Promotoras deixam caso Marielle por risco de “interferências externas” nas investigações e preocupam familiares
Simone Sibilio e Letícia Petriz deixaram a força-tarefa após troca de delegado e assinatura de delação da viúva de Adriano da Nóbrega, que chefiava braço da milícia suspeita pelo atentado
Foi como “uma porrada” que a família da vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada junto com seu motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018 no Rio de Janeiro, recebeu a notícia da saída das promotoras que investigavam o caso. Simone Sibilio e Letícia Petriz deixaram a investigação no último sábado, 10 de março, apontando o risco de “interferências externas” na apuração. Elas estavam no caso desde setembro daquele ano e tinham uma relação de proximidade com os familiares das vítimas, com os quais se reuniam ao menos uma vez por mês para esclarecer o andamento do inquérito. “Minha mãe e meu pai estão muito abalados com tudo. Tomamos mais um choque de realidade. Achávamos que as coisas estavam caminhando com as doutoras Simone e Letícia, que são duas pessoas que a gente tinha muita confiança. Foi um soco no estômago”, relata a educadora Anielle Franco, diretora do Instituto Marielle Franco e irmã da vereadora.
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Como coordenadora do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaeco), extinto neste ano pelo MP, Sibilio também foi responsável no ano passado pela Operação Intocáveis, que prendeu dezenas milicianos do Escritório do Crime e jogou luz sobre o modus operandi do grupo. Além disso, as promotoras engajadas no caso Marielle foram responsáveis, em conjunto com a Polícia Civil, de prender os ex-policiais Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, apontados como executores do duplo assassinato, um ano depois do crime.
A saída da dupla ocorre na esteira da queda delegado Moyses Santana, que investigava o crime a partir da Delegacia de Homicídios e que foi trocado, em 5 de julho, pelo delegado Henrique Damasceno —que esteve à frente das investigações da morte do menino Henry Borel. Ele é o quarto delegado a assumir o caso. “São quase quatro anos e muitas trocas. Esse entra e sai não me anima nem um pouco, fico muito apreensiva de ver tantas trocas, independentemente do currículo que cada um traz”, argumenta Anielle. Dias depois foi noticiada a delação premiada de Júlia Lotufo, viúva do ex-PM Adriano da Nóbrega, que comandava o Escritório do Crime, grupo miliciano tido como suspeito pelo assassinato de Marielle e Anderson.
Conforme apurou a TV Globo, elas decidiram deixar o caso por discordarem da forma que estavam sendo conduzidas as negociações para a delação. Lotufo está em prisão domiciliar e mantinha contato com três delegados da Polícia Civil e com a Coordenadoria de Investigação de Agentes com Foro (Ciaf), do Ministério Público. As duas promotoras não participaram dos dois primeiros encontros, apesar das suspeitas envolvendo o Escritório do Crime na morte da vereadora e do motorista, ainda segundo a TV Globo. Em momento posterior elas ouviram o relato de Lotufo e consideraram as informações sobre o caso Marielle superficiais e sem provas. Elas decidiram então não aceitar a delação, que, ainda assim, continuou a ser analisada pelo MP —gerando um desconforto nas duas, que temem interferências nas apurações. “Estamos encarando muito tranquilamente essa delação, tem que esperar o que ela vai falar. É uma pessoa que pode ter coisas a dizer, não sei se sobre o caso Marielle, mas a gente não tem muito o que falar por não saber”, afirma Anielle sobre como a família recebeu a notícia da delação.
Além desse incômodo, existe a suspeita de vazamento de informações sobre o caso, o que coloca em risco o sigilo das investigações, ainda segundo a TV Globo. Isso porque o último ato da dupla de promotoras foi a denúncia do delegado da Polícia Civil Maurício Demétrio, preso no fim de junho por suspeita de comandar esquema que exigia propina de lojistas que vendiam roupas falsificadas. Mas as promotoras também descobriram que Demétrio teria recebido informações sigilosas do caso Marielle, o que também gerou a denúncia por crime de violação de sigilo. Essas mesmas informações estavam no e-mail de um ex-policial civil, suspeito de ligação com a contravenção e também investigado pelo assassinato de Marielle e Anderson. Ele teve o sigilo telemático quebrado durante as investigações. Segundo a denúncia, Demétrio teria então procurado a Delegacia de Homicídios para formalizar o acesso aos dados sigilosos. Em depoimento, Santana, o delegado afastado da DH, afirmou que recebeu Demétrio a pedido do secretário de Polícia Civil, Alan Turnowsky, mas que não forneceu documentos com informações sigilosas.
Ainda há muitos esclarecimentos pendentes sobre a saída das promotoras. Elas se despediram dos familiares das vítimas nesta segunda-feira, mas nenhuma outra autoridade buscou as famílias nem explicou o ocorrido. O Ministério Público do Rio de Janeiro se limitou a dizer ao EL PAÍS em nota que as duas “optaram voluntariamente por não mais atuar na força-tarefa que investiga o caso Marielle Franco e Anderson Gomes” e que “reconhece o empenho e a dedicação das promotoras” durante o andamento do inquérito. O órgão garante que as investigações “não serão prejudicadas” e que em breve anunciará os substitutos.
Em entrevista coletiva sobre a antecipação da segunda dose da vacina da AstraZeneca contra a covid-19, o governador Cláudio Castro afirmou que não iria comentar as queixas das promotoras que deixaram o caso. “Vou repetir o que falo sempre: não me meto em investigação nenhuma. É um perfil meu. Cobro só que elas sejam solucionadas. Se as promotoras tinham alguma coisa com o doutor Allan, temos a Corregedoria da Polícia Civil e o Procuradoria-Geral de Justiça, o doutor [procurador-geral] Luciano Mattos, que poderia vir falar comigo”, afirmou. “Como nenhuma dessas duas ações foram feitas, eu sequer tenho condições de comentar algo que foi dito à imprensa. Acho que elas deveriam ter ido a instâncias formalmente, ou na Corregedoria ou em outro lugar, fazer essa denúncia. Se não fizeram, não me cabe comentar. Isso para mim é ilação, e eu não comento ilação.”
O deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ), próximo de Marielle e de seus familiares, avalia que a saída das duas promotoras “é muito grave porque atrapalha o tribunal do júri” e também por serem pessoas “que conhecem cada pagina de um inquérito muito complexo”. Ele também aponta para a saída do delegado Santana da Delegacia de Homicídios e elenca os motivos de sua preocupação. “É um bom delegado, com uma boa equipe e com uma linha de investigação, próximo à família, com diálogo com as promotoras... As investigações ficam sem pé nem cabeça, não tem delegado nem promotor”, argumenta.
Freixo nega que esteja questionando a qualidade do delegado Damasceno, que acaba de assumir a DH, ou dos promotores que assumirão o caso Marielle. “Mas é uma ruptura sem nenhuma explicação concreta e que acontece no mesmo momento que se faz um processo de delação premiada da viúva do capitão Adriano. Então, é tudo muito nebuloso, sem nenhum esclarecimento, sem que o governador ou o chefe da polícia viessem a público explicar o que está acontecendo”, explica.
Por sua vez, Anielle afirma que “temos que acreditar nas instituições que estão aí”. E completa: “Mas com todas as peculiaridades que tem o caso Marielle, a gente sabe que tem alguém muito poderoso por trás e que não quer que esse caso seja desvendado.”
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