‘Vaza Jato’, a investigação que obrigou a imprensa brasileira a se olhar no espelho
Livro retrata os bastidores das revelações do ‘The Intercept Brasil’ que mudaram a forma como os veículos de comunicação cobriam a Operação Lava Jato
O site The Intercept Brasil escolheu o começo da noite de um domingo, 9 de junho de 2019, para divulgar os primeiros textos da série As mensagens secretas da Lava Jato, que abriram as investigações conhecidas como Vaza Jato. Na redação do EL PAÍS, a bomba lançada pelo portal foi tão grande a ponto de interromper o fechamento ―aquela hora do dia agitada em que se retocam os últimos textos para entrar na página. Marina Novaes, editora-adjunta do jornal, e essa repórter que vos escreve, plantonistas daquele final de semana, ficamos atônitas com a falta de “decoro” da estratégia. Por que domingo, colegas? Afinal, as reportagens faziam acusações muito sérias contra a força-tarefa da Operação Lava Jato e o ex-juiz Sergio Moro, na época, já ministro da Justiça do Governo Bolsonaro. Moro aparecia em conversas com os procuradores que acusavam Luiz Inácio Lula da Silva, o que já era suficiente para que a imprensa brasileira tivesse que repercutir o caso. Foi preciso que Carla Jiménez, diretora do jornal, fizesse parte do reforço de edição para vencer o dia. Saímos do plantão com uma certeza: queríamos fazer parte das investigações com base nos vazamentos obtidos pelo site, o que efetivamente aconteceria semanas depois.
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O que nós não sabíamos, é que o colegas do Intercept não haviam planejado lançar a série num domingo. Um dia antes, Glenn Greenwald, fundador do The Intercept, o jornalista que recebeu de um hacker os arquivos com as trocas de mensagens no Telegram de procuradores, alertou Leandro Demori, editor-executivo do site, sobre um problema: a fonte insistia em saber a data de publicação da primeira reportagem por estar interessado em investir na bolsa de valores, e capitalizar com o impacto da divulgação das mensagens. A solução seria publicar quando todas as bolsas estivessem fechadas. “A decisão de lançar a série no domingo resolvia o problema com a fonte, mas criava outro: as matérias ainda estavam em fases de ajustes. Terminá-las a tempo significaria uma guerra contra o relógio”, conta a jornalista Letícia Duarte no livro Vaza Jato ― os bastidores das reportagens que sacudiram o Brasil (Mórula Editorial, 2020), realizado em parceria com a redação do Intercept e lançado nesta semana ― e você pode ler aqui um capítulo da obra.
Letícia Duarte, que não faz parte da equipe do site, foi encarregada de fazer a grande reportagem que abre o livro e responsável por descortinar uma face pouco divulgada das grandes coberturas jornalísticas no país: os bastidores. Desde os contatos iniciais da fonte, que dizia ter invadido celulares de procuradores da Lava Jato, até as crises e os desdobramentos que marcaram a cobertura. No texto sabemos que o contato enviou prints de conversas aleatórias logo no início, incluindo documentos da operação que pediu a prisão de Michel Temer ―o que geraria, no futuro, uma das investigações que o EL PAÍS faria como parceiro da Vaza Jato, tendo como resultado a reportagem Às vésperas do afastamento de Dilma, Lava Jato rejeitou delação que prenderia Temer em 2019, dos repórteres Marina Rossi, Daniel Haidar e eu, juntamente com a editora do Intercept, Paula Bianchi.
Letícia Duarte é egressa do jornal Zero Hora, onde trabalhou por 13 anos, e mestre em Política e Assuntos Internacionais pela Universidade de Columbia, em Nova York, onde mora desde 2018. Dentre seus trabalhos recentes estão a série Democracy Undone, em que investigou os efeitos sociais da ascensão da extrema direita no Brasil, incluindo a entrevista sobre o mentor do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, para a revista The Atlantic. Na reportagem do livro, ela consegue reproduzir o ritmo da cobertura da Vaza Jato, intenso e ao mesmo tempo reflexivo. Tem até um capítulo chamado Fodeu o plantão de todo mundo!. Nada parece ficar de fora das entrevistas realizadas com a equipe do Intercept, a começar pelas dúvidas: “E se a gente olhar essa porra toda e concluir que eles não fizeram nada de errado?” ―é o título de um capítulo. E os medos: “Sempre que tocava o interfone, pensava que era a PF” ―duvido um repórter que tenha tido acesso às mensagens que não tenha pensado a mesma coisa.
Mesmo decisões controversas são abordadas, como a de colocar no ar a primeira reportagem sem ouvir os implicados, o chamado “outro lado” no jargão jornalístico ―o que poderia ter colocado em xeque a credibilidade da publicação na largada. O texto mostra que não faltaram discussões acaloradas dentro da própria equipe quanto a romper essa cláusula pétrea do jornalismo. Por fim, o consenso foi de que seria um risco maior dar chance aos envolvidos de encontrar meios para censurar a publicação, antes mesmo que chegasse ao público. Optou-se por pedir o “outro lado” após a divulgação. “Foi uma das decisões mais sofridas”, conta no livro Alexandre de Santi, editor-adjunto do site.
O livro reconta a história que localiza a Vaza Jato como uma cobertura que já garantiu seu lugar na história do jornalismo no país. Ela representa um ponto de inflexão nas publicações sobre a Operação Lava Jato na imprensa. Não que as forças-tarefas de Curitiba, São Paulo e Rio estivessem imunes a críticas. Pelo contrário, não foram poucos os juristas que apontaram excessos nos métodos dos procuradores. A diferença é que, até a Vaza Jato, era Curitiba que dava o tom das coberturas, distribuindo “furos de reportagens”, muitos deles, vazamentos calculados para garantir uma repercussão positiva de suas ações. É preciso lembrar que eles não inventaram a roda. Os vazamentos de informações e as relações de cumplicidade entre jornalistas e suas fontes sempre existiram. A diferença é que, a partir das reportagens da Vaza Jato, foi a Lava Jato que teve que correr atrás do noticiário.
E não demorou muito para que o Ministério Público Federal fechado com a Lava Jato corresse atrás do The Intercept. A Procuradoria-Geral da República denunciou Greenwald e seis hackers pelo roubo das informações. A acusação trouxe de volta o debate sobre o sigilo de fontes, um princípio garantido pela Constituição. Coube ao ministro do Supremo Gilmar Mendes proibir que Greenwald fosse investigado ou responsabilizado pelos dados hackeados. Ainda há capítulos soltos na história. Dois acusados pelo vazamento dos dados, os hackers Walter Delgatti Neto e Thiago Eliezer, que estavam presos desde o ano passado, foram soltos no final de setembro por “excesso de prazo”, devido a anulações de audiências na ação penal na qual são réus. Hoje, aguardam em liberdade, mas sem poder acessar à Internet.
Para se proteger do acosso, o livro mostra que o Intercept conseguiu fazer algo inédito, colocar profissionais concorrentes trabalhando em uma mesma base de dados. Como a pressão da Lava Jato e seus apoiadores era grande sobre o veículo, o site optou em dividir o risco e ganhar escala de produção, ao compartilhar o material. Foi assim que EL PAÍS, Folha de S. Paulo, Veja, Agência Pública, Buzzfeed News, UOL e Band News passaram um tempo no Rio, trabalhando dentro da redação do Intercept, aos pés da movimentada Escadaria Selarón, mergulhados na montanha de material. Estive lá e é verdade que os jornais não competiam entre si. “Quem levantasse a mão primeiro levava”, explicou a editora Paula Bianchi no livro, sobre o modelo de divisão de assuntos, que foram loteados por ordem de chegada.
O Intercept sempre deu o tom dos trabalhos, o que não impediu conflitos, especialmente pelo que, à primeira vista, parecia um excesso de zelo. “A preocupação com a segurança era tanta, e incluía tantos diferentes cenários de risco, que virou até piada na redação. Nascia ali a ‘Editoria de Paranoia”, conta o livro, que ressalta que tinha jornalista parceiro que chegava a trocar de hotel todos os dias no período em que esteve trabalhando no Rio, temendo ser alvo de escutas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Passado o impacto com as regras de segurança ― não discutir as reportagens perto de celulares e não abrir a Internet nos computadores onde eram acessados os arquivo, por exemplo ―, cada repórter tinha acesso ao arquivo de mensagens, e poderia levar para casa as informações pesquisadas em pen drives criptografados.
Essa tensão se refletia na equipe do Intercept. A primeira vez em que Marina Rossi e eu visitamos o jornal, notamos que a turma era estranhamente quieta para uma redação tão jovem. Com o tempo, e a convivência, entendemos que não era uma questão de clima do local de trabalho: aqueles jornalistas viviam um momento de grande apreensão pelos efeitos adversos das reportagens.
O livro fala das ameaças e de episódios como o do Pavão Misterioso, uma conta no Twitter aberta uma semana após a publicação da primeira reportagem que prometia desmascarar a Vaza Jato. A denúncia que mais reverberou nas redes foi de que o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ), marido de Glenn Greenwald, teria comprado o mandato de Jean Wyllys por 700 mil dólares, mais uma mesada. O presidente Jair Bolsonaro chegou a sugerir Greenwald tinha pago para receber as mensagens que publicou, e que talvez pegasse uma “cana aqui no Brasil”. E o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro abriu uma investigação sobre movimentos atípicos na conta bancária de Miranda, que tratou o episódio como uma tentativa de retaliação.
Apesar de abordar diversos aspectos da Vaza Jato, o livro não tenta ser uma obra definitiva, nem poderia. Dois documentários ainda estão sendo realizados sobre a investigação, um pelo cineasta José Padilha ―curiosamente, o mesmo que dirigiu a série O Mecanismo, da Neftlix, considerada uma ode à Lava Jato―, e outro pela cineasta Maria Augusta Ramos ―que dirigiu O Processo, documentário sobre impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. A obra Vaza Jato - os bastidores das reportagens que sacudiram o Brasil, com a reportagem de Letícia Duarte e uma seleção das reportagens da cobertura, funciona mais como um retrato de uma das possíveis dimensões sobre essa investigação que ainda está em curso.
A pandemia refreou os ânimos, mas, semanalmente, a equipe do Intercept ainda vasculha o extenso arquivo em busca de outros achados. Duas reportagens inéditas ―que não estão no material divulgado para a imprensa, incluindo os parceiros― fazem parte do livro. Mas outros capítulos virão. O mais aguardado é o julgamento no Supremo da suspeição de Sergio Moro, no qual as mensagens da Vaza Jato tem um papel importante. Iniciado em dezembro de 2018, o julgamento foi paralisado após um pedido de vista de Gilmar Mendes.
A maior dúvida, no entanto, é sobre o próprio futuro da Lava Jato. O presidente Bolsonaro afirmou recentemente que acabou com a operação porque em seu Governo "não tem mais corrupção”. Voltou atrás, e se justificou, mas isso foi antes do dinheiro na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), vice-líder do Governo no Senado. E o que virá depois, no Brasil de 2020, certamente é uma incógnita.
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