Espetáculo de Luciano Hang desnorteia CPI, mas atesta erro da Prevent Senior sobre morte de sua mãe
Empresário bolsonarista reforça cartilha negacionista, desmente financiamento de ‘fake news’ e segue em defesa do ‘kit covid’. Presença de Flavio Bolsonaro confirma relevância de seu depoimento
Aviso aos leitores: o EL PAÍS mantém abertas as informações essenciais sobre o coronavírus durante a crise. Se você quer apoiar nosso jornalismo, clique aqui para assinar.
O empresário Luciano Hang chegou para depor à CPI da Pandemia preparado para um espetáculo. Levou placas em defesa da “liberdade de expressão” e, antes mesmo de a sessão começar, disse à imprensa esperar que os senadores o deixassem falar. Com o roteiro pronto, destacou não precisar de habeas corpus, porque a verdade estaria ao seu lado, mas recusou jurar dizer somente a verdade aos senadores. Em meio a tumultos que envolveram do seu advogado ao senador Flavio Bolsonaro (Patriota-RJ) e inúmeras respostas evasivas, admitiu um possível erro da Prevent Senior no atestado de óbito de sua mãe, Regina Hang. O empresário que se converteu em um fiel escudeiro do bolsonarismo reforçou que segue uma cartilha negacionista e, apesar da participação espalhafatosa, acabou confirmando a relevância de ser ouvido enquanto um dos atores políticos que deram sustentação à política do Governo Bolsonaro na pandemia.
Luciano Hang foi convocado sob a suspeita de integrar o chamado gabinete paralelo que aconselharia o presidente Jair Bolsonaro a despeito do que a ciência preconiza. Os senadores o questionaram sobre seus laços com o Governo e a operadora privada de saúde Prevent Senior, que teria usado pacientes como cobaias do chamado tratamento precoce (sem comprovação científica) e supostamente adulterado certidões de óbito para omitir a real causa da morte — a covid-19. Uma das pacientes com o certificado alterado teria sido justamente a mãe de Hang, como afirmou nesta terça outra depoente, Bruna Morato, advogada dos 12 médicos que acusam a Prevent Senior de manipular dados durante a pandemia.
Hang disse aos senadores ter ficado “surpreso” ao descobrir, por meio deste depoimento, que o atestado de óbito de sua mãe omitia a covid-19. Ele negou ter mentido sobre a causa do óbito de sua mãe e classificou como “fantasiosa” a possibilidade de ter pedido a alteração. Apresentou aos senadores outro documento e garantiu que, nele, consta a causa da morte por covid-19. “Pode ter sido um erro do plantonista, que colocou aquelas doenças. Mas, quando foram fazer o documento que vai para a secretaria de Estado, foi colocado covid-19. Não vejo interesse do hospital de mentir sobre a morte da minha mãe”, afirmou. Na versão de Hang, uma comissão de controle de infecção hospitalar viu o suposto erro do plantonista, o corrigiu e, assim, a morte de sua mãe entrou nas estatísticas brasileiras adequadamente. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), ainda o questionou sobre uma reportagem do G1 que mostra que sua equipe sabia desde abril que a covid-19 não constava no atestado de óbito da mãe dele. Hang disse desconhecer a secretária que deu esta informação ao veículo.
Senadores exibiram, então, vídeos nos quais o empresário usava a morte da mãe para estimular o uso de medicamentos sem eficácia para a covid-19. Em um deles, Hang diz que o “tratamento preventivo” poderia ter salvado a vida dela. “Tome a decisão acertada. Eu me cobro hoje que eu poderia ter salvado a minha mãe, de repente, se eu tivesse feito o preventivo”, afirma na gravação. Confrontado com informações do prontuário que apontam que Regina Hang usou estes remédios antes da internação hospitalar, o empresário lançou mão de uma ginástica retórica e disse que “tratamento inicial” é diferente de “tratamento precoce” e que se referia ao uso de remédios antes de contrair o vírus. Até agora, a ciência ainda não conseguiu comprovar a efetividade de qualquer tratamento precoce ou preventivo contra a covid-19.
Em um dos momentos de maior tensão, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) pediu a expulsão de um dos advogados do empresário por sentir-se desrespeitado. O advogado havia se manifestado enquanto o parlamentar questionava o depoente com o dedo em riste. O senador Flavio Bolsonaro, que não participava das sessões da comissão há um mês ―desde a oitiva do líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros―, não apenas estava presente como partiu em defesa de Hang de forma veemente, argumentando que o advogado apenas defendia seu cliente. O empresário seguiu seu espetáculo e pediu até VAR —a checagem por árbitro de vídeo dos esportes. A sessão foi interrompida, houve pedido de desculpas do advogado e o show seguiu.
Teatro
Foi uma das sessões mais teatrais da pandemia até agora. Vestido de verde-amarelo e usando uma máscara que propagandeava sua empresa, Luciano Hang montou seu picadeiro e jogou para o público duro bolsonarista, conforme avaliação de alguns senadores. Os parlamentares se questionaram, inclusive, sobre a relevância do depoimento de Hang para a investigação. O aspecto caótico da sessão desta quarta-feira mostra como a própria CPI se boicota na escolha de seus alvos e depoentes, sem falar no comportamento de muitos dos membros da comissão. Hang conseguiu atrair durante um bom tempo os parlamentares ao centro de seu jogo tumultuado, mas não é possível dizer que a sessão desta quarta foi em vão.
Hang se contradisse ao longo de todo o depoimento. Negou pertencer ao gabinete paralelo da Saúde e disse aos senadores que a presença de empresários em uma reunião do gabinete de crise do Governo “não tinha nada com covid-19”. Mas um vídeo recuperado pelo site Metrópoles mostra que o presidente Bolsonaro e seu filho Flávio estavam presentes e que a pandemia foi um dos temas abordados. O empresário repetiu várias vezes não ser negacionista, mas continuou defendendo medicamentos ineficazes contra a covid-19. Afirmou ser a favor das vacinas, mas declarou não ter se vacinado sob a justificativa de ter “alto índice de anticorpos” —cientistas recomendam que mesmo quem já teve a doença deve tomar o imunizante. Também negou participação no TrateCov ―um aplicativo lançado pelo Ministério da Saúde que prescrevia medicamentos como cloroquina de forma indiscriminada―, embora descrevesse em um vídeo o funcionamento da ferramenta antes de seu lançamento. “O senhor é um claro propagador de fake news”, bradou a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA).
Apesar das inúmeras negativas do empresário, a presença de Flavio Bolsonaro para defendê-lo e os vídeos e contrapontos mostrados pela CPI da Pandemia comprovaram a relevância de Hang para a política errática do Governo durante a pandemia. E desvelaram ainda seu papel na disseminação das estratégias e narrativas do Governo para enfrentar a crise sanitária. “Em todas as eras do nosso país, houve a figura do bobo da corte. (...) São úteis para bajular o rei e criar cortinas de fumaça”, resumiu o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), no início da sessão. O excêntrico Hang parece ter servido de animador de torcida, estimulando brasileiros a irem às ruas e se exporem sob a promessa de curas milagrosas para salvar a economia.
O empresário admitiu a senadores ter feito campanhas para arrecadar recursos para comprar e distribuir remédios que, até hoje, não tiveram efeito comprovado contra a covid-19. Não se arrepende de tê-lo feito e segue defendendo o famigerado kit-covid. Embala a defesa na mesma retórica de Bolsonaro, da autonomia do médico, a despeito das graves denúncias que envolvem a operadora Prevent Senior, nas mãos da qual sua mãe faleceu. Questionado sobre sua relação com outros atores que teriam contribuído para sustentar a política errática do presidente, marcou distância. Disse, por exemplo, não ter amizade com o deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do Governo Bolsonaro na Câmara, apesar de admitir ter se reunido com o parlamentar na manhã desta quarta-feira, antes de seu depoimento à comissão. Barros é investigado pela CPI e suspeito de envolvimento na negociação da vacina Covaxin, repleta de indícios de irregularidades. Também negou proximidade com o empresário Carlos Wizard e o ex-ministro Osmar Terra, com quem dividiu uma live que questionava o número de mortes causadas pela covid-19. Agora, Hang nega duvidar dos números.
Fake News
Investigado por financiar disparos ilegais de mensagens na campanha eleitoral de 2018, Luciano Hang confirmou à CPI ter impulsionado conteúdo pró-Bolsonaro nas eleições, como mostrou reportagem do EL PAÍS na época. Disse, porém, que não sabia que aquilo era proibido. “Tiramos do ar e pagamos multa”, afirmou. Questionado pelo relator Renan Calheiros, Hang admitiu ter contas no exterior, mas negou financiar sites de notícias falsas. O presidente Omar Aziz fez questão de ressaltar que a CPI da Pandemia tem indícios de que o empresário usaria estas contas para propagar notícias falsas. Já o senador Rogério Carvalho pediu investigação da polícia legislativa sobre ataques virtuais a membros da comissão no dia do depoimento do empresário.
Depois da sessão, postado ao lado de Flavio Bolsonaro e de outros senadores governistas, Hang deu sequência ao seu ato. Reclamou que os senadores não o deixaram falar, disse que foi tratado como bandido e que sua mãe foi desrespeitada pelos parlamentares. Não faltaram reclamações dos governistas no dia seguinte de uma das sessões mais escabrosas da comissão, que ampliou o abismo da Prevent Senior e revelou seu potencial de tragar o Governo. “Nunca imaginei na minha vida de empreendedor e cidadão passar por esse tribunal de inquisição”, reclamou Hang, deixando bem claro que seu show está longe de parar.
Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.