“Somos vistos como estrangeiros no nosso país”
Acampados em Brasília para protestar pelo direito à terra, indígenas acompanham com apreensão o julgamento histórico sobre a tese do marco temporal no Supremo. Sessão prossegue nesta quinta
Do lado de fora do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, a fumaça e o cheiro de churrasquinho do vendedor ambulante se misturavam aos pouco mais de 1.000 indígenas que olhavam um telão nesta quarta-feira. O ministros do tribunal haviam acabado de retomar o julgamento do processo do marco temporal, que pode definir o futuro da demarcação de terras indígenas e balizar toda a política indigenista no país. Durante toda a tarde, as partes envolvidas no processo fizeram suas defesas em um debate histórico, que pode estabelecer que só são terras indígenas aquelas já ocupadas ou reivindicadas pelos índios até a promulgação da Constituição de 1988, barrando, com isso, muitos dos processos de demarcação em curso e colocando sob risco de questionamentos terras já oficializadas como indígenas.
A polêmica que ronda o tema é tanta que, nesta quarta, os ministros nem sequer conseguiram iniciar seus votos, algo previsto para acontecer nesta quinta-feira, após as manifestações de mais algumas dezenas de amici curiae, ou amigos da corte, instituições interessadas na causa. Do lado de fora, centenas de indígenas de diversas etnias seguem acampados há mais de uma semana, vindos de todas as regiões do país para reivindicar o direito à terra. “Somos vistos como estrangeiros no nosso próprio país”, resume Valdelice Veron, uma Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.
Com uma clara e contundente política anti-indigenista, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) virou o grande alvo dos protestos ao longo da caminhada. Sob sua gestão, nenhuma terra foi demarcada até o momento. Nesta semana, Bolsonaro criticou, novamente, as demarcações de terra. “Acabaram com Roraima com aquelas demarcações, né? Acabaram com Roraima”, disse o presidente a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada na segunda-feira. “Tem alguma favela de índio lá?”, questionou, sem especificar ao que se referia. “Foi no Governo Dilma ou foi Lula a Raposa Serra do Sol?”, perguntou aos apoiadores.
O presidente mencionou o território Raposa Serra do Sol, que fica em Roraima, e que foi demarcado graças a um entendimento do Supremo com base no marco temporal. Na época, a corte entendeu que os povos originários já estavam ali antes da promulgação da Constituição e que, portanto, o território pertencia a eles. O entendimento da corte, no entanto, foi restrito àquele território somente.
Agora, o julgamento que está em jogo tem caráter de repercussão geral, o que significa que o que for decidido passa a valer para todos os casos relacionados ao tema. Defendido principalmente por ruralistas, que afirmam que é preciso haver segurança jurídica para os proprietários de terras, a tese causa apreensão nos indígenas, que temem um retrocesso e a perda de direitos. “Índio sem território não é índio”, diz Jaciene Brito, da etnia Tupinambá, na Bahia.
O acampamento recebeu a visita de políticos ao longo da semana. Faltando pouco mais de um ano para a eleição presidencial, subiu ao palco nesta quarta-feira Guilherme Boulos (PSOL), candidato na última eleição. Luís Inácio Lula da Silva (PT) não apareceu, mas enviou um breve áudio, colocado pela presidenta do seu partido, Gleisi Hoffmann, enaltecendo a luta indígena.
Acampados há mais de dez dias, muitos se despediram de Brasília nesta quarta-feira. Ainda assim, o acampamento não será desfeito. No final de semana, começam a chegar mulheres indígenas para a marcha das mulheres, que ocorre entre 7 e 11 de setembro. O evento levanta dúvidas sobre possíveis confrontos, já que começa no dia em que bolsonaristas devem sair às ruas para defender o presidente.
Nas mãos do Congresso
Nesta quinta-feira, o julgamento no STF deve ser retomado. Ainda restaram alguns advogados que farão as suas sustentações de cinco minutos cada um. Depois disso, os ministros começam a votar, partindo do mais novo até o mais velho, o decano. Assim, o ministro Kassio Nunes, indicado por Bolsonaro, inicia as votações. Existe uma expectativa em torno desse primeiro voto, que deve ser contrário aos direitos indígenas. Também é possível que o ministro peça vistas do processo, suspendendo o julgamento, sem data para retomar.
Se isso ocorrer, a corte acabará jogando nas mãos do Congresso a decisão sobre o futuro das terras indígenas no Brasil. Isso porque tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 490/2007, que impõe na legislação a tese do marco temporal. Estabelece, dentre outras coisas, que as terras indígenas são somente aquelas já ocupadas ou reivindicadas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Também prevê a abertura dos territórios para exploração de projetos, e permite, dentre outras coisas, o contato com indígenas isolados.
Os olhos dos povos originários estão, portanto, voltados também para o Congresso. “Se o PL 490 for aprovado, vai ocorrer um grande massacre”, diz Valdelice Veron. “Porque hoje, diferentemente de quando a Constituição foi promulgada, a gente fala português, a gente não tem medo. A gente não vai sair do nosso mato e quem entrar, não vamos deixar sair também”.
No início de julho, o PL 490 foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara. Agora, aguarda para ser apreciado pelo Plenário. Mas advogados que defendem a causa indígena ouvidos pelo EL PAÍS afirmam que, ainda o projeto de lei seja aprovado no Congresso, a causa não estará perdida. “Se o PL for votado e sancionado antes da decisão do STF, ainda assim será possível questionar judicialmente sua constitucionalidade”, diz a advogada Julia Neiva, da Conectas. “E se alguém quiser argumentar que uma terra entraria dentro do marco temporal, é possível que essa decisão fique suspensa justamente por não haver uma decisão dentro do STF”, completa.
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