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Rio extingue órgão que apura má conduta de PMs e fragiliza ainda mais controle de violência policial

Fim do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública choca promotores que já tinham dificuldade em apurar crimes muitas vezes ocultos em registros como morte por troca de tiros. Argumento já foi usado até em caso de assassinato de criança de 2 anos

Protesto em 2019 de moradores do Complexo do Alemão contra a morte da menina Ágatha Félix, 8 anos, durante uma operação policial.
Protesto em 2019 de moradores do Complexo do Alemão contra a morte da menina Ágatha Félix, 8 anos, durante uma operação policial.PILAR OLIVARES (REUTERS)

Maicon tinha dois anos quando foi morto por policiais militares. Era 15 de abril de 1996 e ele brincava na porta de casa, em Acari, Zona Norte do Rio de Janeiro, quando levou um tiro no rosto. O crime foi registrado como “auto de resistência” - termo usado por policiais que alegam estar se defendendo ao matar alguém. “Mas como um menino de 2 anos troca tiros com a polícia?”, pergunta, com toda a razão, José Luiz Faria da Silva, pai de Maicon.

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Como faz todos os anos, José Luiz protestou, mais uma vez, contra a injustiça. Anos atrás o caso foi arquivado e ninguém foi punido. Ele questiona: “O Ministério Público tem o poder de investigação, mas eles não fizeram nada até hoje. Então o que significa o MP? Se eles não fazem o trabalho deles? Eu acho que o maior responsável pelas mortes não apuradas é o Ministério Público”.

Uma das funções do Ministério Público é o controle externo da atividade policial. Mas na realidade apenas uma parcela irrisória de crimes cometidos por PMs é investigada e vira denúncia. E isso pode piorar. O Ministério Público do Rio de Janeiro extinguiu no último dia 10 o GAESP, o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública. O grupo tinha entre suas funções “atuar na área da segurança pública em sentido amplo, tanto no que tange à formulação e à execução das políticas públicas a ela relacionadas quanto no que toca ao controle externo da atividade policial”. O GAESP foi criado em 2015 e tinha em sua estrutura um coordenador, um subcoordenador e um assistente exclusivos, mais 12 promotores auxiliares ―sem contar os quatro assessores, três secretários, estagiários, perito legista pela Polícia Civil etc.

“É um verdadeiro absurdo e retrocesso”, diz um promotor, que prefere não se identificar por medo de retaliações. “É impossível um promotor de PIP - Promotorias de Investigação Penal -, que tem em média 1.000 inquéritos por mês, parar para investigar mortes praticadas por policiais”, frisou. Ele se refere à criação da Coordenadoria-Geral de Segurança Pública, alardeada na imprensa como se fosse um órgão que substituiria o trabalho do GAESP, mas que, na verdade, não tem esta função. A resolução nº 2.409, de 12 de abril de 2021, diz que “é vedado à Coordenadoria-Geral de Segurança Pública o exercício de qualquer atividade de órgão de execução”.

O EL PAÍS perguntou ao MP se, com a extinção do GAESP, a Coordenadoria-Geral de Segurança Pública faria o trabalho anteriormente feito pelos promotores do grupo. A assessoria do órgão respondeu que a coordenadoria não foi criada para substituir a antiga estrutura, “mas para aprimorar a atuação da instituição no controle externo da atividade policial e contribuir com as políticas públicas na área”. “A Coordenadoria-Geral de Segurança Pública terá um trabalho de planejamento, apoio à formulação de novas estratégias institucionais, integração e suporte necessário às atividades dos promotores naturais da área”, diz o texto.

Antes, quando um caso complexo como autos de resistência, chegavam às mãos de um promotor, ele poderia enviar para o GAESP, que tinha um grupo estruturado para trabalhar o caso. “Acaba sendo difícil parar tudo para dar prioridade a isso. Os casos de roubo, tráfico, associação, vem bonitinho pra denunciar”, explica uma promotora que preferiu ficar no anonimato. “Fiquei numa Pip e sei que você não consegue investigar. A delegacia não ouve os parentes da vítima, ou ouve de uma forma ruim, com depoimento enviesado. Muitas vezes a vítima tem medo de ir a delegacia depor. Aí não tem como. Tem que refazer tudo”, diz ela, relatando que um promotor de Pip trabalha com o inquérito que vem pronto da delegacia. “O dia a dia da Pip tem milhares de inquéritos de roubo, tráfico, etc. E a investigação de morte por policial não pode ser assim. Precisa de uma atuação dedicada do promotor. Não tem como fazer isso no dia a dia.”

Apesar de ter o trabalho ainda limitado, principalmente diante do volume de trabalho, é uma conta básica: vários promotores processam mais volume de trabalho do que um promotor sozinho. O fim do GAESP significa o fim da prioridade da investigação da má conduta policial ―que já não era tanta. “Entre nós? Isso nunca foi prioridade do MP, mas, simbolicamente, o fim do GAESP representa o enfraquecimento do controle externo da atividade policial, uma função constitucional”, diz um juiz que preferiu o anonimato. Para ele, esse órgão especial foi criado para dizer que iriam fazer alguma coisa nessa área, mas na prática, pouco foi feito. E de fato.

Uma análise dos custos da violência policial no Rio de Janeiro, feito pela organização internacional HRW, mostrou que um quinto de todos os homicídios registrados na capital fluminense em 2015 foi cometido por policiais. Três quartos dos mortos eram negros. Na época, o MP-RJ apresentou denúncia de apenas quatro – ou 0,1% – dos 3.441 casos de homicídios cometidos pela polícia que foram registrados entre 2010 e 2015. A HRW disse, em nota, que o MP enfraquece o controle da polícia e pede que o Grupo seja restabelecido ou outra equipe montada.

“Particularmente, acho o MP fiscalizando as polícias traz uma mudança estrutural. Ele conseguiria determinar a melhora nas corregedorias, sob pena dos chefes responderem”, pontua o major da reserva Luiz Alexandre, ex-chefe de uma unidade da Corregedoria (delegacia de polícia judiciária militar) e mestre em Direito. Para ele, o Gaesp apura crimes famosos a conta gotas, “não muda nada na estrutura e consome muitos recursos” e que o ideal seria o grupo pressionar que as corregedorias funcionem melhor.

Letalidade policial nas favelas

Isso tudo acontece em meio à Audiência Pública sobre letalidade policial no Rio de Janeiro, que começou nesta sexta, 16, e termina na segunda-feira (19). Convocada pelo Supremo Tribunal Federal, a audiência acontece no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF 635. Mais conhecida como ADPF das Favelas, a arguição entrou em vigor depois da operação policial desastrosa feita pelas Polícias Civil e Federal em São Gonçalo, onde mataram o adolescente João Pedro, em casa, maio de 2020. Também levou em consideração os tiroteios que aconteceram em meio à distribuição de cestas básicas em favelas do Rio e que deixaram 5 mortos e 2 feridos, de acordo com dados do Instituto Fogo Cruzado.

O pai de Maicon foi um dos primeiros a se apresentar na Audiência Pública na sexta às 08h30. “Como os senhores se sentiriam com um filho de dois anos em um auto de resistência? Como os senhores viveriam com essa penumbra de que seu filho foi morto trocando tiros aos dois anos de idade, quando estava brincando?”. Na tela da sessão online havia uma foto do menino e os autos do processo. A ideia do Supremo é coletar “informações que vão subsidiar o Estado do Rio de Janeiro na elaboração do plano de redução da letalidade policial”. Mas com o MP enfraquecendo os mecanismos de controle da má conduta policial, isso não será possível.

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