mais uma tragédia na esteira da constante exploração ilegal de minério no território indígena, mesmo oficialmente demarcado. Há anos, os yanomami cobram arduamente o Governo Bolsonaro para retirar mais de 20.000 garimpeiros ilegais no seu território, mas, sem ações efetivas, seguem mergulhados no descaso.

“A situação exposta é gravíssima e deixa explícita a negligência do Governo com os povos yanomami que vivem à mercê dos invasores”, afirmou o Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY), em uma publicação feita nas redes sociais. Na quinta-feira, o presidente do conselho, Junior Yanomami, publicou um vídeo no Instagram, no qual informava que acompanharia o Corpo de Bombeiros até a região do incidente, no município de Monte Alegre, para ajudar nas buscas da segunda criança (naquele momento ainda desaparecida). Também trabalharia para reunir mais informações com o objetivo de esclarecer as circunstâncias da ocorrência.

Em entrevista ao EL PAÍS, ele conta que havia uma draga de garimpo grande, de dois andares, a 250 metros do local. “Esse maquinário grande suga terra, suga água, come tudo atrás do ouro”, explica. “Acreditamos que a força da draga derrubou as crianças e as arrastou pela correnteza.” Junior Yanomami conta que os dois meninos sabiam nadar e provavelmente caíram em um dos vários buracos deixados pelo garimpo. Ali, a região é cheia de lama. Junto com o Corpo de Bombeiros, ele conta ter descido o rio por quatro a cinco quilômetros até encontrar o corpo da criança de sete anos repleto de barro. Ela já foi devolvida à família, que deverá cremá-la e iniciar seu ritual de despedida. Agora, afirma Júnior, os yanomami vão solicitar uma investigação à Polícia Federal sobre o caso. “Nós, yanomamis, sofremos muito com os ataques de garimpeiros. Estas crianças tiveram malária e nem haviam terminado o tratamento”, conta.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) informa, por meio de nota, que acompanha o caso junto aos órgãos de saúde e segurança pública competentes e está à disposição para colaborar como trabalho das autoridades. Também disse manter ações frequentes para coibir ilícitos. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI), por sua vez, manifestou “profunda dor pela morte das duas crianças”. “Também expressamos nossa indignação diante da permanência e o aumento expressivo do garimpo na Terra Indígena Yanomami, sustentados pela inação do Estado brasileiro, omisso a suas responsabilidades constitucionais e às decisões da Justiça, bem como evidenciada ineficácia das operações pontuais dos últimos anos”, criticou.

Dragas flutuantes são utilizadas por garimpeiros nos leitos de grandes rios para extrair minério, conforme explica o relatório “Cicatrizes na Floresta: Evolução do garimpo ilegal na TI Yanomami em 2020″, elaborado pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana, com assessoria técnica do Instituto Socioambiental. Um deles é o Rio Parima, onde a presença de garimpeiros voltou a crescer. No ano passado, dois yanomami foram assassinados em um conflito com garimpeiros, segundo o mesmo relatório. Indígenas também têm relatado que estão vendo garimpos ilegais cada vez mais perto de suas aldeias.

Maquinário de garimpo no Rio Parima.
Maquinário de garimpo no Rio Parima.Condisi-YY (Divulgação)

“A morte das duas crianças é mais um triste resultado da presença do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami”, afirma a nota da Hutukara Associação Yanomami, que representa o povo indígena na região. A etnia tem enfrentado nos últimos anos as crises sanitária e ambiental com uma forte escalada de violência pela chegada cada vez maior de garimpeiros. Se antes eles já impactavam regiões como as de Waikás, Aracaçá, e Kayanau, agora avançam por novas áreas, como Xitei e Homoxi, onde a atividade teve um aumento de 1000% entre dezembro de 2020 e setembro de 2021, segundo estimam os indígenas. “Cada mês, cada semana, aumenta o movimento dos garimpeiros. Eles chegam armados em comunidades onde antes não existia garimpo”, conta Junior Yanomami. “[Este aumento] está se refletindo em mais insegurança, violência, doenças e morte para os Yanomami e Ye’kwana”, reclama a Hutukara Associação Yanomami, que pede uma ação enérgica do Governo.

Os impactos do garimpo na saúde e na segurança das crianças

Nos últimos meses, as crianças têm protagonizado as imagens do descaso brasileiro com o povo yanonami. Uma semana antes da tragédia com os dois meninos no Rio Parima, a liderança indígena Dario Kopenawa usava suas redes sociais para mais uma vez cobrar atenção das autoridades para os impactos da presença de garimpeiros. “Na Terra Indigena Yanomami, as nossas crianças estão usando água suja e muito volume de mercúrio dos garimpeiros ilegais, cada vez mais os invasores estão crescendo. Governo Federal, retire imediatamente os garimpeiros”, clamava.

Cinco meses antes, em maio, outras duas crianças yanomami morreram afogadas na comunidade Palimiu, também em Roraima, após caírem no rio enquanto fugiam dos disparos de garimpeiros armados. No mesmo mês, em outra aldeia, a Maimasi, uma criança de oito anos e apenas 12 quilos, com malária e desnutrição, tinha sua fotografia reproduzida em jornais como símbolo da histórica dificuldade de acesso à saúde e da escassez de alimento diante do desmatamento e do impacto ambiental na floresta.

“Desde 2019, relato as necessidades e pedimos socorro ao Governo”, disse Júnior Yanomami ao EL PAÍS, na época. “Agora está pior. Aumentou muito a desnutrição. Onde tem garimpo forte tem o problema da fome. E na pandemia aumentaram as invasões. Como eu vou explicar a fome dos Yanomami? Eles [os garimpeiros] sujam os rios, destroem a floresta, acabam com a caça. Nós nos alimentamos da natureza”, explica o indígena.

Estes problemas todos não são generalizados em todo o território Yanomami ―tão vasto quanto a área de um país como Portugal―, mas estão presentes em várias comunidades. Na região, onde vivem cerca de 27.000 indígenas, a luta contra o garimpo ilegal acontece desde a década de 1980. A questão é que, nos últimos anos, esta atividade tem se intensificado, e o Governo brasileiro pouco tem feito para coibi-la. O presidente Bolsonaro, que desde sua campanha promete não demarcar um centímetro mais de território indígena, costuma inclusive defender a ação de garimpeiros em territórios indígenas. Enquanto isso, o garimpo ilegal segue avançando, provocando conflitos armados, degradando a floresta e ameaçando a saúde das comunidades yanomami ―e a vida de suas crianças.

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