Escalada de violência política nas eleições municipais já soma 82 candidatos ou militantes assassinados
Disputa de votos por milicianos acirra barbárie durante a campanha. Nesta segunda, houve mais um ataque durante uma live na internet
Dois candidatos e três cabos eleitorais mortos, um vereador baleado, quatro crimes com motivações políticas no intervalo de um mês. Este é apenas o saldo recente da escalada de violência política na região metropolitana do Rio de Janeiro durante a eleição. No começo de outubro, Mauro Miranda, candidato a vereador de Nova Iguaçu pelo PTC, foi executado numa padaria. Dez dias depois, na mesma cidade, o candidato do DEM, Domingos Rocha Cabral, conhecido como Domingão, acabou assassinado na porta de um bar. No fim do mês, foi a vez de Renata Castro, militante de um candidato a vereador de Magé ser morta com 14 tiros ao sair de casa. Na última terça-feira, um dos 15 disparos efetuados em direção ao carro do vereador carioca Zico Bacana (Podemos) o acertou de raspão na cabeça. E o Rio de Janeiro está longe de ser uma exceção.
Nesta segunda-feira, Ricardo de Moura (PL), candidato a vereador em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, sofreu ataque enquanto conversava com eleitores em uma live. A transmissão captou o exato momento em que ele é alvejado por dois tiros, que atingiram, segundo a polícia, o braço e a perna direita do candidato. Moura sobreviveu ao que sua companheira de chapa, Adriana Afonso, candidata a prefeita, qualificou como “um atentado”. O autor dos disparos ainda não foi identificado. No último fim de semana, pelo menos seis ocorrências de agressões ou tentativas de homicídio contra candidatos foram registradas em todo o país, de acordo com o monitoramento do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
Já nesta quarta-feira a candidata do PSDB à Prefeitura de São Vicente (no litoral de São Paulo), Solange Freitas, teve o carro alvejado por rajadas de tiros. Ela estava acompanhada de assessores, mas ninguém se feriu pois o carro era blindado. Os autores da tentativa de homicídio ainda não foram identificados. Solange é uma conhecida jornalista brasileira, tendo atuado por 30 anos como repórter no litoral paulista, sendo 15 deles na afiliada da TV Globo em Santos.
Os episódios em sequência são um retrato da violência política que continua assolando as eleições municipais no Brasil. Somente este ano, 82 militantes e candidatos foram assassinados, indica o levantamento do pesquisador Pablo Nunes, que coordena o CESeC. Além das mortes, o estudo ainda mapeou 170 agressões de janeiro a outubro. “Não deixa de ser dramático o grau de violência contra pessoas que são mortas por defender suas bandeiras. A proximidade das eleições fez com que o número de casos aumentasse desde julho, mas os primeiros meses de 2020 já tinha sido muito violentos”, afirma o cientista político. Em 2016, segundo reportagem do jornal O Estado de S.Paulo, foram 100 mortos ao longo de todo o ano eleitoral.
Primeiro homicídio registrado no monitoramento, a execução do prefeito João Schwambach (MDB), em 9 de janeiro, chocou a população de Imbuia, no interior de Santa Catarina. Ele foi morto com dois tiros nas imediações da Prefeitura. Os disparos saíram da arma do motorista José Cardoso, que teria se suicidado depois do crime. A polícia encerrou as investigações sem desvendar o que motivou o assassinato. Até o momento, o mês com maior registro de violência política foi setembro, que marcou o início da campanha eleitoral, com 13 homicídios catalogados.
Segundo estado com mais mortes (oito), o Rio de Janeiro experimenta um acirramento das disputas eleitorais em áreas controladas por milícias, especialmente na Baixada Fluminense, onde nove políticos foram assassinados em 2016, ano da última eleição municipal. Nos casos recentes, a polícia investiga possíveis relações das vítimas com grupos paramilitares. Domingão, do DEM, havia sido preso em julho, ao lado do irmão, que é policial militar, por suspeita de chefiar uma milícia de Nova Iguaçu. Já Mauro Miranda tinha em sua ficha uma condenação por porte ilegal de arma. Por causa dos assassinatos na cidade, a Polícia Civil criou uma força-tarefa para combater o crime organizado na Baixada. “A ideia é asfixiar a milícia e permitir uma eleição limpa, com candidatos circulando e o povo votando livremente”, explicou o secretário Allan Turnowski.
Na primeira operação da força-tarefa, em meados de outubro, 12 suspeitos de integrar milícias foram mortos. Os trabalhos são coordenados pelo delegado Giniton Lages, responsável por prender os supostos executores da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes. Mais de dois anos depois do crime, as autoridades ainda não conseguiram identificar os mandantes. A mobilização da polícia não foi capaz de impedir o assassinato de Renata Castro, cabo eleitoral ligada a um tradicional clã político da cidade, a família Cozzolino (PP), e que fazia campanha para o policial Pablo Vasconcelos (PSL), candidato a vereador. Na mesma semana em que foi executada, ela havia denunciado nas redes sociais e à Polícia Federal que estaria sendo ameaçada pelos vereadores Clevinho Vidal (PCdoB) e Felipe da Gráfica (PTB) —eles negam as ameaças. Em agosto, a pré-candidata a vereadora Tia Sandra (PSB) já tinha sido morta por traficantes no município.
“A política está contaminada pela violência e pelo crime organizado, como é o caso do Rio de Janeiro, com o fenômeno das milícias”, observa Renato Sérgio de Lima, diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que vê a necessidade de regulamentação das candidaturas de policiais e agentes das forças de segurança, em maior proporção nos partidos de direita. “É legítimo que policiais se candidatem e tentem representar a categoria. O ponto de tensão é a parcela corrupta que quer se apropriar do Estado por interesses criminosos. Quando não se regulamenta o direito do policial ser candidato, cria-se um ambiente tóxico em que o interesse de representar uma categoria e o comportamento miliciano acabam se misturando.”
Laços de família e de milícia
No começo deste mês, o vereador Zico Bacana (Podemos) sobreviveu a um atentado a tiros que matou dois de seus apoiadores e o feriu de raspão na cabeça durante evento de campanha na zona oeste do Rio. Em 2008, ele foi citado pela CPI das Milícias como chefe de uma facção paramilitar na região. O ex-policial sempre negou as acusações e não chegou a ser indiciado. Após resistir ao ataque, o parlamentar se pronunciou dizendo ter sido vítima de uma “covarde tentativa de homicídio”, mas está disposto a retomar a campanha pela eleição assim que se recuperar do ferimento. “Querem parar a democracia e meu trabalho como representante do povo, mas não vão conseguir. Em breve estarei de volta às ruas”, afirmou em vídeo divulgado por seu comitê de campanha.
Já no dia seguinte, outro atentado contra candidato a vereador, dessa vez na zona norte. Simone Sartório (Patriota) sofreu uma emboscada e seu carro foi atingido por um tiro, mas ela não se feriu. Em Paraty, o postulante ao Legislativo da cidade pelo PT, Valmir Tenório, não teve a mesma sorte de Bacana e Sartório. Foi assassinado na tarde da quarta-feira passada. A polícia apura o suposto envolvimento dos três suspeitos com o tráfico de drogas. “A violência nas eleições municipais é um problema que ameaça a democracia em todo o país e agora atinge, mais uma vez, Paraty”, manifestou em nota a coligação Trabalhando o Futuro, encabeçada pelo PT, que cobrou apuração rigorosa sobre o assassinato e reforço no policiamento até a eleição.
Em Minas Gerais, empatado com o Rio de Janeiro na segunda colocação entre os estados com mais homicídios de políticos em 2020, a execução à luz do dia do candidato a vereador Cássio Remis (PSDB), em Patrocínio, no Alto Paranaíba, ganhou repercussão nacional por também ter sido registrada ao vivo em uma live transmitida pela própria vítima. O autor dos cinco disparos foi o ex-secretário de Obras, Jorge Marra, irmão do atual prefeito da cidade. Ele está preso desde o fim de setembro e acabou indiciado por homicídio, porte ilegal de arma e roubo, devido à subtração do celular de Remis. A Polícia Civil, porém, descartou o enquadramento do caso como crime político. “Apesar de alguns políticos terem tentado nos influenciar [durante as investigações], nossa atuação é independente”, disse o delegado regional Valter André.
Pernambuco, por sua vez, é o recordista de assassinatos vinculados à política. Foram 13 mortes desde janeiro. Gameleira, com 30.000 habitantes, por exemplo, teve dois de seus 11 vereadores executados. A motivação dos crimes ainda está em investigação. “É um estado que há muito tempo figura como um dos lugares onde há mais atentados contra políticos. Nas cidades do interior, rivalidades políticas passam de pai pra filho, e a violência se reproduz de geração para geração”, diz Pablo Nunes. Em Itambé, na divisa com a Paraíba, apelidada de “Fronteira do Medo”, o empresário Adson Mattos foi assassinado por denunciar e criticar políticos da região em agosto, uma década depois da execução de seu primo Manoel Mattos (PT), que era vereador e ativista dos direitos humanos.
Para Renato Sérgio de Lima, a atmosfera bélica de divisão no cenário político nacional lembra os conflitos recentes às vésperas da eleição americana e favorece o embrutecimento dos embates regionais. “O Brasil sempre teve histórico de resolver de forma violenta suas contendas eleitorais. Logo, a violência política não é uma novidade”, afirma o pesquisador. “Atualmente, estamos mimetizando o que acontece nos Estados Unidos. Uma polarização tão grande da sociedade que faz as pessoas se sentirem liberadas para eliminar o inimigo. A banalização do discurso de ódio autoriza que a política continue fazendo suas vítimas.”
Matéria originalmente publicada em 9 de novembro, atualizada em 11 de novembro com novas informações.