“Era complicado ficar mal sabendo que tinha tudo em casa”, as dores e culpas colaterais da pandemia
Mesmo os não diretamente atingidos pela covid-19 sofrem suas consequências, que vão desde transtornos da vida prática a estresse e sentimentos negativos associados às condições impostas pela crise sanitária. Psicóloga diz que é importante não comparar perdas
Ansiedade, crises de choro, sensação de egoísmo por estar sofrendo com o distanciamento social. Isto é o que sentiu Tuanny Guerra Pires, de 30 anos. A brasileira que trabalha em uma empresa de telemarketing em Portugal sofreu com as medidas de restrição impostas no país. Apesar de residir com outras pessoas, passou um dos meses do lockdown totalmente sozinha e relata ter tido crises de choro e um início de depressão. Diz ter se sentido injusta por estar sofrendo: “Era complicado ficar mal, sabendo que você tem tudo em casa. Eu tinha comida, internet, aquecimento e sabia que não iria faltar. Não consigo imaginar a agonia que deve ser a situação de alguém sem emprego.”
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Para Aparecido Rodrigues de Souza, de 56 anos, a pandemia trouxe o sentimento frustração. Frustração porque a cirurgia que promete possibilitar seu retorno ao trabalho já foi adiada três vezes desde o início da crise sanitária. Considerada um procedimento eletivo pelo SUS, até o momento a operação não tem nova data para ocorrer. Afastado desde 2018 de suas atividades como ajudante de motorista, Aparecido, ou Cido, como é chamado pelos conhecidos em Palotina, no interior do Paraná, sofre de uma lesão na coluna que o impede de ficar muito tempo em pé ou até mesmo sentado. À ansiedade com relação a seu sustento e de sua família —está sem receber salários e também o auxílio-doença pelo INSS— se somam os adiamentos da cirurgia que Cido precisa fazer para que possa voltar a trabalhar e ter qualidade de vida. “A sensação que dá na gente é da total falta de controle diante do futuro. Já sei qual a solução para essas dores que sinto e para que eu possa voltar a trabalhar, mas não consigo sair dessa situação. É algo que nem eu nem ninguém pode controlar. É frustrante demais”, desabafa.
Vivendo nos Estados Unidos há dois anos, Lívia achou que a crise do coronavírus implicaria grandes desafios financeiros. O restaurante em que trabalhava como recepcionista fechou em decorrência das medidas de isolamento social e o contrato da brasileira foi suspenso. No entanto, o aparecimento de um tumor próximo à sua coluna vertebral acarretou um drástico agravamento em suas perspectivas. Sozinha, em um país estrangeiro, Lívia se submeteu a algumas cirurgias e inúmeras sessões de quimioterapia e radioterapia. Sua mãe, Salette, vive no interior do Paraná e não conseguiu viajar para a acompanhar a filha em um momento tão delicado. A resposta dada pelo consulado americano era de que a entrada de brasileiros não residentes nos Estados Unidos só estava permitida em caso de morte de familiar. Tentou então conseguir uma autorização através da embaixada francesa, nacionalidade de seu marido, mas as tentativas foram infrutíferas. “Era desesperador pensar que minha filha estava enfrentado uma doença e um tratamento tão agressivos sozinha, em outro país e eu não podia fazer nada, nem estar ao lado dela. Acompanhar tudo de longe, impedida por questões burocráticas foi muito desafiador”, conta Salette.
Tuanny, Cido, Lívia e Salette tiveram suas vidas afetadas pelo coronavírus mesmo sem se contagiar ou perder um ente querido para a doença. Sofrem com os duros efeitos colaterais da pandemia: falta de controle e previsão sobre planos futuros, restrições de locomoção, perda da fonte de sustento, solidão e muitas outras inquietações que atingem a população como um todo. Inquietações que, se não observadas e controladas, podem se agravar e se converterem em transtornos psiquiátricos.
Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) indica que 47,9% dos médicos psiquiatras perceberam um aumento em seus atendimentos após a pandemia e 89,2% dos profissionais entrevistados destacaram o agravamento dos quadros psiquiátricos em seus pacientes devido à crise sanitária. Além disso, o levantamento Covid Comportamentos, realizado pela Fiocruz em parceria com a Universidade de Campinas (Unicamp) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), aponta que 29,4% dos entrevistados notaram uma piora em seu quadro de saúde e problemas mentais. Dificuldades com o sono, sentimentos de tristeza frequentes e depressão foram fatores associados à esta piora.
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Clique aquiO psiquiatra Thiago Henrique Roza explica que após o início da pandemia transtornos como ansiedade generalizada, depressão, ideação ao suicídio e estresse pós-traumático passaram a ser observados com mais frequência. O médico explica as alterações bruscas na rotina, com o isolamento social, a imprevisibilidade sobre o futuro, a crise econômica e, é claro, a questão sanitária, são fatores agravantes para as pessoas que possuem propensão à desenvolver um quadro de transtorno psiquiátrico.
É o que disse também o médico e escritor Drauzio Varella em entrevista ao EL PAÍS. O médico aponta que com a pandemia, dois transtornos psiquiátricos, a ansiedade e a depressão, aumentaram. “Os centros de atendimento psicossocial tratam apenas as grandes psicoses. Não há psicoterapia para quem está deprimido ou em uma crise de ansiedade. E se você não trata os transtornos no início, eles pioram. Precisarão de atendimento psiquiátrico, medicamentos, tratamentos longos”, disse à Naiara Galarraga Gortázar.
Fato é que após um ano de pandemia, as pessoas tem sentido as complicações de estar em casa. Se na primeira onda os problemas evocavam novas sensações e sofrimentos, mas com a ideia de que era apenas uma questão de tempo para que a vida voltasse ao normal, agora há uma sensação de cansaço generalizado. Além disso, muitos que não tiveram perdas de entes queridos ou consequências na saúde pela covid-19 se sentem egoístas e culpados por estarem sofrendo com a crise sanitária.
Este “egoísmo” ou “culpa” são, segundo a psicóloga Jackeline Zanardine Corrêa, formas inadequadas de encarar a mistura de emoções e sensações vivenciadas pela pandemia. Corrêa enfatiza que não é possível fazer uma gradação de sofrimentos, não existindo, portanto, sofrimento maior ou menor, já que eles são individuais. “Vivemos em uma sociedade de comparações. Usamos o outro como referência para validar ou invalidar o que sentimos e, por isso, muitas pessoas não se acham no direito de sofrer. Não podemos cair nesta armadilha. Nós é quem construirmos os significados dos nossos sofrimentos e todos eles importam. Não devemos esperar que algo extraordinário ou uma catástrofe aconteça para buscarmos ajuda”, diz a psicóloga.
A pesquisa Covid Comportamentos também aponta que hábitos não saudáveis foram agravados durante a pandemia. Entre os fumantes 23% relataram um aumento de cerca de 10 cigarros ao dia e 5% aumentou o consumo em mais de 20 cigarros diários. Além disso, a população aumentou em 18% o consumo de bebidas alcoólicas e 22% diz usar tablets ou computadores por mais de nove horas diárias. Enquanto isso, o percentual dos que realizavam atividades físicas semanais caiu de 30,4% para 12,6%.
Em não sendo possível manter uma vida social ativa, muitas pessoas têm se voltado para o uso intensivo das redes sociais, aos jogos eletrônicos e à pornografia, utilização cujos resultados serão observados no médio e longo prazo. A intensificação do uso da internet é, segundo o psiquiatra Thiago Henrique Roza, um fator que pode gerar ou agravar transtornos psicológicos. O médico explica que a vida online aumenta a procrastinação, a dificuldade de lidar com as demandas e, consequentemente, reduz a capacidade de lidar com a ansiedade.
A psicóloga Corrêa afirma que o incremento dos hábitos danosos na população é uma consequência direta da crise sanitária. “A pandemia nos trouxe um alto grau de imprevisibilidade e nosso cérebro tem muita dificuldade de lidar com isso, o que gera ansiedade. Assim, buscamos coisas que nos trazem satisfação imediata como a comida, os vícios, as redes sociais e outros mecanismos que nos dão doses imediatas de controle e bem-estar, mas não trazem satisfação a longo prazo, gerando um círculo vicioso de dependência e culpa”, afirma.
Para controlar os efeitos adversos da pandemia na saúde mental, tanto Roza quanto Corrêa recomendam uma série de medidas classificadas como “de estilo de vida”. Buscar ajuda terapêutica, manter uma rotina estruturada, com horários regulares; evitar a procrastinação; realizar atividades físicas; ter uma alimentação adequada; diminuir o tempo na internet; filtrar as fake news; e desenvolver a espiritualidade. Atitudes simples e que têm um impacto extremamente benéfico em termos de saúde mental.
Nem sempre as pessoas têm ajuda para implementar esse tipo de medidas. Felizmente, não foi o caso de Tuanny, a brasileira radicada em Portugal que sofreu com o confinamento. A empresa onde a jovem trabalha notou que seu comportamento estava diferente nos meses de distanciamento social estrito. Sugeriu que ela entrasse em contato com as psicólogas da empresa através de uma linha telefônica criada especialmente para aqueles que precisassem pudessem desabafar. Além disso, a brasileira começou a fazer caminhadas, o que, segundo ela, foram essenciais para a sua recuperação.
No EUA, após inúmeras sessões de quimio e radioterapia, Lívia está terminando seu tratamento. Ainda não reencontrou sua mãe. Espera poder fazer isso assim que receber a alta hospitalar e as fronteiras forem reabertas. Já o paranaense Cido segue aguardando sua cirurgia. Na última semana foi informado de um novo cancelamento de sua perícia no INSS, que garante que ele receba o auxílio a que tem direito. A consulta com o médico da instituição foi reagendada para a segunda quinzena de abril. Até lá, continua sem receber salários ou o benefício previdenciário que lhe é devido. Enquanto isso, alivia suas dores deitado no chão de casa, com as pernas erguidas.
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