Os estragos invisíveis da pandemia para as mães solo

No Brasil, quase 8,5 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho desde a irrupção da covid-19. Para quem cria seus filhos sozinha, os retrocessos foram ainda mais profundos

Carlla Bianca Souza, de 21 anos, amamenta sua filha Ísis, 3, em sua casa em São Luis (Maranhão).Ingrid Barros
María Magdalena Arrellaga e Patricia Monteiro
Río de Janeiro e São Paulo -

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Em 2020, as latino-americanas sofreram um retrocesso histórico em termos financeiros e profissionais por causa da pandemia global da covid-19. No Brasil, o oitavo país mais desigual do mundo, os impactos foram ainda profundos: quase 8,5 milhões de mulheres saíram do mercado de trabalho no terceiro trimestre, e sua participação caiu a 45,8%, o nível mais baixo em três décadas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dentro desse universo feminino, as mães solo, que somam mais de 11,5 milhões no Brasil, passaram não somente a enfrentar mais riscos e dificuldades financeiras em decorrência da pandemia como também sofrem uma sobrecarga mental e um maior acúmulo de tarefas devido ao fechamento de escolas e creches.

Natália Cardoso, de 20 anos, moradora de Osasco, na Grande São Paulo, e Carlla Bianca Souza, de 21, residente em São Luís (MA), são dois exemplos de mães solteiras que não receberam nenhuma ajuda do Governo durante a pandemia. Cardoso teve que deixar seu emprego depois de esgotar sua licença-maternidade, pois sua jornada de trabalho impedia que sua mãe, que vive na casa ao lado, pudesse dividir com ela os cuidados com sua filha. O único trabalho que conseguiu depois de ser demitida foi um emprego temporário na campanha de um candidato a vereador, em novembro. Além de contar com a ajuda de sua mãe, que também sustenta outra filha de 16 anos, Cardoso recebeu uma cesta básica de uma rede de produtores orgânicos que, durante a pandemia, tem feito doações quinzenais às mães solteiras de Osasco.

Souza, por sua vez, vive com os pais e, além de cuidar da sua filha Ísis, de 3 anos, também ajuda a criar duas irmãs mais novas enquanto completa seus estudos da faculdade de Direito. Além disso, administra uma loja de roupas pela internet. “Tive crise de ansiedade e depressão, porque você se sente muito pressionada, muito exausta e ainda tem que fazer as suas coisas. Durante a pandemia me senti muito sufocada”, diz ela.

Em abril do ano passado, o Governo federal aprovou uma renda mínima emergencial de 600 reais ao mês para trabalhadores autônomos e desempregados durante a pandemia, sendo o dobro desse valor no caso das mães solteiras, mas milhares de mulheres tiveram suas solicitações rejeitadas. Já em 2021, e após diversos alertas sobre o agravamento das dificuldades financeiras com o fim do auxílio emergencial, o Congresso aprovou uma nova leva de pagamentos, reduzidos, que ainda depende da publicação de uma medida provisória por parte do poder Executivo para definir regras, prazos e valores, que serão de 150 a 375 reais por mês.

Segundo dados recentes de um relatório das ONGs Gênero e Número e da Sempreviva Organização Feminista (SOF), 50% das brasileiras passaram a cuidar de outra pessoa durante a pandemia. Quase 40% das entrevistadas na pesquisa afirmaram que o isolamento social pôs em risco o sustento de seu lar; dessas mulheres, 55% eram negras, geralmente as mais afetadas.

Sofia Benjamin, de 30 anos, estilista de moda e artista independente, vive com sua filha, Céu, de 4, no Rio de Janeiro, cidade que é um dos epicentros da pandemia no Brasil. De um dia para o outro, as duas se viram completamente trancadas em seu apartamento. Como autônoma, seus trabalhos diminuíram e, para poder contar com o apoio da sua mãe, parte do grupo de risco e sua única rede de apoio, as duas passaram oito meses sem contato com o mundo externo.

“Enquanto os adultos fingem que nada está acontecendo e seguem a vida, como está a saúde mental das crianças e, consequentemente, dos seus cuidadores durante esta pandemia?”, questionava Benjamim em dezembro, quando milhares de brasileiros deixaram o isolamento social para comemorar as festas de fim de ano. O país já soma mais de 282.000 mortos pelo coronavírus, e os números continuam aumentando diariamente. A maioria das escolas públicas e privadas já retomou as aulas presenciais desde o início de fevereiro, mas muitas de maneira não obrigatória e com rodízio de alunos presenciais a cada semana.

No Brasil há mais de 11 milhões de mulheres que são mães solteiras e, por mais que suas realidades sejam diversas e atravessadas por diferentes questões regionais e de classe, assemelham-se em alguns aspectos. Em Salvador, Isis Abena, de 35 anos, e sua filha Ainá, de 3, também viviam em um apartamento pequeno que durante a pandemia pareceu se tornar ainda menor, afetando o estado emocional e mental das duas durante os períodos de confinamento.

Isis Abena, de 35 anos, e sua filha Ainá, de 2, no pátio com seus vizinhos em Salvador.Shai Andrade

Em meio à quarentena, decidiram se mudar para uma casa de vila, onde, junto com outras famílias que já moravam lá, puderam se aquilombar. Quilombos são comunidades tradicionais de afrodescendentes onde convivem em grupo e em contato com a ancestralidade como um ato de resistência. “Continuamos, eu e ela [Ainá], na construção e busca de uma comunidade que nos acolha nesta diáspora para minimizar as sequelas do colonialismo e a fragmentação das famílias negras,” diz Abena. Para ela e sua filha, conviver com outras famílias foi um processo de transformação e cura.

Verônica da Costa, de 31 anos e também carioca, passa por angústias semelhantes com seu filho Théo, de 6. “Não é poético manter uma criança viva sozinha nesta cidade. A rede, que já era pequena, se esgota ainda mais neste tempo de ‘salve-se quem puder’. Cozinhar, arrumar, lavar, trabalhar, brincar, respirar... Pouco tempo para ser eu mesma”, queixa-se ela, que também é autônoma e passou a trabalhar de casa, fazendo produtos naturais como sabões e kits de autocuidado à base de plantas medicinais. Durante a pandemia, formou um grupo com duas outras mães solteiras, também artistas independentes, para se apoiarem e procurarem juntas esse tempo e espaço que, para elas, tornou-se tão escasso.

Transcorrido um ano da irrupção da pandemia e do início da quarentena, a situação no Brasil continua grave. Com o aumento do número de casos em todo o país e o lento avanço da vacinação, cidades e Estados voltaram a recuar na flexibilização dos confinamentos e os planos de reabertura, fechando de novo os comércios e serviços que já tinham aberto ao público. Para a maioria das mães, especialmente para as que são as únicas encarregadas do lar, as dificuldades relativas ao cuidado e a sobrecarga de tarefas persistem, aprofundadas pela crise, sem atenção nem solução. “A verdade é que enquanto os homens não sentirem os impactos de terem as crianças em casa, [o bem-estar das mães e filhos] não será uma prioridade para o Governo. Não é que estejam fazendo políticas ruins, (...) é que não estão fazendo. Não pensam nisso”, reflete Benjamin.

Todas as histórias documentadas no projeto Solo, realizado com apoio do Fundo de Emergência para a Covid-19 da National Geographic Society, podem ser vistas no site e nas redes sociais do projeto.

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